quarta-feira, 31 de março de 2021

«O cão atravessa a cidade» de António Manuel Venda

O livro de 89 páginas e 25 poemas é feito de retratos. Logo na página 9 se lê «o cão insiste para tirarmos uma fotografia» e na página 64 «lembro-me de tirar uma fotografia ao comboio a sorrir» além de na página 31 o poema «tirar uma fotografia» à rosa vermelha. Há nos poemas deste livro a linha «Vida -Literatura» pois o cão do título e do primeiro poema faz o transporte de três mundos na cidade, lugar da luta entre o rural e o urbano. Vitorino Nemésio lamentou: «Já não se faz poesia descritiva e é pena!» Em «O bicho harmonioso» pergunta: «A poesia do abstracto? / Talvez. / Mas um pouco de calor / A exaltação de cada momento / É melhor.» E, a seguir, responde: «Uma ideia só como sangue/ de problema. / No mais, não. Não me interessa.» Aqui o ponto de partida é a página 31: «a minha terra / o meu país do sul / bem no alto / sobre o oceano.» A base será a página 35: «imaginei que podia /estar apenas a começar / como se toda a vida vivida / não passasse do meu nascimento /que julgava tão longínquo /e bem arrumado / numa caixa de sapatos /da memória» e termina «não haveria de ser nada». Este «nada» que faz parte do «lugar-comum» tem a ver com o poema da página 43 que conclui: «o que escrevi/se calhar para nada.» Portugal é o país onde o morto fala, o cantor não canta, Bulhão Pato é conhecido pelas amêijoas, Bocage pelas anedotas e Camões pelo olho perdido. No tempo de Cesário Verde o mais conhecido era Cláudio Nunes, no tempo de Eça de Queirós o mais famoso era Pinheiro Chagas e no tempo de Camilo Pessanha o popular era Augusto Gil. Uma guerra perdida entre ser conhecido e ser importante. Perante o sistema cultural do nosso país, várias são as possibilidades. Na página 16 afirma o autor: «mesmo assim não tenho vergonha do meu país do sul e das montanhas.» Mas o «Poseidon» da página 48 era quase o nome do navio no qual Manuel Teixeira-Gomes, desiludido e revoltado com o sistema cultural, embarcou para o seu exílio em Bougie. Portimão é muito perto de Monchique; tem tudo a ver com a Geografia. Logo na página 3 numa espécie de «porta» do livro, o autor cita José Gomes Ferreira (1900-1985) que considera a realidade um sonho absurdo. Já Camilo Castelo Branco (1825-1890) tinha afirmado que «a Poesia não tem presente; ou é sonho ou saudade».  António Manuel Venda (n.1968) organiza nestes poemas a resposta a essa pergunta de José Gomes Ferreira. No poema mais longo do livro (página 51- página 62) a oficina do Poeta é a mesa do café e o ponto de partida são dois objectos (o bolo e o sumo de laranja) mas o alcance mais profundo é chegar muito longe da chamada circunstância. Dito de outra maneira o «homem tão estranho» é o autor do poema que viaja nas águas e nos mares da imaginação entre a paisagem da parede do café e a paisagem da Serra de Monchique. O poema faz um ajuste de contas com a realidade: a moeda única, Schengen, Maastricht, o busto de Cristiano Ronaldo mas o pretexto é uma infracção de trânsito que nunca se chega a saber se é real ou sonhada. A realidade é dolorosa e uma das maneiras de a abordar é a ironia. Por exemplo na página 21 o poema refere um «ajuste directo» ou uma «direcção geral de meteorologia e desperdícios tropicais» ou ainda na página 84 se o poema lembra os anões mascarados e conclui: «os baixinhos reinam por uma noite» ou por fim na página 29 quando o vereador não responde mesmo tratado pelo primeiro nome.

(Editora: On y va, Foto do autor: Dora Nogueira, Grafismo e paginação: João Paulo Fidalgo)

[Um livro por semana 664]

 

sábado, 20 de março de 2021

«Que cousa é chanfana?» de Fernando-António Almeida

Com o segundo título de «perguntou o Príncipe do Brasil …e os Poetas responderam com sonetos»,  o autor Fernando-António Almeida (n.1939) surge nas 179 páginas deste livro como cicerone qualificado para uma viagem no tempo e no espaço não só do «torneio poético» motivado pela pergunta do príncipe D. José mas também aos vários locais de Lisboa do século XVIII como a ermida de Santo Amaro, o Malcozinhado, o Campo de Santana, as tascas e tabernas como o Isidro e outras «casas de pasto». O príncipe D. José (1761-1788) era neto de D. José I e é uma figura curiosa da História de Portugal. Educado para reinar em teoria com o Marquês de Pombal na sua sombra, acabou por morrer novo sem nunca ter subido ao trono. Era casado com uma tia (irmã da mãe) que era catorze mas velha do que ele mas não é de estranhar pois a sua mãe (D. Maria I) era casada com um tio (irmão do pai).

Como convite à leitura fica um excerto do livro: «Ora, justamente, essa literatura de raiz popular, de tradição medieval, marginal, vai irromper na época que nos ocupa. Esta época em que o príncipe D. José formula, mais ou menos inocentemente, a pergunta «Que cousa é chanfana?». Nesta época em que poetas, arvorados de nove sonetos, lhe procuram dar poética resposta. Conservando a forma clássica e disciplinada, vão já, todavia, verter vinho novo em odres velhos. Uma época da temática transgressora ao nível do assunto tratado e da linguagem utilizada. Uma época de libertinagem. Assim  a temática de cariz sexual surge sem ambiguidade e mesmo com carácter brutal: pensemos num Bocage, pensemos num Lobo de Carvalho.»´´

(Editora: Memoria 2019, Impressão e Acabamento: Tipografia Lousanense)

[Um livro por semana 663] 


domingo, 7 de março de 2021

«Ulisses» de James Joyce ou um dia que simboliza a vida

 


Embora a referência óbvia do livro «Ulisses» seja a «Odisseia» de Homero do qual James Joyce «aproveitou» os episódios de Telémaco, Nestor, Calipso, Nausica, Circe, Ítaca e Penélope (entre muitos outros). O ponto de partida do livro é o dia 16 de Junho de 1904 que é afinal para Stuart Gilbert «um dia muito semelhante a qualquer outro» mas o resultado é, segundo João Palma-Ferreira, autor da tradução portuguesa, dois anos de trabalho entre 1987 e 1989, «um texto difícil que por vezes deixa o leitor perplexo, tal a forma deliberadamente elaborada e exaustiva com que evita as ciladas da narrativa convencional».

Para quem gosta de sínteses pode ficar esta síntese do autor do livro em 1920 numa carta a Carlo Linati: «a história de um dia que simboliza a vida». Vejamos a página 55 do Ulisses de James Joyce (1882-1941) Edição Livros do Brasil: «Feio e fútil: pescoço esticado e cabelo encrespado e uma nódoa de tinta, um rasto de caracol. Não obstante, alguém o tinha amado, levara-o nos braços e no coração. A não ser por isso a corrida do mundo tê-lo-ia calcado a pés, caracol esborrachado e sem ossos. Ela amara-lhe o sangue aquoso e fraco que do dela fora escoado. E isso então era real? A única coisa verdadeira na vida?»

Livro escrito entre Trieste, Zurich e Paris nos anos de 1914 a 1921, o pano de fundo da acção inicial é a Torre Martello, debruçada sobre a baía de Dublin, a capital da Irlanda. Claro que a página 55 é apenas a página 55 mas como convite à leitura julgo estar bem para o assunto, afinal um dos livros mais importantes do século XX. Um grande livro que por acaso é também um livro grande…    

[Crónicas do Tejo 255]

 

terça-feira, 2 de março de 2021

«Não vos torne a noite escura» de Vergílio Alberto Vieira

 


Vergílio Alberto Vieira (n.1950) escolheu para título deste seu recente livro de 51 páginas um verso da carta III de Francisco Sá de Miranda. Se lhe juntarmos a Bíblia, Hermann Broch, Hadrianus, Dante, Camões, Mário de Sá-Carneiro e Vergílio Ferreira, ficamos com uma ideia de como esta se trata de facto de uma poesia culta, grave e erudita que, ao mesmo tempo, «dialoga com Mallarmé e cita nomes mitológicos».

Adverte Cristina Robalo Cordeiro, autora do prólogo: «A sequência de trinta estrofes, dividida em duas partes iguais, pode ser igualmente lida como uma longa inscrição funerária, tal como o epitáfio composto por Hadrianus para o seu túmulo.»

Ou dito de outra maneira: junta a Vida, a Morte e a Poesia. Começa pela Vida («Elas são a mães/ filhas da morte que a dor/ em terra incógnita concebeu/ sopro de extinta luz/ na lâmpada de barro/ elas são as mães.» Passa também pela Morte: «Ninguém dirá /depois de tornar não voltaremos/ quando o mundo se perder/ desse buraco negro que além/ descobriu ser agora para sempre/ ainda não até ao fim.» Entre a Vida e a Morte, surge a Poesia: «Morreu cantando o amor/ perdido o que cem anos tinha/ antes do sonho trespassar/ a flecha e a colina o arco/ mil árvores morrem/ subindo ao céu.»

(Editora: Crescente Branco, Prólogo: Cristina Robalo Cordeiro, Desenhos e concepção gráfica: Armando Alves)

[Um livro por semana 662]