quinta-feira, 26 de dezembro de 2019

«Oblíquos» de Fernando Chagas Duarte



Fernando Chagas Duarte (n.1964) neste seu quarto livro desde a estreia em 2014, junta poemas de 206, 2017 e 2018 num total de 141 páginas dividido em dois capítulos: «Fábulas e humanidades» (44 poemas) e «Os poetas são cruéis ao Domingo» (62 poemas) num total de 106 poemas.  
O ponto de partida é o poema da página 61: «este porto onde aguardam lugar / uma infinidade de navios / marinheiros, velhos cargueiros / e suas gonorreias / tpdos esperam vez / balançam ao sabor do despudos / teias de canos, caudas / camisas enxutas e apêndices / é entrar, carregar, descarregar / adeus até à próxima»
Pelo meio fica a ideia de viagem: «faço um cerco / a imperfeição / sitiado que estou neste corpo / de carne e ser tão pouco / e traço-lhe a linha recta / na palma da mão: faço a faca / e o meu próprio destino /ser defeito – à deriva / deflicto-me / escreverei hoje a última / ode à dignidade»
Entre o ponto de partida e a viagem o poema revisita não só a Natureza mas também a Cultura: desde a Poesia com Luís de Camões, Manoel de Barros, Federico Garcia Lorca, Torga, Sophia, O´Neill, Beaudelaire, Rimbaud e Maiakowvki até à Pintura de Joan Miró, Picasso, Van Gogh ou à Música de Haendel, Carmina Burana e Billie Holliday sem esquecer Nietzche na Filosofia e Kurosawa no Cinema.
Paira sobre o livro um fino humor como no poema da página 118: «8 apostas para / um prémio Nobel / criadas pelas casas / de bom gosto / financeiro. Aposto / no homem, na mulher / aposto no gajo chinês / no africano – há muito / que um negro não ganha / por isso são chorudas as odds.»

 (Edição: Euedito, Capa: Fernando Chagas Duarte)

 [Um livro por semana 636]

quarta-feira, 18 de dezembro de 2019

«Carmes» de Paulo da Costa Domingos



Este é o novo livro de Paulo da Costa Domingos (n.1953) reunindo em 567 páginas o seu trabalho poético de 1971 a 2918. Na página 7 o autor indica o destinatário dos seus versos: «é a cidade de Lisboa, nas suas sete colinas sobranceiras ao estuário do Tejo. Meditação junto ao Cais das Colunas, onde os degraus de pedra são como que banhados por um muito pessoal Ganges, enquanto escutam aquele que, cedo, se habituou a falar com as pedras da calçada – voz do Mundo no lugar onde a Terra se refresca.»
O título vem do poema da página 275: «A suma fragrância do risco caligráfico / arando a página, sulco da ideia. /Que corre em rebentos selvagens ,  /medicina inequívoca /de carmes da terra /num clamor: mais luz.» O «eu» do poeta está presente na página 276: «Se tivesse sido /um artista, um ourives /da prata coando / o metal fundente / para dentro de moldes. (…) se tivesse sido /pregador da ignorância /como cigarra no furor do Estio /um monarca um político /(com provador privado de todos /os víveres); /tivera eu sido a História /não a economia…»
Impossível resumir em poucas linhas um livro de 567 páginas. Ficam algumas ideias como as dos livros no poema da página 307: «De vez em quando os livros /reduto agrário da memória /e da linguagem do fogo, /têm sorte, alguém aparece /solitário bandeirante /para salvá-los da morte /da cega ruína / de suas girândolas e orelhas /na lixeira pública.» Ou da poesia como matéria artesanal: «Como ele costumava dizer /se bem me lembro da fantasia: / «Minha mãe manda comprar /um quilo de papel almaço /na venda, quero fazer poesia» Ou o tempo actual: «Havia que cumprir objectivos /estudar, casar, inscrever num partido, arranjar emprego. Ou melhor: / inscrever num partido para poder estudar, casar, arranjar emprego.» O dito acordo ortográfico também faz parte da paisagem desolada deste tempo: «Deportado pelo novo regime /ortográfico, nesta vergonha /de ser-se um involuntário /num caminho que nem a Roam conduzirá, nem /proveito algum ou sabedoria /se lhe extrairá no fim. Sim / expulso do coração da fala.» 

(Editora: Companhia das Ilhas, Direcção: Carlos Alberto Machado, Capa: Margarida Lagarto, Foto: Telma Rodrigues, Paginação: Paulo da Costa Domingos)

 [Um livro por semana 635]

segunda-feira, 9 de dezembro de 2019

«O que fica (Poemas)» de Cristino Cortes



Cristino Cortes (n.1953) junta no livro poemas diversos (83 ao todo) e organizados por capítulos (ou círculos) com 2 de 17, 2 de 13, 2 de 9 e 1 de 5 poemas. Sem esquecer o poema (ou fragmento) de abertura na página 11 que no total soma 84 e é o ponto de partida: «Daquele que consciente vê e vive na cidade / E nela deseja intervir, para melhor / A configurando, aqui canto.»
«O que fica» é o título do poema da página 151: «Fica a poesia, claro, benefício da abertura temporal /De a ela, e com gosto, poder-me entregar. Só aqui / Poderei abalançar-me a um volume de 900 páginas. Li / Assim Homero e Camões, Nemésia, Sophia, agora por sinal.»
No poema «Autoconsolação à sombra de Ricardo Reis» o poeta adverte: «Quantas crianças não morrem enquanto tal e é bem sabido /Levarem cedo os deuses aqueles que escolhem e muito amam. / Não serias o primeiro a preferir morrer de bibe e de calção/ Ou então no fulgor da juventude, dominando o mundo todo. / Mas já que te coube usar fato e gravata vê se estás à altura.» Mais à frente no mesmo poema proclama: «Em tudo, em síntese, mantém humor, tranquilidade, um sábio bom senso. /A alegria vem dessa naturalidade, tão íntima paz. De todo o lugar /Faz a tua cidade. Vive o que tiveres de viver e que jamais / A poesia te falte. Como não faltará decerto bem o sei /Assim estejas atento, grato e disponível no dia a dia, / Ao espelho te maravilhando a flor que só por ti abria.»

(Editora: Calçada das Letras, Prefácio: Luís Serrano, Posfácio: José Fernando Tavares, Capa: Dorindo Carvalho, Grafismo. Estúdio Bonecos Rebeldes)

[Um livro por semana 634]

sábado, 30 de novembro de 2019

«Pequeno roteiro cego» de Levi Condinho



A antologia da poesia de Levi Condinho (n.1941) organizada por António Cabrita e Miguel Martins tem 98 páginas e integra poemas de cinco livros publicados entre 1966 e 2001 e dos 48 poemas divulgados no Jornal «A voz de Alcobaça» entre 1993 e 1997 por José Alberto Vasco. A opinião de Herberto Helder («o seu livro é intenso e livre – qualidades que considero as melhores num ser humano e, particularmente, num poeta») sobre «Para que alguns me possam amar» (1977) pode aplicar-se a toda a obra deste poeta nascido no Bárrio (Alcobaça), facto inscrito num poema: «No princípio de Julho de 1950 foi a Missa Nova / do Padre João de Sousa – missa campal / camponeses ajoelhados no feno seco terra batida / alecrim incenso bandeirinhas de papel searas vinhas / o mar e o Sítio da Nazaré ao longe – à tarde toquei pífaro diante do microfone.»   
Veja-se o poema de abertura: «escrevo estas coisas /para que alguns me possam amar / todos aqueles que sejam humildes / e vistam roupas simples e claras /manchadas mesmo de vinho café ou /nódoas de peixe frito /escrevo estas coisas /para quem nunca teve casa junto ao mar /mas sabe que o mar é uma delícia /como o sol.» A música está sempre presente como no poema da página 27: «Se perguntarem por mim /diz-lhes que me procurem /nas cordas de qualquer violoncelo /ou então nas chaves de um oboé /diz-lhes mais / que se enganaram a meu respeito /e não pensem que lhes farei a vontade /porque a minha vida foi música desde o ventre materno».
O ponto de partida pode ser o poema da página 37 («Juro uma vingança grave sobre / toda esta falta de viver») e o ponto de chegada pode ser a página 27: «se perguntarem por mim /diz-lhes que havia um barco à minha espera /e que finalmente resolvi entrar nele /sem lágrimas». No meio o poeta tem uma procura que não termina («Busco o teu perfil nos torvelinhos de uma cidade frenética») mesmo quando parece: «vamos procurar as árvores dessas ruas e escrever nelas o nosso encantamento / para que o mundo saiba que a redenção dos astros / passou pelos nossos lábios numa noite em que assaltámos /as portas de Deus.»

(Editora: Abysmo, Prefácio: António Cabrita, Capa: Luísa Barreto)

[Um livro por semana 633]

quinta-feira, 21 de novembro de 2019

«As longas noites de Caxias» de Ana Cristina Silva



Este livro de Ana Cristina Silva é dedicado a «todos os resistentes antifascistas» e adverte: «Esta obra baseia-se em factos verídicos. No entanto, nomes e situações foram ficcionados.» O livro de estreia da autora é «Mariana, todas as cartas» de 2002 e o seu anterior romance é «Salvação» de 2018. O título deste recente trabalho surge nas páginas 127, 149 e 200 mas o primeiro é o ponto de partida: «Nas longas noites de Caxias, nunca as detidas viram um sorriso no rosto de Maria Helena.» Por um lado está Leninha, do outro Laura Branco, a agressora e a agredida. Não apenas pelos actos mas também pelas palavras porcas: «És uma cabra e não és uma vaca porque não tens físico para isso!» Laura respondeu: «Mas tens tu.» A narrativa não se limita ao duelo entre a agente da PIDE e a detida em Caxias. As memórias de infância de Laura são o retrato dum certo tempo português: «As suas amigas eram filhas dos homens que se alugavam à jorna na praça da vila (…) Outros havia em piores condições. Trabalhadores que não eram escolhidos pelos feitores (…) e que se juntavam nas tabernas. Homens desgarrados que cantavam o orgulho de ser alentejano por ruas tortas, pedindo com mágoa uma moeda para os filhos.» Do lado de Maria Helena há vitórias e derrotas: «Chamava-se Maria Augusta, era camponesa do Couço e denunciou os camaradas. Uma outra camponesa, de nome Maria Custódia, oriunda da mesma terra, não proferiu qualquer palavra.» A hostilidade perversa de Maria Helena para com as mulheres tinha raízes na infância: «No dia em que Salazar foi a Setúbal e beijou Maria Helena na testa o seu pai deu uma tareia na mulher.(…)Envergonhava-se da mãe, fraca e débil, sempre a suspirar pelos cantos. (…) Desde a primeira classe que as colegas de Maria Helena suspeitavam que ela tinha instintos ruins.» O filho de Maria Helena era um rapazinho cobarde mas era adepto do Benfica como a mãe. Essa relação surge na organização da narrativa como exemplar. O Clube tem uma visão revisionista da História do Desporto em Portugal: mente sobre a data da fundação, mente sobre os títulos de campeão, mente sobre a idade dos jogadores, inventa mentiras delirantes como a de em 1907 um grupo de sete jogadores ter saído do SLB para fundar o SCP. Os jogadores em causa saíram do Grupo Sport Lisboa e apenas procuravam um estádio onde pudessem tomar banho depois dos jogos. O SCP tinha sido fundado em 1906, depois de tentativas em 1902 (Belas) e 1904 (Campo Grande). O julgamento de Leninha foi o previsível: a maior parte do discurso era palavreado patriótico no qual mergulhava para se justificar a si própria. O discurso deslocado da realidade surge em 1977 mas o resultado é suave: «Seis meses de cadeia.» Laura conclui: seria um processo lento, requereria todo o seu esforço para não se deixar enredar nas imagens do passado.» A vida de Maria Helena cabe em duas linhas («um matrimónio despedaçado, um filho que só lhe dava preocupações, uns pais cada vez mais velhos e agora um amante que a abandonava») mas no fim afirma «nunca me arrependi de nada. Os tempos da PIDE foram os mais felizes da minha vida.»

(Editora: Planeta Manuscrito, Revisão: Fernanda Fonseca, Capa: Patrícia Silva sobre imagem de Hayden Verry, Foto; Fernando Dinis)

[Um livro por semana 632]

sábado, 16 de novembro de 2019

Nagashima



Minoru Nagashima (n.1945) é um artista plástico japonês que vive em Portugal desde que veio para a EXPO98 e ficou apaixonado pela cidade em geral e pela zona do Príncipe Real em particular. As obras são 15 em exposição até ao dia 30 de Novembro de terça a sábado das 15 às 21 horas na Rua Nova da Piedade 66 - entre a Rua de São Bento e a Praça da Flores.

sexta-feira, 8 de novembro de 2019

«Um muro no meio do caminho» de Julieta Monginho



O livro abre com uma frase de Celeste Pedro («cada um de nós pode fazer tão pouco ao menos que esse pouco seja feito») e outra da «Odisseia» de Homero traduzida por Frederico Lourenço: «Desatrela os cavalos dos estrangeiros e trá-los para que comam.» Julieta Monginho (n.1958) estreou-se em 1996 com «Juízo Perfeito»,  venceu  o Grande Prémio de Romance e Novela A.P.E./D.G.L.B. 2008 com «A terceira mãe» e neste livro de 243 páginas junta 10 histórias afluentes, trabalhadas em ficção a partir do voluntariado na ilha grega de Chios no Verão de 2016.
O ponto de partida é: «conhecer essas vidas em fuga, ajudá-las a seguir o caminho aberto por direito, pois se não acreditasse no poder do direito como reduto do pensamento humanista moldado por centenas de anos vividos e sofridos, me perderia definitivamente no espectáculo do mundo.» As voluntárias sabem que três palavras as acompanham («vontade, sorriso, impotência») além das palavras de Eleni: «Aquela gente não pode ficar à mercê do frio e das autoridades de Vial. Já estão a instalar gente à beira-mar, em Souda, junto à muralha. Não há quem lhes dê de comer. Nós vamos dar-lhes de comer.» É neste vasto anfiteatro que surge o trabalho do escritor, o historiador do quotidiano: «Observar o que é vivido com um microscópio numa mão, um telescópio na outra. Estar dentro e fora. Escavar, escavar, escavar, como se a pele fosse a alma e às vezes é.» O primeiro olhar é para as mulheres: «A sua imensa tarefa – a de chorar? Quantas vezes por mil se multiplica o seu desgosto? É no corpo delas que começa a dor. São elas a parir e a ver partir os seus meninos – os soldados, os mortos. São elas que escondem a vergonha, limpam e ordenam, calam e renunciam.» Num certo sentido pode dizer-se que as mulheres estão mais visíveis entre o muro e o mundo. O muro tem um destino («É o destino de todos os muros: serem derrubados, depois de fazerem muitas vítimas.») e o mundo tem muitas perguntas: «O que seria do mundo sem as armas? O que seria a raiva, sem a possibilidade de eliminar o semelhante? Se o dinheiro desaparecesse por magia , o que fariam os homens à cobiça? Se as terras se unissem num único lugar, o que fariam os homens às disputas? Se os espelhos desaparecessem, o que fariam os homens à vaidade?» Um aspecto curioso tem a ver com a fixação na Alemanha como destino: Uma advogada uruguaia sublinhou que toda a gente quer ir para a Alemanha, a autora refere «Alemanha, a terra prometida. Exibida no mundo inteiro como a capital da Europa», um refugiado desabafa: «ficamos aqui só uns dias, depois continuamos até à Alemanha.» Uma nota final para a história de Asmahn e a escolha do nome de um bebé: «Vai chamar-se Nymir, como o avô, o pai do Ahmad. O nome do meu pai fica para o segundo.». A mesma Asmahn que chora ao dizer: «O Ahmad proibiu-me as fotografias. Tem de as apagar do telemóvel, suplico-lhe.» As fotografias não passaram de um pretexto. A escolha do nome do bebé não permite dúvidas.

(Editora: Porto Editora, Capa: Joana Tordo, Foto: Filipe Monginho)

 [Um livro por semana 631]

quarta-feira, 30 de outubro de 2019

«O que eu ouvi na barrica das maçãs – crónicas» de Mário de Carvalho



Mário de Carvalho (n.1944) estreou-se em 1981 com «Contos da Sétima Esfera» e neste seu livro de 254 páginas junta crónicas publicadas entre 1987 e 1996 no «Jornal de Letras» e no «Público». As crónicas são divididas em quatro secções (Divagando, Intervindo, Oficiando e Rememorando) correspondendo a várias facetas do autor: ficcionista, cidadão, comunicador e memorialista. O título é uma homenagem à Literatura e vem do livro «A ilha do tesouro» de Robert Louis Stevenson. Francisco Belard refere no Prefácio «Mário de Carvalho e eu somos da mesma geração, o que explica várias afinidades (…) as afinidades emergem em muitas destas crónicas ou noutras intervenções públicas que teve e tem, a par dos livros.» Uma das crónicas indica 35 espécies de escritores desde o solene, o ansioso e o paranóico até ao erudito, ao obscuro e ao possesso mas sem esquecer o cronista: «Perora sobre tudo, numa olímpica omnisciência. Está convencido que tem muita graça e de que influi profundamente nos destinos do país. Imagina os governantes a lê-lo e a dizerem às mulheres (ou aos maridos): «Tem graça! Olha que este rapaz tem carradas de razão, vou passar a fazer como ele diz». Às vezes é feroz , faz ameaças: «Ah, sim? Então eu desanco-o na minha crónica!» No entanto fica um pouco perplexo se os amigos exclamam jovialmente: «Lá li a tua coisa no Diário Popular; aquela dos rinocerontes, muito gira – quando ele tinha escrito umas considerações hábeis sobre os chalés suíços para o Diário de Notícias.» O autor disserta sobre a crónica em si na página 42: «O leitor conta com uma opinião de actualidade, fluente, cívica, arguta e isenta de complicações.» Sobre Fernando Pessoa surge uma tese: «Na verdade quem morreu em 30 de Novembro de 1935 no Hospital de São Luís dos Franceses não foi Fernando Pessoa mas um vagabundo galego, muito esquálido, contratado para o efeito, que se chamava Paco Ximenez Albarrace. Quanto ao verdadeiro Fernando Pessoa, tinha-se esgueirado de noite, à capucha, disfarçado de freira carmelita para só voltar a ser visto mais tarde, na guerra de Espanha.» O acto de escrever («Não me recordo de uma única indignidade removida por um par de versos») tem as suas ambições e os seus limites: «Na parte que me toca estou convencido de que o que leva alguém a escrever é esta possibilidade de mentir à vontade sem agravo dos bons costumes nem do ordenamento jurídico.» Uma ideia para Portugal está na página 64: «Entre o torrãozinho de açúcar e a choldra lá tem que se mover o cidadão sensato e com noção das proporções.» Ou na página 83: «Somos muito vulneráveis. Não temos reservas nem defesas. Não há nichos, não há abrigos, não há resistências, não há territórios como outros têm.»  Noutra crónica lembra Joaquim Velez, João Camilo e Diniz Miranda na  prisão para concluir «ao lado do portugalinho dos sacanas a ferver de mercenários, oportunistas, videirinhos e minúsculos troca-tintas, também existe gente da têmpera daqueles em que falei.» Mário de Carvalho adverte a sorrir: «Terrível palavra é um «ego». Lido na natural direitura, apenas lhe falece um «c» para não ser «cego» e faz uma previsão em 1993 que se confirma em 2019: «…pode criar-se o clima propício a que um belo dia, meia dúzia de tipos (talvez mesmo quatro) em qualquer cervejaria de qualquer cidade de província…»

(Editora: Porto Editora, Prefácio: Francisco Belard)

 [Um livro por semana 630]

sexta-feira, 25 de outubro de 2019

A luz e a sombra no olhar de Rui Jordão


Escrevo para juntar de novo o que a morte separou. De Rui Jordão tenho três histórias; duas que ouvi contar e outra que vivi. O jogador natural de Benguela aproveitou uma ida a Espanha para receber algum do dinheiro que lhe ficaram a dever no Saragoça mas as notas tiveram de ser distribuídas por todos os jogadores do Sporting Clube de Portugal na camioneta. Logo em Elvas começou o meticuloso trabalho de recolher o dinheiro entregue a cada um para poder passar na fronteira. Dizem que quando um amigo esteve em Cabo Verde, Rui Jordão foi visitá-lo: meteu-se num avião e viajou quem sabe a lembrar os quintalões de Benguela onde se podia jogar sem relógios em muda aos seis acaba aos doze. Há uma dupla inscrição. O inventário ao lado do esplendor da amizade. O grupo de amigos do futebol integrava Mário Jorge e Manuel Fernandes. Um dia no Estoril estava com Mário Jorge na esplanada quando Jordão passou por nós em corrida matinal. Nem mesmo o ter sido chamado pelo nome o demoveu. Olhou para mim e terá tido a intuição de que eu sou jornalista; seguiu em frente e nunca mais consegui palavras suas para um livro. Ainda bem que no tempo de Fernando Assis Pacheco havia disposição para entrevistas: o livro é «Retratos falados» da Editora ASA. Os homens querem os seus momentos de luz e os seus momentos de sombra. A mim calhou-me a sombra nessa manhã de esplanada no Estoril. Talvez não tenha sido o Jordão, ele-mesmo. Pode ter sido o seripipi de Benguela, ave de vasta paleta de cores: plumagem de canela, face negra, peito e garganta cinzentos, ventre dourado e rabadilha vermelha. Sendo natural de Benguela «leva no bico uma esperança» como dizem os versos de Ernesto Lara Filho e a música de Carlos Mendes.  Há no olhar de Rui Jordão o peso da sombra e a força da luz. Como num quadro, a vida insinua esta verdade: é a sombra que dá relevo à luz. É a morte que cria dimensões na vida. Há no olhar de Rui Jordão a fusão de três mundos: animal, vegetal e mineral. O mesmo é dizer: seripipi de Benguela, infinitos quintais das casas e pedras junto ao mar. O mar onde Rui Jordão corria todas as manhãs à procura das ondas onda cabe a beleza de todas as sereias e a massa sonora de todas as orquestras.      

(Fotografia de autor desconhecido)       

segunda-feira, 21 de outubro de 2019

«Hoje é tudo falso e outras crónicas» de António Souto



O mais recente livro de António Souto (n.1961) inclui 31 crónicas e o título é retirado da página 13: «Os currais ruíram e já não há eira nem quem chegue lume à caruma, nem adega, nem mesa grande, nem quem se sente nela. Hoje é tudo falso, tudo tão distante…» Como género literário a crónica, sendo um híbrido, concorre com o poema, o conto, a notícia, a reflexão, o apontamento. A citação inicial de Eça de Queirós em 1867 dá uma ideia do fascínio da crónica: «A crónica é como estes rapazes que não têm morada sua e que vivem no quarto dos seus amigos». Na página 15 o autor refere o seu gosto pela música: «Tive há muitos anos um gira-discos que comprei em segunda mão. Eu não era um especialista em música nem sequer tinha um género musical de eleição.» Na página 21 outro registo, o do sofrimento: «Partilham-se testemunhos e consolos. Descobrem-se as fragilidades e os limites da vida. Experimenta-se o sofrimento próprio e alheio. Aprende-se o sentido da palavra e do silêncio, da confiança e da esperança.» Há também um lugar para a memória e para o passado. Primeiro a memória: «A seguir ao relógio que o meu avô me ofereceu no dia do meu exame da quarta classe, o camião de ferro amarelo foi talvez a minha maior relíquia da infância» Depois o passado: «Os rebuçados de hoje já não sabem a nada nem têm crianças que os procurem ou que os saibam descascar como segredos.»
Apenas mais dois exemplos no registo desta cartografia pessoal do autor. Por um lado o Natal: «Começo a ficar cansado de ouvir e ver tanto natal quando chega a quadra natalícia, como se não houvesse mais nada para ver e ouvir». Ou o Mundo: «Até uma certa idade pensamos que o Mundo é todo nosso, que somos o centro dele, que tudo quanto nos rodeia parece estar a mais, refugo.»
Afinal o mesmo Mundo onde o Padre António Vieira falava dos peixes grandes que comem os pequenos em vez de serem os pequenos a comer os grandes tal como já Almeida Garrett referiu os 200 pobres que são precisos para fazer um rico.

(Editora: On y va, Capa: Rui Fiolhais sobre mural de Joe Iurato, Grafismo e paginação: João Paulo Fidalgo)

[Um livro por semana 629]

quarta-feira, 2 de outubro de 2019

«Retratos» de António Ferra



Neste mais recente trabalho literário de António Ferra (n.1947) há uma adaptação do texto que acompanhava a exposição «Retratos de Nós» que teve lugar em Lisboa no ano de 2014. Nos «retratos» deste livro o fotógrafo é o poeta; o poeta é o fotógrafo: «Um vulto no jardim / sobre o tripé de pano preto». O ponto de partida é uma interrogação: «Quem és tu para exigir um retrato, para merecer uma imagem? Quem és tua para ordenar a luz e a sombra? Não respondes, apenas incitas a interrogação nos atavios que ostentas – jóias, vidrilhos, fios que te levam a energia.»      
Ao longo destes 16 poemas há uma permanente indagação entre o efémero e o fixo, entre o esquecimento e a memória: «Dama do tempo antigo, de severidade nos lábios, imobilizas o tempo numa postura ao longo das tábuas. Que um milímetro a mais não te descomponha o véu a encobrir a nudez que seduz os monstros quando a noite cai sobre rios de plástico. É eterna essa fugacidade.»
O derradeiro poema do livro dá conta da permanência dessa já referida indagação: «Nem sequer sei se as emoções que exibes são uma manobra para eu questionar a tua boca ou se são pedacinhos de papel que utilizas para atrasar a passagem do tempo.»

(Capa, imagem do autor e artes finais: Pedro Serpa, Impressão: Gráfica 99)

[Um livro por semana 628]

sábado, 21 de setembro de 2019

Uma memória para José Pereira e Pepe - «Os Belenenses» cem anos depois


A propósito dos cem anos do Clube «Os Belenenses» que ocorre em 23-9-2019 não posso deixar de manifestar o meu desagrado pelo facto de o jornal «Diário de Notícias» de hoje 21-9-2019 ter dedicado um Suplemento Especial ao facto histórico mas ter esquecido dois daqueles que eu considero elementos chave da memória do Clube azul da cruz de Cristo. Sobre José Pereira nada ou quase nada sei. Ainda ontem falei com uma pessoa do Jornal «Badaladas» de Torres Vedras onde ele terá nascido em 15-9-1931 mas nada de concreto fiquei a saber. Sei que jogou no Mundial 1966 ao lado dos Magriços mas depois foi para Barcelona onde viveu e terá regressado ao Caramão da Ajuda. Sobre Pepe (1908-1931) apenas uma frase tirada de um poema dito por Barroso Lopes na Revista «O Mexilhão no Teatro Variedades: «Era a alma do povo em corpo de rapaz!» 

segunda-feira, 9 de setembro de 2019

«Noticia historica e topographica da villa de Alcanede» de Simão Froes de Lemos



José Raimundo Noras (m.1980) transcreve, apresenta e anota este texto clássico de Simão Froes de Lemos (1675-1759) escrito em 1726. O ponto de partida do historiador é «transcrever e fixar o texto de Simão Froes de Lemos, dando informações essenciais para uma boa compreensão desse trabalho (…) mantemos a grafia do texto original por considerarmos, para além da norma adoptada, que a mesma não prejudica a boa leitura da crónica.» O texto de Simão Froes de Lemos já tinha sido várias vezes referido por Mário Rui Silvestre, autor pioneiro na divulgação dos três manuscritos (Évora, Lisboa, Santarém) a mais recente das quais terá sido em 2014 no livro «Poemas do Centenário». Embora se registe que o texto de 1726 segue o modelo da descrição corográfica do Padre Luís Cardoso não será errado considerá-lo também um percursor das «Memórias paroquiais de 1758».
Segundo o responsável por esta edição «A Noticia Historica foi dividida em duas partes: a primeira focada em Alcanede e a segunda em Pernes. O documento oferece informações importantes para vários campos de estudo: história local, etnologia, estudos das religiões, arquitetura, geografia humana, toponímia, história das mentalidades bem como estudos de género.» Um dado muito curioso neste texto é o primeiro registo escrito das grutas de Mira de Aire na página 209: «Na serra de Ayre ou serra de Minde como alguns lhe chamam, no termo de Porto de Mós está o lugar de Minde e ao Noroeste delle está hum campo que tem de comprimento meya  legoa e de largo hum quarto de legoa pouco mais ou menos no fim deste campo para a parte do Noroeste está huma gruta que terá de comprido tanto como a Igreja da Misericórdia de Lisboa ao rocio da mesma cidade, pela qual entra um homem e anda por ella sempre em pé e à vontade e por baixo e por sima paresse tudo hua só pedra porque são abodadas da mesma penha; depois de andar a metade do caminho, se acha hua subida pequena que se a fizessem escada poderia ter dez o doze degraus; passada esta subida se desce por área tanto como se tem subido e depois ainda se continau a descer mas he por pedras; e assim se vai andando e descendo ate que se chega a hum portal feito pela natureza em forma que parecese feito por maos de officiaes.»

(Edição: Centro do Investigação Professor Doutor Joaquim Veríssimo Serrão, Apoios: Município de Santarém, Juntas de Freguesia de Abrã, Alcanede, Amiais de Baixo, Arneiro das Milhariças, Malhou, Louriceira, Espinheiro, Minde, Pernes e São Sebastião – Rio Maior)

[Um livro por semana 627]

terça-feira, 3 de setembro de 2019

Crónica sobre uma aguarela de Joan Sutherland



Primula Integrifolia é o seu nome e consta no original da aguarela por si assinada. Sei que os botânicos, os pintores e os arquitectos paisagistas sabem sempre os nomes latinos das flores. Faz parte do seu trabalho porque cada ofício e profissão tem as suas palavras exactas, precisas e perfeitas. Minha filha Marta que vive e trabalha em Sydney (Austrália) soube dizer de imediato que esta flor em concreto é oriunda da zona dos Pirenéus Atlânticos. No seu caso tenho a ideia de ter visto um exemplar da flor no seu jardim nos arredores de York em Inglaterra mas o que me interessa é o rigor do traço, as linhas perfeitas, o recorte exacto das cores, o equilíbrio de todos os componentes na sua aguarela. Não por acaso seu filho Ian desenha tão bem e ganhou prémios como arquitecto na cidade de Londres. Seus netos Thomas e Lucas, apesar de serem jovens, já vão no bom caminho como seus discípulos. O meu orgulho de avô em comum é ver os nossos netos a desenharem tão bem apesar da sua idade, treze e oito anos. Pela minha parte acresce o pormenor de ainda ontem (10 de Agosto de 2019) o comissário de bordo no avião que liga Lisboa a Londres ficou encantado com o emblema do Sporting Clube de Portugal a verde na camisola branca do nosso neto Lucas. Tal como há alguns anos atrás em pleno parque de Greenwich junto ao Tamisa (o Tejo de Londres) algumas pessoas gostaram da camisola verde o Thomas, o nosso neto mais velho com estas palavras muito próprias para um lugar como Greenwish Park – «Sporting since 1906». Por simples curiosidade vejo que esta planta tem efeitos positivos em seis campos: anti-inflamatório, defesa do sistema imunológico, na pele, nas cólicas, nas funções hepáticas e no controle emocional.  Nada acontece por acaso, é o que fico a pensar, caríssima comadre.  
      
[Crónicas do Tejo 196]

sábado, 17 de agosto de 2019

«Lisboa – Livro de Bordo – vozes, olhares, memorações» de José Cardoso Pires



José Cardoso Pires (1925-1998) escreveu este livro para a EXPO 98 mas a nova edição integra fotos de José Carlos Nascimento (n.1943) que lhe dão aspecto mais apetecível pois como refere Ana Cardoso Pires «Lisboa é uma cidade de que é fácil gostar.» O ponto de partida está na página 16: «Mas ninguém poderá conhecer uma cidade se não a souber interrogar, interrogando-se a si mesmo. Ou seja, se não tentar por conta própria os acasos que a tornam imprevisível e lhe dão mistério da unidade mais dela.» Dito de outra maneira «isto aqui não é só luz e rio, não é só geografia, revelações ou memórias» há cheiros a reconhecer: «o do peixe de sal e barrica nas lojas da Rua do Arsenal, o da maresia a certas horas das docas do Tejo, o do Verão nocturno nos ajardinados da Lapa, o dos armazéns de aprestos marítimos entre Santos e o Cais do Sodré, o do peixe a grelhar em fogareiro à porta dos tascos de recanto ou de travessa, desde o Bairro Alto a Carnide.» Lisboa é também História: «São Vicente, está provado, entrou no Tejo em cadáver navegante sob a guarda de dois corvos. Já ressequido e mirrado, acrescente-se. Já relíquia de sacrário, boca roída, dentes de fora. Chegou nessa figura e embora santo, não teve uma palavra para a cidade que o recebeu.» Do que este livro mais trata é do Amor a Lisboa: «Se fosse Deus parava o Sol sobre Lisboa», escreveu Fernando Assis Pacheco num poema tonto de luz (a tão citada luz sempre imprevista). De acordo, mas uma cidade de caprichos como esta nunca o sol a pode iluminar por igual. Tem de se lhe afeiçoar aos contornos e aos instintos desordenados.» A tragédia do Chiado (o incêndio) está na página 59: «Hoje quando atravesso esse rosto corrompido de Lisboa vejo-o como uma ferida aberta na nossa memória colectiva. Mais ainda: é um pouco da memória de mim mesmo que ficou destroçada porque também eu subi o Chiado em diferentes idades dos meus livros e com amigos de diferentes gerações.» E continua: «É possível definir Lisboa como um símbolo. Como a Praga de Kafka, como a Dublin de Joyce ou a Buenos Aires de Borges. Sim é possível, Mas mais do que as cidades, é sempre um bairro ou um lugar que caracteriza essa definição e a fidelidade tantas vezes inconsciente que lhe dedicamos. O Chiado, neste caso.»

(Editora: Relógio d´Água, Prefácio: Ana Cardoso Pires, Fotografias: José Carlos Nascimento, Revisão: Anabela Prates Carvalho, Capa: Carlos César Vasconcelos)

[Um livro por semana 626]

terça-feira, 6 de agosto de 2019

«O livrinho dos campeões» de António Manuel Venda



Com o subtítulo de «e outras histórias de um adepto do melhor clube do mundo» o livro integra 25 crónicas em 151 páginas, selecionadas por António Manuel Venda (n.1968) que explica na nota final: «Estes textos foram escritos ao longo de muitos anos, desde a segunda metade da década de 1990. São os vinte e cinco selecionados de centenas que escrevi sobre futebol para meios de comunicação social (dois inclusive da minha terra, o Jornal de Monchique e a Rádio Fóia) e também para espaços on-line (como o blog sportinguista És a nossa fé). Com a derradeira revisão feita em Agosto de 2017, surgem no final com referências a acontecimentos a que dizem respeito e com o ano em que foram originalmente escritos.» O presente volume é dedicado aos filhos do autor (Bernardo, Madalena, Francisca e Rodrigo) e à memória de Malcolm Allison (1927-2010) treinador do Sporting Clube de Portugal na época desportiva de 1981/1982. O título do conjunto é retirado do primeiro texto do livro: «A primeira vez em que vi um jogo do Sporting ao vivo foi no Estádio do Portimonense, em Portimão, na memorável época do título com o treinador inglês Malcolm Allison. O resultado está num livrinho de páginas brancas que fui preenchendo a cada dia em que a equipa jogava. Numa entrada de quatro de Abril de 1982 surge a minha letra tremida com o registo de uma surpreendente derrota.» Não é só de vida e de vitória que estas histórias tratam; também se recorda a morte de um sócio «leonino» numa final da Taça de Portugal: «sobre o apito inicial do árbitro, um adepto do Sporting foi atingido no peito por um very light lançado por alguém das claques do Benfica. Teve morte imediata.» Um dos registos deste livro é o do humor, como na página 64: «A verdade é que o árbitro terá ficado pior do que doido ao ver as raparigas a entrarem-lhe pelo quarto adentro. Quase vinte e quatro horas depois o clube haveria de perder o jogo e sem grande exibição do adversário. Muitos comentadores acabariam por falar de uma noite infeliz do árbitro; sem saberem, é claro, que a noite infeliz tinha sido a anterior.» Outro registo é o futuro como na página 127: «Tenho uma fotografia das do telemóvel que invariavelmente me deixa espantado. Um torneio de futebol no Verão de 2014, para miúdos, em Montemor-o-Novo, num campo ao ar livre. Futebol de cinco, já com a noite a cair. Vejo bem o meu filho mais velho nessa fotografia e um pouco afastado dele, um colega. Não têm o equipamento preto do Grupo União Sport.» Uma nota final citando a página 33, talvez o melhor exemplo daquilo que este livro pode proporcionar, ligando o pó e a posteridade: «Numa das fotos a mulher está a encher um garrafão de água na Fonte da Santa, já perto do Alto de Fóia, enquanto Cadorin segura a filha pequenina pela mão. A casa dos meus pais, onde eu vivia então, fica mais abaixo no sopé da montanha. Só na entrevista da filha, mais de vinte anos depois, descobri que ele ia com a família buscar água à minha terra. Quanta energia para os golos terá conseguido assim?»

(Editora: On y va, Capa: João Paulo Fidalgo, Foto: João Andrés, Contracapa: Rodolfo Begonha)  
          
[Um livro por semana 625]

terça-feira, 23 de julho de 2019

«A festa dos caçadores» de Henrique Manuel Bento Fialho



O mais recente livro deste autor (n.1974) tem 327 páginas e integra 119 contos curtos sendo o título retirado da página 10. «A festa dos caçadores» faz a ligação a uma das «chaves» deste livro: a Vida em si não chega e o Cinema é uma resposta ao seu vazio. Por isso o herói se esconde «atrás dos reposteiros da sala» e, depois vê filmes de cowboys, cujos heróis são conhecidos por «Jesse, Johnny, Pat, Billy ou Shane» para além do estranho, obscuro e sombrio «homem da harmónica». E surge uma conclusão: «Crescer é mais ou menos isto: o grito de um índio a dar lugar ao olhar concentrado e criminoso de uma certa noção de justiça.» Natália Correia escreveu «Nasce-se em Setúbal / Nasce-se em Pequim / Eu sou dos Açores / Mas não é assim / A gente só nasce / Quando somos nós / que temos as dores.» O autor refere três lugares para nascer («uma vila do antigo Oeste», «uma capital de aldeias divididas», «uma falésia do esquecimento») mas na página 11 propõe: «Devo ter nascido em Rio Grande.» Já sobre a morte, podemos ler na página 96 «O último desejo de meu pai foi que lhe lessem, uma a uma, As Elegias de Duíno.» e na 97 a conclusão «Morrer abençoado pelos versos de Rilke terá sido morrer de braço dado com a morte, em profunda intimidade com a morte, sem medo, sem ódio, sem solidão, sem esquecimento, com o pouco que há de eterno dentro de nós.» Entre nascer o morrer, uma citação de Wittgenstein explica e situa: «Os limites da minha linguagem significam os limites do meu mundo.» O ponto de partida das histórias é o espaço de Caldas da Rainha. Por exemplo «Na Praça da República havia um prédio maior que todos os outros» ou «Hoje morreu um homem aqui perto de casa na estrada que liga a rotunda da Fonte Luminosa à rotunda do CENCAL». Ou então «Arnaldo nasceu e foi criado numa aldeia do concelho de Rio Maior chamada Arrouquelas.» e «A Esther tinha a mania que era boa. Conheci-a numa discoteca de Alhandra.» Mas há histórias com livros («As livrarias estão atoladas de livros escritos por pessoas que não resistem à tentação de partilhar com o mundo as experiências traumáticas por que passaram.» e uma conclusão: «Se os livros são como as cerejas, os autores são como os figos: é preciso certo esforço para encontrar os melhores.» Noutra história o ponto de partida é pessoal («Tive em tempos um trabalho que me colocou em contacto com todos os interessados na feitura de um livro») tal como a conclusão: «Ao contrário do que julgam alguns neo-românticos, o melhor de se  trabalhar numa livraria está longe de ser os livros.» Uma outra tem a ver com jornalismo: «Trabalhei durante quatro meses num jornal regional ali para as bandas de Loures. A redacção ficava na Pontinha e o fecho era feito em Alcântara mas o jornal era de Loures.» Outras histórias evocam não a Cidade mas a Região («O negócio deles era o de quase toda a gente na região, a pecuária») não a Vida mas uma metáfora mais complexa da Vida: «O Campo recolheu-se com a criança nos braços. Às vezes lembra-se da Cidade mas ela nunca mais se lembrou do Campo.» Já Eça de Queirós escreveu que «as ocupações humanas tendem a explorar o homem; só essa de contar histórias se dedica amoravelmente a entretê-lo, o que tantas vezes equivale a consolá-lo»

(Editora: Abysmo, Capa: Sal Nunkachov, Revisão: Noémia Machado, Citações: Gustave Flaubert, Teixeira de Pascoaes e Lucia Berlin)

[Um livro por semana 624]

quinta-feira, 11 de julho de 2019

«Veneza pode esperar» de Rita Ferro



Depois de se estrear em 1990 com «O nó na garganta» e de ter publicado romances, crónicas, fotobiografias e literatura infantil, Rita Ferro (n.1955) estreia-se no registo diarístico com este «Veneza pode esperar». O ponto de partida está na página 168: «O meu avô António nasceu há 117 anos – como pode um homem tão moderno ter nascido no século XIX? O João Amaral, da LeYa, desafiou-me a escrever um romance biográfico sobre ele, mas ao fim de meses de tentativas falhadas substituí-o por este diário.» O diário cobre o tempo passado entre Maio e Novembro de 2013 e o título do volume está na página 217. Rita Ferro define-se como uma «sem-terra» da Política: «A esquerda enerva-me por se arrogar de superioridade moral, a direita, por se acreditar socialmente superior, os monárquicos, por acharem que validam os seus pergaminhos prescritos com este pacote suspeito: o fado e as corridas como defesas prioritárias, a religião defendida como uma tribo, o ceptro sem mão que o sustente.» Ao contrário do que escreve na página 201 a autora não «fala sozinha». Este livro de 236 páginas pode ser lido como um coro grego onde cabemos todos e ninguém fica de fora. O ponto de partida para o «coro grego» pode ser uma frase de Woody Allen em «As faces de Harry:« A frase mais bela do mundo não é «amo-te» mas «é benigno». A propósito da Vida e daquilo que viemos aqui fazer: «Uns querem ser felizes, outros aprender. Os primeiros raramente conseguem, desesperam. Os segundos não se ralam com a infelicidade, desde que instrua. O problema é quando a infelicidade nada traz.» Veja-se esta reflexão sobre uma casa que demorou onze anos a construir e que hoje (2013) é só recordação: «Já não tenho a casa nem economias para a reforma, apenas grandes recordações.» Ou esta outra sobre gatos: «Hitler não gostava de gatos, Churchill adorava-os e eu fui educada a detestá-los. A minha mãe achava que ter gatos era um sintoma de solidão desesperada e sentia tanto medo deles como das donas.» Façamos um resumo: o livro lê o diferente, o presente e o futuro. O diferente é dado pela fala de uma mulher que vive em Harare: «Cada dia é uma dádiva e este apego que vocês têm às coisas na Europa, parece-nos absurdo.» O presente tem a ver com o autismo actual: «Chega um casal de espanhóis, cada um carregando o seu iPad. Preparo-me para dizer bom dia mas nenhum contacto é estabelecido. Conversam a um palmo de distância e olham noutra direcção. Nem a vibração do telemóvel os arranca a si mesmos. Quando falo e solto uma gargalhada não movem as cabeças.» O futuro é um dos netos: «Ontem, dando banho àqueles oito quilos de futuro, pensei que a vida tem sempre razão.»
Povoam este livro memórias de Agustina Bessa Luis, Manuel da Silva Ramos, Vergílio Ferreira, Natália Correia, Arur Portela Filho, Afonso Lopes Vieira, Gabriel García Márquez ou Sebastião da Gama – entre outros. Sobre o Prémio PEN Clube atribuído ao livro «A menina é filha de quem?» percebe-se a mágoa por indevidamente o prémio associar nas notícias o seu nome ao cargo político do avô e não ao facto de o mesmo avô ter trazido a Portugal em 1935 escritores como Henri Membré, François Mauriac e Jacques Maritain (entre outros) para ajudar a criar em Portugal um PEN Clube. 
         
(Editora: Dom Quixote, Revisão: Clara Boléo, Capa: Maria Manuel Lacerda, Edição: Cecília Andrade)

[Um livro por semana 623]

domingo, 30 de junho de 2019

«Jocasta» e «Dizimar» de Paulo da Costa Domingos



A título excepcional esta semana a rubrica «um livro da semana» refere-se a dois. Trata-se de juntar na mesma ficha de leitura dois livros de poemas de Paulo da Costa Domingos (n.1953); o primeiro de 15 páginas e o segundo de 18. Na intitulada «Nota marginal» de «Jocasta» lê-se: «Jocasta foi a autêntica figura subversora de uma ordem, não meramente no que é político, mas invertida, a rasgar pelo ataque radical à estrutura da família, enquanto átomo do corpo social.»  O poema «Jocasta» na página 7 abre com um sonho («Jocasta humedece um sonho») e conclui com um pesadelo: «Do menos não cortei orelhas / a pretos, posso mesmo dizer / como vim para suavizar / a ferida infecta do Mundo.» Um pouco à maneira de Vitor Matos e Sá (1927-1975) o Mundo é uma «companhia violenta» e o poema final («Funerária») é um balanço (embora provisório) de um trajecto entre a vida e a morte: «Sozinha: como eterna deusa, / onde há morte e não há morte / onde há quem adormeça, se bem que / do lado oposto do espelho a que / ninguém acode apesar de carpir / avonde, e onde impera o luto / depois da luta, depois do bote final; / sozinha: marcada pela devastação pessoal, num campo deserto / há muito da honra e do sentir / alto se ouve ainda o alfabeto / e, muda, a vegetação fecha-se.»
Em «Dizimar» o ponto de partida é um lugar («Este lugar existe, fica / onde as soluções novas / se assemelham ao deserto / dos antigos problemas.») mas não um lugar qualquer: «o Vale das Artes, o Jardim dos Poetas.» O Poeta que recusa o Jardim dos Poetas é um rebelde: «Um rebelde. Recusa-se / ao consumo: apenas / quer ser detentor dos meios de produção / chega de cinzeiros.»Sobre os efeitos da sua proclamação o Poeta não tem dúvidas: «Garantidamente cinquenta ou sessenta / tomarão conhecimento.» Depois de rejeitar a «senhora frígida» («Seu nome é Autoritária») que pode ser lida como junção de duas palavras (Autoridade e Tributária) o Poeta conclui: «Fatiga a luta e ainda / não chegou o pavor./ Certo. Teremos bebido / muito menos que mentiras / dizem os poeta durante / uma greve selvagem.»

(Jocasta – Editora Frenesi, Capa s/foto de Rui Baião, Dizimar – Editora Frenesi, Capa de Carlos Ferreiro)  
       
[Um livro por semana 622]

terça-feira, 18 de junho de 2019

«O sábio de Bandiagara – Esconjuros. Ebriedades e Ofícios» de Zetho Cunha Gonçalves



Zetho Cunha Gonçalves (n.1960) explica o ponto de partida deste livro de 92 páginas: «Este é um livro de versões, transversões e reconversões de poemas, provérbios, adivinhas, frases soltas e outros materiais potencialmente poéticos, vindos de outras línguas e civilizações – sobretudo africanas e latino-americanas – aqui transplantados para língua portuguesa.» Depois de lembrar Octavio Paz («Sabemos que os astecas recitavam, cantavam e dançavam os seus poemas») o autor, nascido no Huambo (ao tempo Nova Lisboa), regista as semelhanças entre os astecas e os povos de toda a África subsariana e os poemas que lidam com «as cosmogonias, os poemas rituais, os cantos de trabalho, de ninar, de celebração, de entronização e de óbito». Por isso mesmo pode concluir: «não há Poema digno desse nome que não advenha de uma tradição que em si mesmo cria e nela se transmuda inaugural, pela voz criada, impositiva e única, inconfundível, do seu Autor.»
Um dos poemas que melhor espelha a intertextualidade pode ser o da página 12: «Se queres saber quem sou / Se queres que te ensine aquilo que sei / Deixa de ser um pouco daquilo que és / E esquece tudo quanto sabes.»
Entre a Vida (breve) e a Morte (inevitável) só o Amor pode salvar: «Os tempestuosos quinze anos / Os vinte turbulentos / Os trinta sedentos / Os destrambelhados quarenta / Os erráticos cinquenta / Os avançados sessenta / Os serenos setenta / Os exaustos oitenta / Os anestesiados noventa / Os humildes cem anos!»
A vida pode ser uma viagem mas há sempre a adversativa como no poema da página 40: («Embora eu tenha chegado ao fim da viagem / Nunca senti que tivesse chegado») e a única certeza sobre a Vida está na mulher: «Em cada mulher começa o mundo /e o que dizeis tão serenamente /no tom dos graves sussurros /que recordo ter aprendido de minha mãe / os segredos da vossa indagação.»
Perante o desafio do Mundo, o verdadeiro artista, o que não é torpe, tem uma ética na sua prática: «O verdadeiro artista tudo retira do seu coração; / trablha com deleite, faz tudo com calma, com prudência / age como um tolteca, compõe coisas, trabalha habilmente, cria / transforma as coisas, aticula-as, faz com que se ajustem.»
Em conclusão podemos proclamar como o poema da página 81: «Retém o que acabaste de aprender / tu que aprecias sobremaneira o conhecimento /e sabes que o saber vale mais que o âmbar / muito mais que o coral e até mesmo mais que o ouro fino.»

(Editora: Maldoror, Capa e Grafismo: Luís Henriques, Paginação: Diogo Vaz Pinto, Revisão: Andreia Baleiras)

[Um livro por semana 621]

segunda-feira, 10 de junho de 2019

«O Bairro dos Jornais» de Paulo Martins



Titular da carteira profissional de jornalista nº 4149, eu estou no Bairro Alto desde 1977. O primeiro jornal onde escrevi foi o «Diário Popular» em 1978 na Rua Luz Soriano nº 67 e o segundo foi «A Bola» em 1979 na Travessa da Queimada nº 23. O meu primeiro livro («Iniciais») foi publicado em 1981 pela Moraes Editora na Rua de O Século nº 34, antiga redacção de «A Capital».
Nada neste livro de Paulo Martins (n.1962) me é, nem pode ser, indiferente. Desde logo a citação de Norberto de Araújo, ilustre jornalista: «Os jornais, a fogueira que arde e que queima – ilumina daqui a cidade e, nas suas faúlhas que desencontrados ventos nem sempre levam bem, aquece em redor.» Há nos jornais uma mistura de pessoal e de público: «Por isso os apelidos Coelho (Diário de Notícias), Silva Graça e Pereira da Rosa (O Século), Burnay e Bordalo Pinheiro (Jornal do Comércio) Vieira Pinto e Ruella Ramos (Diário de Lisboa), Balsemão (Diário Popular) percorrem as páginas que se seguem. As famílias perdem influência à medida que se consuma o assédio da Banca, entre final dos anos 1960 e o início da década seguinte».
Falar de jornais é falar de Censura: «Ferreira de Castro conta um episódio em torno de uma reportagem da sua autoria, nas minas de São Domingos, detidas por uma empresa inglesa, que foi integralmente suprimida pela Censura. Pereira da Rosa disse ter lido o texto duas vezes, não encontrando razões para o corte. Debalde se queixou pelo telefone ao general investido por essa altura em ministro. Percebeu que o director da mina envolvera no caso o embaixador britânico e argumentou que em situação inversa, nenhum representante diplomático ousaria ir ao Foreign Office pedir que o Governo inglês proibisse os jornais de Inglaterra de se ocuparem dum caso semelhante. De nada valeu.» Na página 264 pode ler-se sobre as relações entre patrão e empregado o seguinte: «Havia uma relação muito estreita entre o patrão e o jornalista, confirma Baptista-Bastos. Era também um certo paternalismo e uma certa conivência mas a gente sabia para quem trabalhava e falava diretamente com eles.»
Um aspecto curioso é que os redactores dos jornais desportivos não podiam ser sócios do Sindicato dos Jornalistas até 1972 restando-lhes a filiação no Sindicato dos Tipógrafos. Por isso em 1966 foi criado o CNID para permitir as acreditações do Campeonato do Mundo em Inglaterra. Outro aspecto curioso tem a ver com as palavras do assessor de Willy Brandt que afirmou em pleno tempo do «caso República»: «Se querem ganhar dinheiro nunca metam política na primeira página e não metam também notícias importantes, ponham mulheres e crime.» Por fim uma ideia que permanece, apesar dos anos que passaram: «Num país pequeno e analfabeto, era entre o Bairro Alto e o Chiado que se concentravam não apenas as redacções dos jornais mas também as sedes partidárias – quando não partilhavam o mesmo espaço.»

(Editora: Quetzal, Revisão: Carlos Pinheiro, Preparação: Diogo Morais Barbosa, Edição: Francisco José Viegas, Capa. Rui Rodrigues, Foto: Arquivo Municipal, Produção: Teresa Reis Gomes) 

[Um livro por semana 620]

quarta-feira, 29 de maio de 2019

«Um passado imprevisível» de Ernesto Rodrigues



Ernesto Rodrigues (n.1956), poeta, professor, ficcionista, crítico, contista, tradutor e ensaísta, é um fascinante e poliédrico «Homem de Letras» que publica ficção desde 1980 - «Várias bulhas e algumas vítimas». Este romance de 153 páginas termina com duas frases («Esta é a minha pátria. E o fim desta vida de romance.»)e organiza-se em três divisões:  «Budapeste» (da página 7 à 61), «Índico» (da página 63 à 104) e «Turvação» (da página 105 à 153).
O ponto de partida é uma frase da página 8 («Eu só queria atravessar o passado») mas a viagem não é apenas uma revisitação a uma cidade na qual o autor do livro foi professor de Português entre 1981 e 1986. A viagem engloba dois países, duas cidades e dois continentes: Hungria e Moçambique, Budapeste e Maputo, Europa e África. A dupla inscrição (vida/literatura) está na página 26: «A vida é muito estranha. Suspendamos a emoção e sempre agarrado à filha, face contra face, em respiração que vai secando rios de lágrimas, vejo como, da literatura à vida, há uma diferença abissal.»
O lado da vida está por exemplo na dedicatória da página 5 (Rózsa Zoltán e Pál Ferenc) o primeiro dos quais conheci em amena cavaqueira com Jacinto Baptista e António Torrado. A intercepção é dada por exemplo na página 7: «Eu vinha de uma longa busca e de Trieste, Italo Svevo no olhar.» Na página 11 surge uma advertência: «Voltar aos lugares onde fomos felizes torna-nos lentos.» Mas já nas páginas 7 e 8 surgia a oposição entre duas ideias. Por um lado «A mentira salva a Humanidade», por outro lado «A mentira perde-nos».
Este livro mostra como a Literatura pode ser a mistura feliz de sangue pisado e exercício, vida e estilo. Na visita ao passado o autor depara com um Professor em fim de carreira e define-o como membro de «uma geração fora de moda» para concluir: «Ninguém antecipa o alcance dos seus actos. Somos seres do imediato, bebendo tudo da fonte do instante que nem sabemos se voltará a encher.»      
A viagem não é apenas revisitação mas, ao mesmo tempo, uma certa moral de História: «Nessa época, éramos contemporâneos da História. Protagonistas eram poucos. (Sê-lo-á esta lágrima de tinta?)» Depois de ler na página 125 que «A beleza do mundo está bem repartida» talvez seja esta a chave perfeita para o romance - «lágrima de tinta» . Porque o sangue pisado da vida se mistura com o exercício do estilo em doses perfeitas.

(Editora: Gradiva, Capa: Armando Lopes, Editor: Guilherme Valente)

[Um livro por semana 619]

sábado, 18 de maio de 2019

«Fogo no mar» de João Falcato com uma capa de Victor Palla



Partindo de «O todo ou o seu nada» de Amadeu Lopes Sabino (Editora Bizâncio) cheguei a este livro é de 1953; conta a história da viagem do cargueiro «Mello» que uma explosão inexplicável consumiu em fogo nas águas sombrias do mar. O livro (Coimbra Editora) é dedicado à memória dos companheiros do autor que encontraram a morte no incêndio do cargueiro português a meio de uma viagem entre Buenos Aires e Lisboa: Álvaro Firmo da Silva, Alberto dos Santos Faria, Álvaro de Almeida Costa, Henrique Torcato Craveiro, Luís Alexandre Júnior, João da Silva Moreira, José Pereira, Herculano José, Joaquim Marques Machado, António Varela, José Simões, António Pais, Joaquim da Silva Pracana, José de Sousa Frade e José Fernandes d´Assunção. Há uma cantiga na página 28: «As ondas do mar são brancas / E no meio amarelas / Pobrezinho de quem nasce / Para morrer no meio delas» mas as primeiras linhas do romance são uma bela crónica de despedida: «Um primeiro puxão fez estremecer o «Mello», negro, sujo de carvão. Em movimentos descompassados, os rebocadores arrastam o corpo inerte e bojudo do navio, da beira do cais. Içada a escada do portaló, desligados os cabos que eram nervos que o faziam ser terra, prático na ponte, mansamente, em estremecimento de quem deseja maior pressa, o seu corpo é levado para o meio da doca. A ponte de Alcântara que fecha a saída, começa a girar numa permissão de passagem solicitada pelo som cavo do apito. Barcos pequenos saúdam com um zumbido quase imperceptível e seguem apressados o seu caminho na água suja da doca. AS chaminés dos rebocadores vomitam fumo negro, espesso, quase sólido. Sentado numa pedra do cais, um pescador solitário tira o chapéu encardido, num mudo desejo de boa viagem.» (fim de citação)           

[Crónicas do Tejo 163]

quarta-feira, 8 de maio de 2019

«O leitor irresponsável» de Vergílio Alberto Vieira



Vergílio Alberto Vieira (n.1950) tem vindo a juntar em livro desde 1993 os seus trabalhos de ensaio e crítica literária publicados com regularidade no Jornal de Notícias (1987-1998) e no Expresso (1999-2000) além de outros jornais e revistas mas adverte que tal tarefa é «dar nome a esse crime sem castigo, que leva alguém a reunir, em livro, o que sobre livros escreveu ao longo de anos, não é questão de profissão de fé, mas ofício de aprendiz sem mestre».
Se eu tivesse de sintetizar este livro de Vergílio Alberto Vieira (204 páginas) poderia dar-lhe o nome de «Almanaque Literário» tal como Carlos de Oliveira fez em «O aprendiz de feiticeiro», um livro de 282 páginas no qual o autor de «MIcropaisagem» revisita livros de autores tão diversos como Marguerite Yourcenar, Afonso Duarte, Abel Botelho, Fernando Pessoa, Raul Brandão, Erskine Caldwell, Alves Redol, José Gomes Ferreira, James Joyce ou Tchekov.
Neste livro de Vergílio Alberto Vieira são comentados, entre outros, livros de Louis-Ferdinand Celine, William Blake, Pablo Neruda, Ernest Hemingway, Graham Green, Jorge Luís Borges, Italo Calvino, Paul Celan, António Rebordão Navarro, Fernando J.B. Martinho, Pires Laranjeira, José Emílio-Nelson, Luís de Miranda Rocha, Rosa Alice Branco, Amadeu Baptista, Isabel de Sá, Orlando da Costa, Fernando Assis Pacheco, João de Melo e Luiz Pacheco.
Tal como Carlos de Oliveira faz um retrato de Alves Redol («Vejo-o meio sorridente, a boina basca puxada sobre a testa, a conversa pausada (afabilidade, camaradagem, aflorando palavra a palavra), o trato sereno, quase tímido, dum camponês civilizado que conheceu muito mundo e muito meandro sem desgastar toda a pureza inicial.»), Vergílio Alberto Vieira retrata Al Berto: «Nascido em Coimbra pelo ano de 1948, Al Berto , pseudónimo literário de Alberto Raposo Pidwell Tavares fez obra ao arrepio da sensatez, criou os seus infernos, recusou a quietude, foi homem  de paixão e, se nele havia um «louco» como Emile Cioran admite que há em nós, expulsou-o, cumprindo-se como destino.» Porque os livros não nascem sozinhos, são escritos por um autor.

(Editora: Quarto Crescente, Capa: Imhoteb, Bronze, Revisão do texto: Jorge Fernandes, Composição: César Antunes)

[Um livro por semana 618]