quarta-feira, 29 de dezembro de 2021

«História do Sporting Clube de Portugal» de Luís Augusto Costa Dias com Paulo J.S. Barata

Com o subtítulo de «Uma nova abordagem das origens aos anos Alvalade» este livro de 254 páginas tem o ponto de partida na página 12: «Esta História do Sporting Clube de Portugal é, a vários títulos, nova, antes de mais porque ao inserir a história do clube na história da cultura e do desporto em Portugal, a inscreve na Nova História Cultural, que se coloca no social e radica a análise de factos, pessoas e instituições nos contextos mais amplos das sociedades. Apesar de se tratar de uma nova abordagem, não se pretende fazer aqui uma reescrita de história do Sporting, antes a sua renovação e aperfeiçoamento.» O facto de esta «era» da vida do Clube ser chamada «Anos Alvalade» assenta em Salazar Carreira, conhecido atleta e dirigente que escreveu o seguinte em 1922 no Boletim do SCP: «Quando um dia se escrever a história do nosso clube, já cheia de páginas de glória, ligando intimamente a sua vida à vida do desporto português, salientar-se-á formidavelmente a influência indirecta de José Alvalade no desenvolvimento do desporto nacional.» Afirma-se na página 61 «José Alvalade não foi apenas um criador de instalações desportivas; foi sobretudo um excelente organizador, obstinado, rigoroso, meticuloso. Foi ainda um conceptualizador, um empreendedor e um concretizador de planos. As suas ideias veiculam uma nova noção de desporto e de prática desportiva.» Eis uma citação do seu texto de 1910: «O carácter português é orgulhoso e sobretudo pouco paciente. O seu desideratum é conseguir em pouco tempo, ou para ser mais exacto, é conseguir mais do que pode ser.» Do Sport Club de Belas em 1902 ao Campo Grande Foot-ball Club em 1904 e ao Sporting Clube de Portugal em 1906, é uma «viagem» a não perder.       

(Editora: Contraponto, Edição: Paulo Morais e Raul Couceiro, Revisão: Luísa Pinho e Cristina Dionísio, Design da capa: Diana Cordeiro)

 [Livros e Autores 30]


domingo, 12 de dezembro de 2021

Para acabar de vez com a violência doméstica

Neste trabalho de «Ler e depois» como lhe chamou o ensaísta Óscar Lopes, recebo livros desde Agosto de 1978 quando comecei no «Diário Popular». Estes anos passaram num instante Um dos mais recentes livros que me chegou às mãos foi «Poemas para acabar com a violência doméstica» de Anne Quetzal, edição da Rosmaninho-Editora de Arte de Santarém. O título precipita em mim uma dissertação que engloba a chamada violência contra idosos – a que eu conheço melhor. Um certo jornalismo de castanholas e pandeiretas usa e abusa na Imprensa, na Rádio e na TV da expressão «violência doméstica» aplicada apenas e só a um dos lados da questão como se só existisse agressão da parte do homem contra a mulher ou do jovem contra o mais velho. No caso da chamada violência contra o idoso quero lembrar dois factos do meu conhecimento. Uma senhora de Penedono desloca-se com frequência com a filha e o marido para tratar de análises no Centro de Saúde onde a filha vive. Faz força e finca-pé para levar com ela uma galinha dizendo que «Os ovos do supermercado não prestam e só como ovos da minha galinha!» Claro que os tapetes do automóvel são obrigatoriamente lavados pois o cheiro e a porcaria são insuportáveis. Outro caso é o de um idoso que durante quatro anos recebeu a visita de um dos três filhos todas as segundas feiras para almoçar com ele. A recepção era invariavelmente esta: «Nunca esperei ser tão desprezado!» Com algum esforço se chega à ideia de que ele referia os outros filhos que estavam a trabalhar em Lisboa e não podiam deslocar-se numa segunda-feira de manhã. Conclusão provisória: a violência existe mas tem um sentido muito diferente do que as pandeiretas e as castanholas teimam em afirmar.      

[Crónicas do Tejo 296]


domingo, 28 de novembro de 2021

«O tempo de todas as incertezas» de Álvaro Ribeiro

Álvaro Ribeiro (n.1946) assina este livro de 605 páginas no qual descreve o seu trajecto pessoal a partir da inspecção em Almeirim e da incorporação nas fileiras do Exército em 15-7-1968 nas Caldas da Rainha, passando por Vendas Novas, Tancos, Vila Nova de Gaia e Espinho antes da partida para Moçambique no navio «Vera Cruz».

O Ministro do Exército falava assim em 1961: «Vamos para combater, não contra seres humanos mas contra feras e selvagens. Vamos enfrentar terroristas que devem ser abatidos como animas selvagens.» O Episcopado Português tinha feito uma advertência antes do início das hostilidades em Angola: «Nesta hora em que o Ocidente parece ter perdido a consciência de si mesmo, Portugal é consciente da sua missão evangelizadora e civilizadora e sofre ao ver que ela não é compreendida nem apreciada e até se tenta contestar-lha.» Dito de outra maneira pode ler-se sobre os Portugueses na página 21: «quanto mais distraídos e analfabetos mais controlável era a situação por parte do regime.» Mais à frente a página 27 indica: «Embarcar para a guerra parecia que nada tinha de dramático, tal a regularidade dom que acontecia. Uns chegavam, outros partiam. Era assim o viver das pessoas que se moldavam aos acontecimentos como se não houvesse alternativas. Elas existiam mas não deixavam de ser também dramáticas e traumatizantes.»

Ao lado e em paralelo com o percurso pessoal, o autor integra os nomes dos oficiais, sargentos e praças com os quais se cruzou nas diversas fases (inspecção, recruta, especialidade, formação de batalhão, embarque, viagem, operações no mato, regresso) e torna deste modo este livro num depoimento no plural, uma espécie de cartografia colectiva onde todos os camaradas de armas cabem e se integram.

O livro termina com uma advertência do autor: «As consequências da guerra na sociedade portuguesa constituem um icebergue cuja verdadeira dimensão e carcterísticas ainda ninguém cuidou de avaliar. Entretanto ele flutua à deriva.»

(Editora: Rosmaninho, Capa: Fernando Veríssimo, Colecção: Documentos para a nossa História)

[Um livro por semana 676]

 

domingo, 7 de novembro de 2021

«Os dedos trans-lúcidos do escrevinhador» de Adalberto Alves

Adalberto Alves (n.1939) celebra 40 anos de vida literária com este livro de 94 páginas cujo título vem do poema da página 81: «Os dedos trans-lúcidos do escrevinhador /saberão do poema aquilo que o peixe/ sabe da água em que vai nadando? /ah, mas o peixe ignora tanto a água /como eu o ar transparente que respiro.» Um dos temas inevitáveis é o Balanço: «Não sei o que é mais doloroso/se o veleiro das palavras desgastadas/se o pulsar desgastante do silêncio…» Outro tema óbvio é o da Vida: «sobre o coração eu tenho um nome/com letras, pesponto do mistério/é nome que os homens difamaram / com perfídias geladas e sombrias / a cada batida certa e compassada /tal nome repetido num sussurro /mal posso ouvi-lo; não consigo encostar o meu ouvido ao peito /mas esse nome, eu sei, é VIDA.»

O poeta, ele mesmo, inscreve-se no poema («Fui a todas nunca me poupei /àquilo que a vida me ofereceu») tal como já se tinha inscrito n página 17 («alguém me perguntou quem és ? /respondi: não sei dizer ao certo») e na página 53: «”ao mundo uma carta escrevo” / a carta que ninguém leu /fala de pena e de enlevo/e essa carta sou eu.» A ironia também está presente no poema da página 28: «… uma gorda ratazana /e acabou num cano de esgoto/apesar de nunca se enganar/e raramente ter dúvidas.»

A única possível resposta à Morte é o Amor («Imaculado e santo seja o Amor») como se lê na página 19: «o alfabeto do Amor é bem curto/ mas serve p´ra dizer o que se queira».

Entre o precário da Vida e o frágil do Amor, só a Natureza continua: «a Natureza jamais pára: fervilha, fervilha e desemboca /cumprindo o plano estabelecido, /nem que seja como surda ou cega ou muda, /no alto dos ares ou no fundo dos mares.»

(Editora: Labirinto, Paginação: Marta Toscano, Prefácio: Ronaldo Cagiano, Capa: Daniel Gonçalves, Coordenação: Víctor Oliveira Mateus e Maria João Cabrita)           

[Um livro por semana 675]

 

quarta-feira, 6 de outubro de 2021

«Os Provérbios dos nossos Avós» de José Alves Reis

Este livro de 311 páginas organiza-se por capítulos (ou temas) de A a Z: Agricultura, Água, Ambição, Amizades e Companhias, Animais, Burros, Casamento, Cães e Gatos, Comidas e Bebidas, Conselhos, Crianças, Deus, Diabo, Economia/Dinheiro, Educação/Cultura, Família, Felicidade, Festas e Romarias, Frutos, Homem, Inveja, Lua e Sol, Mentiras e Enganos, Meses/Estações do ano, Morte, Mulher, Natal, Profissões, Religião, Santos, Saúde, Sorte, Tempo, Trabalho, Velhice, Vida, Vinho, Vizinhos. Sem esquecer «Os provérbios dos nosso avós» que dá título ao volume e ocupa as páginas 7 a 125.

Desde criança aprendi a lidar de perto com uma frase muito usada na região de Alcobaça e que funciona também como um provérbio: «A vida é como a morte de São Bernardo; uns a rir, outros a chorar.» Refere-se a um quadro na parede do Mosteiro de Alcobaça em que um grupo de frades chora e outro toca pífaros e tambores na morte do fundador da Ordem.

Claro que todos os provérbios em geral podem ter um oposto; baste pensar naquele clássico «O bom julgador a si se julga» ao lado de uma adversativa - «Ninguém é bom juiz em causa própria».  

Nesta breve nota de leitura não posso deixar de referir um dos provérbios sobre o Amor («O homem tem a idade da mulher que ama)» e outro muito curioso: «Amar é dar a alguém o poder de nos causar sofrimento» e por fim o da página 77: «O amor começa com um sorriso, cresce com um beijo e acaba com uma lágrima.»

E depois de um adversativa («A felicidade é algo que se multiplica quando se divide») termino com um autêntico programa de vida: «Se achas bom ser importante, um dia descobrirás que é mais importante ser bom.»

(Editora: LITEXA, Capa: Carlota Saraiva de Menezes)

[Um livro por semana 674]

 

quinta-feira, 23 de setembro de 2021

«A PIDE e os seus informadores – O caso de Inácio» de Paulo Marques da Silva

Paulo Marques da Silva (n.1966) depois de «Fernando Namora por entre os dedos da PIDE» (2009), «Condeixa – paisagem, memória e história» (2010), «Deniz Jacinto entre duas paixões – o Teatro e a Liberdade» e «Pois não te resta ainda o Mundo?» (2015) sendo dois livros em co-autoria, surge com este «A PIDE e os seus informadores – O caso de Inácio» (2019) que faz a cartografia tenebrosa dum tempo (anos 30 a 60 do século passado) e de um lugar (Coimbra e seus arredores) inventariando as suas instituições e os elementos que não estavam com o Estado Novo. O ponto de partida é a página 63: «Todos os Organismos Oficiais estão cheios desta gente, tais como: Correios, Hospitais da Universidade, Governo Civil, Câmara Municipal, Polícia Judiciária, Polícia de Segurança Pública, Tribunais, Grémios e Regimentos. As ligações são a toda a hora e momento, a sua acção estende-se por toda a parte e hoje o Estado Novo é arrasado, alto e bom som, em todos os pontos da cidade sem o mais pequeno rebuço. Os jornais da cidade são todos dirigidos por elementos avançados já referenciados e os correspondentes dos jornais de Lisboa e Porto na mesma. Todos os Cafés da cidade são pontos de reunião de elementos avançados que, abertamente, ali fazem o seu trabalho.»

O delírio de Inácio vai ao ponto de chamar «reviralhista» a Afonso Duarte e «comunista» a Joaquim Veríssimo Serrão: «… dentro da Universidade e em grupos desafectos foi bastantes vezes notada a propaganda que o SERRÂO fazia, sendo notória a sua acção avançada» O uso de certas palavras (seita, perlenga) denota não só agressividade mas também ignorância: «O alferes Rosa Neto tinha em seu poder vária papelada e até jornais da Seara Nova». Noutro passo refere o Ateneu de Coimbra: «São maus e rancorosos. É um agrupamento que, num caso de conflito interno, vem imediatamente para a rua, constituindo brigadas de choque.» Para além de propor o encerramento de Clubes e Associações, Inácio critica a pouca firmeza das autoridades: «Como é sabido não se efectuaram prisões por causa dos desmandos efectuados e agora os homens do MUD e comunistas andam a apregoar que se o não fizeram é derivante da fraqueza do Governo que se vê num beco sem saída e até sem prestígio. O tempo do papão e do Tarrafal já passou, dizem.» O Clube fechado em Pereira do Campo vai renascer sob o patrocínio da FNAT: «O estudante Luís Mexia, sobrinho do Dr. Mário de Figueiredo, que eles colocaram à frente, é um pateta mor, sem personalidade alguma. É comido e levado com facilidade por tal «malta» que o tem ali apenas como rótulo. É com estas habilidades que o comunismo vai alastrando e aparece em todos os sectores.»      

(Editora: Palimage, Foto da Capa: Maria João Reis Torgal, Colecção: Raiz do Tempo, Apresentação: Luís Reis Torgal)

 [Um livro por semana 673]


quarta-feira, 8 de setembro de 2021

Dissertação para uma fotografia a preto e branco na eira

Há um homem a sorrir que pega na joeira e, com toda a perícia, faz saltar o feijão e a sua palha para que o vento os separe no ar e assim o regresso à joeira seja apenas dos feijões depois de a palha ter sido levada pela brisa. Esse gesto tem sido repetido ao longo do tempo mas as mais recentes gerações já não o dominam sem sequer o lembram; basta neste caso uma fotografia a preto e branco tirada por uma jovem arquitecta portuguesa nascida em Lisboa no ano de 1978. O protagonista da fotografia nasceu em 1927 e é o avô paterno da autora deste retrato em movimento a aproveitar a brisa do Oceano Atlântico que vem do lado de São Martinho do Porto para limpar a palha do feijão em Santa Catarina. Os tempos modernos alteraram essa gramática de sementeira e colheita, esse calendário da terra entre a chuva do Inverno e o sol do Verão, essa regularidade muito antiga e, afinal, de todos os anos; hoje o feijão aparece nas prateleiras das grandes superfícies em latas com origem na China ou na Tailândia. Passa-se com o feijão o mesmo que acontece com os caracóis: descobriram alguns que os mais baratos são os de Marrocos e, por isso, dão mais lucro a quem os cozinha com cebola e orégãos para os vender em pratinhos nas esplanadas ou à beira do mar. O sabor perdeu-se mas o lucro aumentou em termos exponenciais. Apanhados ao romper do dia nas searas e nos canaviais à beira das linhas de água, os velhos caracóis da minha juventude tinham um travo genuíno que se perdeu para sempre com a chegada de toda esta modernidade comercial. Não há nada a fazer contra isso. Basta o pranto e a lamentação desta crónica povoada de nostalgia e de palavras.       

[Crónicas do Tejo 294]

 

terça-feira, 31 de agosto de 2021

As buganvílias de Marta na ADECO

Passaram já trinta e quatro anos mas tudo permanece igual no recreio da ADECO com as paredes caiadas e os pneus dos meninos em sossego mas por pouco tempo. As buganvílias de Marta são uma afirmação do calendário; o seu esplendor está no coração do mês de Maio prestes a despedir-se do Mundo entre o Dia da Mãe e as primeiras cerejas tão vermelhas como as flores. Aqui, no recanto do recreio dos meninos, só os pneus podem dialogar com a exuberante beleza das buganvílias. Com uma diferença: os pneus precisam de perícia, de velocidade e de destreza mas as flores não precisam de nada; elas já são só por si o maior valor acrescentado à luz da manhã no Jardim Infantil.

Na grande seara de lágrimas e de sangue pisado, de saudade e de distância, as buganvílias de Marta na ADECO são mais que uma imagem e uma memória, são o adubo da nova sementeira que todos os anos se repete no pátio onde os meninos velozes correm ao lado dos velhos pneus. Depois do frio e da chuva no Inverno vem o Sol e o calor da Primavera. Como se fosse também um relógio, o tempo dá a sua luz ao esplendor das buganvílias. É assim como a Música, uma melodia com princípio, meio e fim mas que, mesmo depois do último acorde, não se perde mesmo quando se deixa de ouvir. E continua a cantar, como se fosse um leve sussurro, no coração de cada um de nós. (escrito sobre uma foto de Ana Isabel)

[Crónicas do Tejo 286]


sexta-feira, 13 de agosto de 2021

«Basalto» de Ana Franco

O título do livro vem do poema da página 93: «Basalto, /em ti deixei impressa /a Saudade/ a melodia entre o Mar e a rocha /a paleta de cor e tons…» Há ao longo deste volume de 174 páginas uma dupla inscrição: Natureza e Cultura.

De um lado a Natureza: «Se consultar /o dicionário da alma/impresso está /o encanto. /És mais do que a semente. /Para ti o Mundo/criado foi. /Toda a Natureza /o teu olhar espera.» Do outro lado a Cultura, as Letras e as Artes. Seja Domingos Rebelo e Tomaz Borba Vieira («Se os “Emigrantes” de Domingos Rebelo, pendurado numa das paredes do “Bureau de Turismo”, à guarda do Senhor Silva Júnior me fascinavam no meu tamanho de pigmeu na Vida e na Arte, agora idosa encontro-me diante dos “Regressantes” de Tomaz Borba Vieira. Dilatam-se as pupilas do meu olhar»), seja Lagoa Henriques («Mestre, porque se esconde a sua assinatura na sola do sapato de Fernando Pessoa… Do Fernando Pessoa em bronze porque o de carne, o escrito…todos os dias vivo é e ambos sabem o que mais ninguém sabe.» ou Raul Brandão («As Ilhas desconhecidas mostram bem o teu amor à Natureza por Deus criada») ou ainda António Rego: «Sentei-me no quarto/da minha alma/e perplexa fico /com o seu texto./ Afirmo com/a força do Mar/a cor da lava./A Beleza habita /em si /não em mim. /Agora sei /a cascata/não canta, reza/ As hortênsias /eternas são/ É o mar quem escreve. /A luz que pela janela entra/ a brilhar deixa /o pó que em mim habita. /O orvalho sois Vós/ Senhores das Brisas.»    

O poema da página 54 pode ser lido como mensagem final: «Perdão Pintura! / Perdão Desenho! /Escrava vossa sou. / Mas em liberdade /o Poema flutua».

(Editora: Letras Lavadas, Prefácio: Carlos Melo Bento, Capa; Pedro Garoupa, Palavras de: Anabela Almeida, Vamberto Freitas, Jaime Gama e João Bernardo Rodrigues)

[Um livro por semana 672]

 

quinta-feira, 15 de julho de 2021

«Como se eu tivesse asas – As memórias perdidas» de Chet Baker

O arco temporal desta biografia de Chet Baker (1929-1988) decorre entre 1946 (Washington) e 1963 (Barcelona) o mesmo é dizer entre a recruta no Exército americano e mais uma recaída  - «tudo recomeçou uma vez mais». Na introdução deste livro Carol Baker em 1997 afirma: «Chet Baker não pode ser descrito apenas como músico, toxicodependente, marido ou lenda» pois a sua vida aqui contada em 112 páginas foi «um irremediável caos impregnado de puro génio». No resumo possível deste livro podemos realçar os encontros com as mulheres na vida do músico: Cisella, Sherry, Charlaine, Liliane, Halema e Carol.
Com treze anos Chet passa do trombone para a trompete «porque não conseguia chegar bem às posições mais em baixo» o que prova que o acaso tem muita força. Terá sido por acaso que descobriu a droga: «O Andy foi também a primeira pessoa que me fez descobrir a erva, abençoado seja.» Em 1946 entra com 16 anos para o Exército americano, torna-se amigo de um companheiro de instrução e sente a sorte do seu lado: «Eu e o Dick fomos os únicos destacados para a Europa no nosso regimento; todos os outros foram enviados para o Japão e para a Coreia.» Na sua viagem para Bremerhaven descobre a loucura: «Como não havia álcool para beber, alguns tipos misturavam Aqua Velva e sumo de frutas. De tanto engolirem aquele cocktail tóxico à base de aftershave alguns ficaram cegos.» Na Alemanha tudo era possível: «Qualquer soldado podia mandar para um Volkswagen conduzido por um alemão (desde que o motorista estivesse sozinho) e este levá-lo aonde quer que fosse por cinco ou seis cigarros.» É em Berlim que descobre Cisella: «Ela e a irmã tinham sido enviadas para lá pelos pais na esperança de que viessem a conhecer um soldado – de preferência um oficial. O plano era casarem ou, no mínimo, receberem comida, roupa e dinheiro desse militar.» Forte o encontro com Charlie Parker no Tiffany Club : «Senti-me pouco à vontade e muito nervoso quando ele perguntou à assistência se eu estava lá e se podia subir e tocar alguma coisa com ele.»
Fica apenas uma ideia deste magnífico livro de memórias que não se pode perder.


(Editora: VS Vasco Santos, Design: João Bicker, Revisão: Carina Correia, Tradução: Sofia Castro Henriques)


[Um livro por semana 671]
 

quarta-feira, 30 de junho de 2021

«Os Tripeiros» de António Coelho Lousada

António Coelho Lousada (1828-1859) não foi «um jornalista de banca» nas colaborou em diversos jornais e revistas do Porto como A Lira da Mocidade, A Grinalda, Miscelânea Poética, O Bardo, Braz Tisana, Clamor Público, A Esmeralda, O Nacional, O Comércio do Porto ou A Península. A sua vida foi marcada pela paixão por Maria Emília Braga, irmã dos escritores Alexandre e Guilherme Braga, falecida em 1850. Arnaldo Gama considerou-o «Um homem de talento», Pedro da Silveira lembra-o como «Um moço triste, preso à lembrança de noiva» e Camilo Castelo Branco viu nele «uma inteligência que será aqui a primeira.» A narrativa arranca no ano de 1384 quando, perante o cerco castelhano a Lisboa, o Mestre de Avis envia Rui Pereira (tio do Condestável) ao Porto a pedir auxílio aos burgueses da cidade. Não é fácil tal tarefa pois vozes se levantam contra («Se os de Lisboa carecem de nós, nós não carecemos deles»)  até que um discurso serena os ânimos: «Meteram-vos na cabeça que vos queriam matar à fome porque se embarca a carne na esquadra mas não se lembrou ninguém que todos os miúdos cá ficam!» Segundo Camilo Castelo Branco em Os Tripeiros «sublimemente se explica o epíteto que alguns palermas cuidam soar indecorosamente para os netos da valente raça de portuenses».

Tal como refere o título do sexto capítulo este «romace-crónica» cruza no seu articulado «causa pública e coisas particulares» em 165 páginas. De um lado o Porto: «O Porto tinha de tudo: súbditos da coroa e súbditos da mitra e moradores que nem reconheciam uma nem outra; havia cristãos, mouros e judeus. A aljama era a mais pobre; a esnoga era a mais rica; a cruz era a mais forte.» No pano de fundo geral nascemos conflitos particulares, os amores de Fernando/Irene ou João/Garifa e surge uma reflexão sobre o Amor («As mulheres lucram menos com o que recebem do homem em geral: não as compensamos.» ) ou dito de outra maneira («A pobre não sabia que o amor não se traduz bem em palavras») ou ainda («maior feitiçaria que a do amor não pode haver») e conclui, dirigindo-se aos leitores: «os que são casados, o são por amor e os solteiros e as solteiras ainda não deram um sorriso, um olhar a dote algum de boa soma, simplesmente pelo dote e nada mais». Voltando ao lado social da narrativa, lê-se na página 126: «A poesia nessa época era tida em grande conta e as atenções da assembleia voltaram-se para o bardo.» E na 148 se lê: «as mouras por aqueles tempos roubavam às cristãs bastantes corações, tanto de nobres como de peões, o que as obrigava a crer em poderes ocultos para não se confessarem derrotadas nos encantos.»

(Editora: Associação de Jornalistas e Homens de Letras do Porto, Prefácio, notas e revisão: José Viale Moutinho, Foto: João Paulo Coutinho)

 [Um livro por semana 670]


terça-feira, 15 de junho de 2021

«O intervalo entre o raio e o trovão» de Eduardo Jorge Duarte


Depois de «Montanário» (2017), de ver contos publicados no «Le Monde Diplomatique», no «Jornal de Monchique» e em «Uma coruja nas ruínas» (2018), Eduardo Jorge Duarte (n.1982) estreia-se na Poesia com este «O intervalo entre o raio e o trovão», título do primeiro poema do livro de 84 páginas: «Parecemos perdidos no mundo. /No intervalo entre o raio e o trovão. / Perplexos na tempestade, /Contamos cada segundo /Que vai da luz da solidão/Ao ruído da nossa humanidade. / E só após o estremeção /Lembramos que a vida/ É uma corrente de ar comprimida / Entre o estrondo e o clarão.» No poema da página 21 surge um outro olhar sobre a vida: «Trezentos e sessenta e cinco dias de velhice/ Inteiros, vividos em casas decimais. / O destino bateu-lhes à porta e disse /Que a dor, o amor e tudo o mais/ Que neles se cumprisse /Eram milagres fatais /Da meninice /A morrer de causas naturais.»

Um dos aspectos fascinantes neste livro de estreia é a lucidez como quando o Poeta fala consigo mesmo («Também morrerás, poeta, /Fica descansado») ou fala da pressa como inimiga da Poesia ( «Era qualquer coisa que nos acontecia /E para a qual não tínhamos uma definição /Nenhuma palavras lhe servia.») ou ainda sobre o acto de ler: «Não tenho pressa /O caminho é em frente /Uma casa não se começa /Pela telha mais recente /Como um verso delicado / É um modo alvoroçado /De dizer um sentimento urgente. /O meu trabalho é paciente /Percorro livros, tapo cada buraco /Deixado aberto pelo escritor. /A palavra é o meu fato-macaco: /Sou leitor.»

Numa simples nota fica o poema da página 28, um programa completo: «Deixa tocar o poema/Dá-lhe o tom e a voz que entenderes. /Se for coisa de saudades ou problema /De amigos ou de mulheres /Ouve-o, deixa-o falar sossegado /Até que o sentimento mais limpo se revele /E saibas então entrar na pele /Daquele que não vês do outro lado.»

Pata terminar o poema da página 57 que conclui: «Entre versos fúteis e opacos /Até um cego pode ver a voz de Deus.»

(Editora: On y va, Foto do autor: Luís Costa, Capa: Cristina Viana, Grafismo e paginação: João Paulo Fidalgo)

 [Um livro por semana 669]


terça-feira, 25 de maio de 2021

«Contos Municipais» de António Manuel Venda

António Manuel Venda (n.1968) organiza nestes dez contos uma memória, um decálogo, uma radiografia de um determinado município no qual o insólito convive com o trivial, o vulgar com o invulgar, o estranho com o comum. Como pode ler-se na contracapa: «há um presidente, alguns vereadores, os inevitáveis técnicos, uma empregada de limpeza, um tipo da inspecção (da capital), um ouriço-cacheiro com um cargo que não é nada de deitar fora, um bruxa, o diabo, secretárias, amantes, uma toupeira de risca azul, um ladrão, uma «préfeita» e pouco mais».

No conto «Ligação umbilical» a geminação municipal é para ser feita com um afinal inexistente município do Brasil: «Claro que o município de Tupirim de Parapapá não existia mas nunca ninguém se tinha preocupado em ir comprovar como uma simples busca num atlas.»

No conto «As grandes opções do plano» trata-se de um vereador e de uma assessora descobertos por uma empregada de limpeza os dois em cima de uma mesa da sala de reuniões a «tratarem das grande opções do plano». Depois de várias peripécias, a empregada de limpeza passa a auxiliar de acção educativa e no fim acrescenta: «Tenho é ideia de que a menina estava por cima».

Em «Então o homem já explodiu ou não?» uma nova vereadora queixa-se, por exemplo, de: «no seu município havia o costume, que classificou como «medieval», de o edifício da câmara fechar no dia dos anos do presidente., mesmo que este não fosse sábado, domingo ou feriado.»

Fica uma ideia apenas aproximada do livro de 87 páginas com dez contos que sem deixarem de ser municipais como refere o título tratam acima de tudo do factor humano que marca o fio da narrativa: o município é um pequeno mundo com sua luz e sua sombra, seus conflitos e entendimentos, suas guerras e seus momentos felizes.

(Editora: Just Media, Capa e grafismo: Paulo Escrevente, Imagem da capa: António Manuel Venda, Foto do autor: João Andrés, Apoio: Junta de Freguesia de Monchique)

 [Um livro por semana 668]

terça-feira, 11 de maio de 2021

«Um piano ao fim da tarde» de Soledade Martinho Costa


Soledade Martinho Costa estreou-se na Poesia em 1973 («Reduto») e organiza as 185 páginas deste livro em nove sequências: De mim, Do amor, Da infância, Da poesia, dos poetas, Do Natal, Do país, De Lisboa, Dos outros e Quatro retratos – Ribatejo, Vila Franca de Xira, Nazaré e Sintra. O volume abre com uma citação de Federico García Lorca: «Todas as coisas têm o seu mistério e a poesia é o mistério de todas as coisas.» O poema da página 14 dá título ao livro: «O sopro da distância / Traz-me o som sem palavras /De um piano. / Fecho os olhos e tenho a certeza /De que alguém, ao longe /Toca para mim.» Entre o precário da Vida e o inevitável da Morte, só o Amor responde: «Olhar-te devagar /Reter as tuas mãos /Dizer teu nome / Beber das palavras /Com que fazes /Mudar em madrugadas /O sol-posto /Toda a distância /Incenso, timbre, gosto.»

Como Camilo Castelo Branco afirmou «A Poesia não tem presente; ou é sonho ou saudade» e aqui o passado tem vários registos. Por exemplo pessoais («Ajuda-me a aceitar o que não quero / A ter por companhia quem não conheço») ou «Não sei se eram os corpos das mulheres /Engolidos pelas grades dos portões /Se das fábricas a estridência dos apitos /Ou as sirenes dos barcos junto ao cais». Ou então dois colectivos. O da página 57 «É preciso ter sofrido /Ter sentido na alma /A mágoa /A impotência/ Para poder dizer /Que a vida nos engana /Que não é /Aquela rosa sem espinhos /Que a nossa primavera imaginou.» Ainda o da página 122, a memória dos homens que se ausentavam do Alentejo para pedir esmola: «Lembro-me /De os ver passar na minha rua /Em grupo/Grupo pequeno/ Três a quatro homens /A capa alentejana pelos ombros.» Perante os sentimentos contraditórios, amor e repulsa perante a Vida, o poema assinala na página 114: «A vida que me arrasta e me fascina /Embora disso me acuse e me arrependa.»

O futuro é uma advertência: «Se a vida não me deu /O que era justo/ Deixai-me dormir assim/ Sozinha e fria. /Agora /Não preciso mais /De companhia.» Entre o passado e o futuro, surgem as palavras e o seu projecto: «Fazer com elas uma arma / Ou uma pomba /Um lamento como um eco num poço/ A tranquilidade de um aceno/ Uma lágrima que se retrai/ Um sorriso que se esconde.» Sendo autora para a infância e juventude, não surpreende que Soledde Martinho Costa assinale os massacres de Alepo («De todas as palavras que o coração conhece /Nenhuma poderá expressar com sílabas exactas/ A visão da morte de um anjo à flor do mar») ou Shatila e Sabra: «As crianças condenadas que contestam /braços pendentes e lágrimas no rosto/ que se fale de paz e que no mundo/ sob o peso deposto nos seus ombros/ o homem se recuse a ser poeta/quando todas as crianças são poemas.»

(Editora Sarrabal, Capa: Pierre-Auguste Renoir, Revisão tipográfica: L. Baptista Coelho)  

[Um livro por semana 667]

 

segunda-feira, 26 de abril de 2021

«Florir na Charneca» de José Correia Tavares


José Correia Tavares (1938-2018) estreou-se nos anos sessenta do século XX com «Dádiva» (1961) e «A flor e o muro» (1962) e este recente «Florir na Charneca» é o seu segundo livro póstumo, tendo sido escrito na Charneca de Caparica numas férias de Verão. Conta com 90 páginas e divide-se em quatro sequências: «Balanço provisório»,«Fio de prumo»,«Com peso e medida» e «Tudo em aberto».

No prefácio José Manuel Mendes situa a obra de José Correia Tavares como exprimindo «uma tensão criativa entre as tradições fono-rítmicas, sentenciosas efabulatórias com origem popular, que renovou nos temas e formas, sobretudo ao eleger a quadra modo dilecto de respiração em verso, e a poética contemporânea, investida no trabalho da linguagem, numa busca das novas possibilidades do realismo, na abertura a instâncias sem fronteiras – da matriz lírica a um pendor sócio-interventivo com lugar para o humor e para a sátira.»

Dois exemplos dos poemas pessoais, digamos do lado do «eu»: «Já não tenho a energia / De quando era adolescente / Mas, no amor, na poesia, / Basta querer, vou à frente.» ou então «Sereias ias buscar /Uma ou duas sempre tinhas, /Velho, agora, frente ao mar /Riem de ti as sardinhas.»

E dois poemas desta vez do lado colectivo, o do «nós»: «Qualquer coisa como isso /Nada mais se pretendia/ Mas, daqui levou sumiço/ O que foi democracia» ou então «No país sem berbicacho, /Diria, de norte a sul, /Bem raro será o tacho /Que não tenha saco azul.»

(Editora: Húmus, Foto e apresentação: Natércia Tavares, Prefácio José Manuel Mendes, Apoio. Câmara Municipal de Almada)

 [Um livro por semana 666]

 

quarta-feira, 14 de abril de 2021

«Almanaque da Língua Portuguesa» de Marco Neves

Declaração de interesses: sou um apaixonado por almanaques, tenho uma vasta colecção, consegui o do meu ano de nascimento (1951) e espero publicar em 2021 um livro baseado no conceito de almanaque para celebrar os meus 50 anos de vida literária. Tenho também a «Miscellanea» de Miguel Leitão de Andrade, «Os Narcóticos» de Camilo Castelo Branco e «O aprendiz de feiticeiro» de Carlos de Oliveira. Não estou mal…

O Dicionário de António de Morais Silva (1988) indica como significado de «almanaque»: «calendário com os dias do ano, festas, feriados, etc.; folhinha, Livro que contém indicações úteis, trechos de literatura, resenha de acontecimentos, poesias, anedotas, charadas, etc.; anuário.»

Sobre o «Almanaque» de Marco Neves (n-1980) que é o seu décimo livro, apenas algumas notas. As palavras mais bonitas estão na página 194: saudade, amor, mãe, felicidade, mar, menina, borboleta, flor, Portugal, amizade paz, melancolia e livro. As mais feias estão na página 158: badalhoco, escroque, cônjuge, ódio, sovaco, escarro, corrupção, porrada, conspurcar, nauseabundo, furúnculo e picheleiro. Também as palavras mais pequenas estão na página 195: «bá, cá, dá, fá, gã, há, já, lá, má, na, pá, rã, Sá, tá, vá, Xá, zá.» Os erros mais comuns cabem na página 118: «fizes-te, prontos, á, concerteza, quaisqueres, subir para cima, a gente vamos, haviam muitas pessoas, há x anos atrás, fizestes, à/há e hades».

Sobre o Crioulo há uma possível origem («crias, crianças, criados, crioulos») e sobre o Português pode ler-se na página 137: «Antes do latim de onde veio o português, tivemos o itálico; antes do itálico, o indo-europeu, antes do indo-europeu, outras línguas, que não conhecemos, numa sucessão que vem do fundo de muitos milénios desde a origem da linguagem humana. É bem provável que, num qualquer momento de história das línguas que vieram a dar ao português, tenha havido um crioulo metido ao barulho, um povo que entrou em contacto com outro povo, nascendo daí uma outra língua, diferente das duas línguas-mãe…»             

(Editora: Guerra e Paz, Revisão: Ana de Castro Salgado, Capa e Paginação: Ilídio Vasco, Fotos. Inácio Ludgero)

 [Um livro por semana 665]


quarta-feira, 31 de março de 2021

«O cão atravessa a cidade» de António Manuel Venda

O livro de 89 páginas e 25 poemas é feito de retratos. Logo na página 9 se lê «o cão insiste para tirarmos uma fotografia» e na página 64 «lembro-me de tirar uma fotografia ao comboio a sorrir» além de na página 31 o poema «tirar uma fotografia» à rosa vermelha. Há nos poemas deste livro a linha «Vida -Literatura» pois o cão do título e do primeiro poema faz o transporte de três mundos na cidade, lugar da luta entre o rural e o urbano. Vitorino Nemésio lamentou: «Já não se faz poesia descritiva e é pena!» Em «O bicho harmonioso» pergunta: «A poesia do abstracto? / Talvez. / Mas um pouco de calor / A exaltação de cada momento / É melhor.» E, a seguir, responde: «Uma ideia só como sangue/ de problema. / No mais, não. Não me interessa.» Aqui o ponto de partida é a página 31: «a minha terra / o meu país do sul / bem no alto / sobre o oceano.» A base será a página 35: «imaginei que podia /estar apenas a começar / como se toda a vida vivida / não passasse do meu nascimento /que julgava tão longínquo /e bem arrumado / numa caixa de sapatos /da memória» e termina «não haveria de ser nada». Este «nada» que faz parte do «lugar-comum» tem a ver com o poema da página 43 que conclui: «o que escrevi/se calhar para nada.» Portugal é o país onde o morto fala, o cantor não canta, Bulhão Pato é conhecido pelas amêijoas, Bocage pelas anedotas e Camões pelo olho perdido. No tempo de Cesário Verde o mais conhecido era Cláudio Nunes, no tempo de Eça de Queirós o mais famoso era Pinheiro Chagas e no tempo de Camilo Pessanha o popular era Augusto Gil. Uma guerra perdida entre ser conhecido e ser importante. Perante o sistema cultural do nosso país, várias são as possibilidades. Na página 16 afirma o autor: «mesmo assim não tenho vergonha do meu país do sul e das montanhas.» Mas o «Poseidon» da página 48 era quase o nome do navio no qual Manuel Teixeira-Gomes, desiludido e revoltado com o sistema cultural, embarcou para o seu exílio em Bougie. Portimão é muito perto de Monchique; tem tudo a ver com a Geografia. Logo na página 3 numa espécie de «porta» do livro, o autor cita José Gomes Ferreira (1900-1985) que considera a realidade um sonho absurdo. Já Camilo Castelo Branco (1825-1890) tinha afirmado que «a Poesia não tem presente; ou é sonho ou saudade».  António Manuel Venda (n.1968) organiza nestes poemas a resposta a essa pergunta de José Gomes Ferreira. No poema mais longo do livro (página 51- página 62) a oficina do Poeta é a mesa do café e o ponto de partida são dois objectos (o bolo e o sumo de laranja) mas o alcance mais profundo é chegar muito longe da chamada circunstância. Dito de outra maneira o «homem tão estranho» é o autor do poema que viaja nas águas e nos mares da imaginação entre a paisagem da parede do café e a paisagem da Serra de Monchique. O poema faz um ajuste de contas com a realidade: a moeda única, Schengen, Maastricht, o busto de Cristiano Ronaldo mas o pretexto é uma infracção de trânsito que nunca se chega a saber se é real ou sonhada. A realidade é dolorosa e uma das maneiras de a abordar é a ironia. Por exemplo na página 21 o poema refere um «ajuste directo» ou uma «direcção geral de meteorologia e desperdícios tropicais» ou ainda na página 84 se o poema lembra os anões mascarados e conclui: «os baixinhos reinam por uma noite» ou por fim na página 29 quando o vereador não responde mesmo tratado pelo primeiro nome.

(Editora: On y va, Foto do autor: Dora Nogueira, Grafismo e paginação: João Paulo Fidalgo)

[Um livro por semana 664]

 

sábado, 20 de março de 2021

«Que cousa é chanfana?» de Fernando-António Almeida

Com o segundo título de «perguntou o Príncipe do Brasil …e os Poetas responderam com sonetos»,  o autor Fernando-António Almeida (n.1939) surge nas 179 páginas deste livro como cicerone qualificado para uma viagem no tempo e no espaço não só do «torneio poético» motivado pela pergunta do príncipe D. José mas também aos vários locais de Lisboa do século XVIII como a ermida de Santo Amaro, o Malcozinhado, o Campo de Santana, as tascas e tabernas como o Isidro e outras «casas de pasto». O príncipe D. José (1761-1788) era neto de D. José I e é uma figura curiosa da História de Portugal. Educado para reinar em teoria com o Marquês de Pombal na sua sombra, acabou por morrer novo sem nunca ter subido ao trono. Era casado com uma tia (irmã da mãe) que era catorze mas velha do que ele mas não é de estranhar pois a sua mãe (D. Maria I) era casada com um tio (irmão do pai).

Como convite à leitura fica um excerto do livro: «Ora, justamente, essa literatura de raiz popular, de tradição medieval, marginal, vai irromper na época que nos ocupa. Esta época em que o príncipe D. José formula, mais ou menos inocentemente, a pergunta «Que cousa é chanfana?». Nesta época em que poetas, arvorados de nove sonetos, lhe procuram dar poética resposta. Conservando a forma clássica e disciplinada, vão já, todavia, verter vinho novo em odres velhos. Uma época da temática transgressora ao nível do assunto tratado e da linguagem utilizada. Uma época de libertinagem. Assim  a temática de cariz sexual surge sem ambiguidade e mesmo com carácter brutal: pensemos num Bocage, pensemos num Lobo de Carvalho.»´´

(Editora: Memoria 2019, Impressão e Acabamento: Tipografia Lousanense)

[Um livro por semana 663] 


domingo, 7 de março de 2021

«Ulisses» de James Joyce ou um dia que simboliza a vida

 


Embora a referência óbvia do livro «Ulisses» seja a «Odisseia» de Homero do qual James Joyce «aproveitou» os episódios de Telémaco, Nestor, Calipso, Nausica, Circe, Ítaca e Penélope (entre muitos outros). O ponto de partida do livro é o dia 16 de Junho de 1904 que é afinal para Stuart Gilbert «um dia muito semelhante a qualquer outro» mas o resultado é, segundo João Palma-Ferreira, autor da tradução portuguesa, dois anos de trabalho entre 1987 e 1989, «um texto difícil que por vezes deixa o leitor perplexo, tal a forma deliberadamente elaborada e exaustiva com que evita as ciladas da narrativa convencional».

Para quem gosta de sínteses pode ficar esta síntese do autor do livro em 1920 numa carta a Carlo Linati: «a história de um dia que simboliza a vida». Vejamos a página 55 do Ulisses de James Joyce (1882-1941) Edição Livros do Brasil: «Feio e fútil: pescoço esticado e cabelo encrespado e uma nódoa de tinta, um rasto de caracol. Não obstante, alguém o tinha amado, levara-o nos braços e no coração. A não ser por isso a corrida do mundo tê-lo-ia calcado a pés, caracol esborrachado e sem ossos. Ela amara-lhe o sangue aquoso e fraco que do dela fora escoado. E isso então era real? A única coisa verdadeira na vida?»

Livro escrito entre Trieste, Zurich e Paris nos anos de 1914 a 1921, o pano de fundo da acção inicial é a Torre Martello, debruçada sobre a baía de Dublin, a capital da Irlanda. Claro que a página 55 é apenas a página 55 mas como convite à leitura julgo estar bem para o assunto, afinal um dos livros mais importantes do século XX. Um grande livro que por acaso é também um livro grande…    

[Crónicas do Tejo 255]

 

terça-feira, 2 de março de 2021

«Não vos torne a noite escura» de Vergílio Alberto Vieira

 


Vergílio Alberto Vieira (n.1950) escolheu para título deste seu recente livro de 51 páginas um verso da carta III de Francisco Sá de Miranda. Se lhe juntarmos a Bíblia, Hermann Broch, Hadrianus, Dante, Camões, Mário de Sá-Carneiro e Vergílio Ferreira, ficamos com uma ideia de como esta se trata de facto de uma poesia culta, grave e erudita que, ao mesmo tempo, «dialoga com Mallarmé e cita nomes mitológicos».

Adverte Cristina Robalo Cordeiro, autora do prólogo: «A sequência de trinta estrofes, dividida em duas partes iguais, pode ser igualmente lida como uma longa inscrição funerária, tal como o epitáfio composto por Hadrianus para o seu túmulo.»

Ou dito de outra maneira: junta a Vida, a Morte e a Poesia. Começa pela Vida («Elas são a mães/ filhas da morte que a dor/ em terra incógnita concebeu/ sopro de extinta luz/ na lâmpada de barro/ elas são as mães.» Passa também pela Morte: «Ninguém dirá /depois de tornar não voltaremos/ quando o mundo se perder/ desse buraco negro que além/ descobriu ser agora para sempre/ ainda não até ao fim.» Entre a Vida e a Morte, surge a Poesia: «Morreu cantando o amor/ perdido o que cem anos tinha/ antes do sonho trespassar/ a flecha e a colina o arco/ mil árvores morrem/ subindo ao céu.»

(Editora: Crescente Branco, Prólogo: Cristina Robalo Cordeiro, Desenhos e concepção gráfica: Armando Alves)

[Um livro por semana 662]

 

quinta-feira, 25 de fevereiro de 2021

Lugar de Ser ou 70 anos em 20 linhas

 


A vida é um mistério, não um negócio. Nasci a 13-2-51 em Santa Catarina (Caldas da Rainha) em casa dos meus avós maternos e os meus pais só casaram no Verão – a casa não estava pronta. Fui pinto balseiro. Tive uma infância feliz: o dinheiro era escasso mas sobejava ternura e não havia preço para os beijos ou para as lágrimas. Saltei do carro de bois em 1956 na aldeia para o eléctrico de Lisboa em 1966 e para o avião em 1976 quando fui a Londres. Tirei o Curso Geral do Comércio porque o tempo exigia: «Os filhos dos motoristas não vão para o Liceu». Na véspera do dia em que comecei a trabalhar morreram 25 rapazes na Serra de Sintra. O meu destino sempre esteve ligado aos outros; nunca me quis separar e fingir que podia fazer tudo sozinho. Vivi na minha terra, no Montijo, em Vila Franca de Xira e em Lisboa. Casei em 1977, os meus filhos nasceram em 1978, 1981 e 1985. Há cem anos entre o meu avô materno e o neto mais velho. O meu primeiro livro (1971) foi produzido a stêncil, o segundo 1981 foi composto a chumbo, os posteriores já foram a computador. Meu pai começa a trabalhar com 7 anos, eu com 15 e os meus filhos com 25. Há um progresso mas sem esquecer as palavras de Raúl Brandão: «Ser diferente dos outros é já uma desgraça; ser superior aos outros é uma desgraça muito maior». Em 2005 acabei de pagar a hipoteca de uma casa com janelas para o Tejo. Há destinos simétricos: eu tenho duas irmãs e o meu filho tem duas irmãs. A vida é um mistério, nunca um negócio. Fui delegado sindical de 1972 e 1996, tenho uma reforma pequena mas posso sorrir: todos os dias morre gente que chamava Marcha do Benfica ao Hino da Eurovisão.

[Crónicas do Tejo 274]

(Óleo de Wislow Homer)


terça-feira, 2 de fevereiro de 2021

«Morrer é não ter nada nas mãos» de Nuno Costa Santos

Nuno Costa Santos (n.1974) junta neste livro de 39 páginas poemas com origem na Rádio, no Teatro e nas Revistas de Poesia. Autor diversificado (romance, crónica, aforismo, poesia) Nuno Costa Santos retira o título do volume da página 39: «Vem de mãos vazias /como todo o homem antes da morte. /Morrer é não ter nada nas mãos.» A morte está de novo presente na página 33: «Morreu o meu tio-avô emigrado no Canadá há muitas décadas. /Trabalhou em fábricas e morou numa rua /que se tornou o seu novo país. /Recebemos um telefonema de Mississauga à/ hora do almoço de uma quinta-feira. /Estava ao pé da minha avó quando /atendeu a chamada da tia Lurdes. /”Antes de morrer chamou pela mãe” ouvi a/ minha avó repetir o que ouviu do outro lado. /Todo o homem chama pela mãe na hora da /morte. Mesmo que à vezes não se ouça.» Oscilam estes poemas entre a Morte e a Vida: «Das maiores experiências de solidão: /chegar ao aeroporto e não ser recebido por ninguém.»

Entre a solidão e a alegria, o poema pode ser também um sorriso: «É hoje difícil estar calado /Estar calado é morrer /O desejo é ser amado /Tenho um comentário a fazer /Em cada esquina, um assunto /em cada link, um viral /Seja ele uma sande de presunto /ou o excelso mapa astral.» Mas numa sociedade competitiva o lugar da Poesia é sempre secundário: «Não há lugar para estacionar o poema/ Sucumbiu ao rodoviário sistema /É em Lisboa mas podia ser em Manila / O poema vai ficar em segunda fila.»

Para este autor o fundamental é a Vida: «Fundamental é termos quem nosso coloque a mão na / testa quando vomitamos, de olhos fechados. /Tudo o resto é uma ida à Loja do Cidadão.» Fundamental é também a Poesia: «Se a poesia não diz a vida é um exercício que se dissolve, uma bola de sabão que rebenta no ar, um dito vago para dizer nos saraus e impressionar pelo jogo vazio de palavras. /É um berloque poético. /Não quero isso.»

(Edição: Companhia das Ilhas – Sara Santos, Carlos Alberto Machado, Imagem: Jorge Aguiar Oliveira, Capa: Rui Belo, Colaboração: Sara Leal)

[Um livro por semana 661]

 

sábado, 16 de janeiro de 2021

«Branza» de José Pascoal

Depois de «Sob Este Título», «Antídotos», «Excertos Incertos» e «Ponto Infinito», este livro de 159 páginas reúne poemas escritos entre 2018 e 2019 por José Pascoal (n.1953) natural de Torres Vedras e desde logo o seu título («Branza») remete para a Geografia da zona tal como se indica na página 5: «caruma, sama, agulha de pinheiro».

O ponto de partida é o poema da página 10: «Penso muito nos assuntos /Em que toda a gente pensa: /Na felicidade intensa / E nos queridos defuntos.» A paisagem e o povoamento da infância pessoal do autor está registada nos poemas entre as páginas 46 e 53: O tempo de Dezembro («Na matança do porco /De madrugada»), o lugar do alpendre (»Aqui estou /Aqui sou /À sombra de sombras»), o território sentimental («Aqui me convenço/Aqui te pertenço»),o lugar da inocência («Erva mansa da colina/ Onde se estende a toalha/Bordada pela mãe»), a debulha dos cereais («Ao luar/A eira é uma clareira/ Um castelo de palha»), o calor do pão («A minha avó materna cozia pão de trigo/ A minha avó paterna cozia pão de centeio»), o cofre da casa («No celeiro a luz é fresca»), o ritual do vinho: «O lagar é um lugar/ De índios pé-descalço/ A dançar o fandango».

Mas a inscrição deste livro não se esgota no registo da infância pois entra em diálogo com o Cinema e com a Literatura. No poema da página 91 se referem dois filmes: «O pecado mora ao lado» e «O rio sem regresso».  Nas páginas 27 e 124 são duas as obras literárias revisitadas: «Os Lusíadas» e «A Ilíada». E autores diversos são referidos em vários poemas: Luís de Camões (70), Almada Negreiros (115) Cesário Verde (148), Drummond de Andrade (57), Federico García Lorca (89), Cervantes (78), Camilo Castelo Branco (31), Shelley (66), Maeterlinck (50) ou Jacques Prévert (101).  Ao lado da Natureza está a Cultura.

As palavras são o intervalo entre o Poeta e o Mundo («As palavras de todas as línguas /São animais domésticos») mesmo que esse Mundo seja os chamados três mundos: «Tudo vai bem nos três antigos reinos /Os animais têm direito a voto/Os vegetais são do verde mais esperançoso / Os minerais cintilam sem acinte». Mais do que ser a voz dum Mundo este livro procura e consegue ser um Mundo, ele mesmo.      

(Editora: Editorial Minerva, Pré-impressão: José Ganho)

[Um livro por semana 659]


quarta-feira, 6 de janeiro de 2021

«Com Navalhas e Navios» de Urbano Bettencourt

Neste livro de 159 páginas se juntam alguns poemas publicados entre 1972 e 2012 por Urbano Bettencourt (n.1949), poeta, ensaísta, autor de narrativas e professor.

O ponto de partida do livro é uma quadra («Minha ânsia de caminhos/de caminhos por andar/madrugada de viagens/cansadas de madrugar») e um poema intitulado «De Mafra, com mágoa»: «Por detrás da máscara eu lá estou / sem ódios, nem balas, nem guerras /despido / e com um ramo de cravos / em cada mão.»

Por entre a luz da Vida surge a sombra da Morte, por entre a gramática de paz na Ilha surge o Natal em África na guerra: «sem nozes nem lâmpadas /sem presépio nem padres finalmente/ o natal escorrer de saudade pelos olhos do soldado/ agarrado à breda remuniciada.» Oscilando o seu registo poético entre a Natureza e a Cultura, há nestes poemas um outro diálogo com a Poesia por exemplo a partir de um poema de J.H. Santos Barros na página 75: «Fazer versos dói? Não! As tecnocracias /literárias também fazem fermentar os seus vates voadores/ de cinco e mais estrelas compondo em papel de cor/ e perfumado suaves consolações, perversas constelações /ao Dicionário de Rimas arrebatadas. O que dói é arrancá-los/ assim ao próprio sangue como se um filho fora, erguê-los/ à boca, dar-lhes um nome e nisso inscrever / a nossa morte. A nossa vida.» Ou a Pintura (Domingos Rebelo) como na página 69: «Estaria ausente o pintor quando / no cais antigo as mulheres /desembarcavam os maridos os baús /e as crianças? Talvez não o saibamos nunca, mas alguém nos dirá o que olham estes olhos distantes e perdidos mesmo antes de partidos? /Janelas de Ponta Delgada, que horizontes vos não fixam e se vos negam?» (Este poema citado em excerto é dedicado a Eduardo Bettencourt Pinto e Emanuel Jorge Botelho). Uma nota final para a ironia sempre presente na escrita de Urbano Bettencourt, como na página 131: «Reparem bem nos porcos /eles não lêem não escrevem /nem mesmo o próprio nome soletram /e no entanto/ crescem engordam/ etc e até roncam / na praça pública.» Poesia séria, alta e grave, lembra-me as palavras de Maria Eulália de Macedo: «Para mim, Poesia é estar atento e aberto ao que somos e nos ultrapassa. É uma espécie de fugidio sacramento, a exigente voz das coisas que são verdade – para além da verdade das coisas.»

(Editora: Companhia das Ilhas, Prefácio: Carlos Bessa)

 [Um livro por semana 658]