quinta-feira, 27 de julho de 2017

«O inspector da PIDE que morreu duas vezes» de Gonçalo Pereira Rosa



O subtítulo deste livro com 310 páginas de Gonçalo Pereira Rosa (n.1975) explica um pouco do conteúdo das 26 histórias que o integram: «e outras gaffes, triunfos e episódios memoráveis do século XX na Imprensa Portuguesa». Embora o título do volume seja escolhido a partir de um dos seus (digamos) capítulos assim como nos livros de contos, esta escolha poderia ter recaído noutro. Não é fácil escolher.
Ao todo são 26 os textos nos quais se conta parte da História do tempo português do século XX. Grande parte dele passado no regime da Censura; veja-se o texto de Jacinto Baptista na página 217: «Sei que por causa da Censura, pela tensão que me causa durante o dia, a toda a hora, pelo acréscimo de trabalho com que sobrecarrega as minhas funções de redactor-paginador, obrigando-me a desfazer e refazer títulos, a desfazer e a refazer páginas – por causa da Censura estou à beira de um colapso nervoso. E vou morrer mais cedo, arrasado, inconformado – por causa da Censura.» Gonçalo Pereira Rosa recorda as palavras de Ribeiro dos Santos sobre a Censura e a cumplicidade das Forças Armadas: «Como então se dizia, as armas eram seis: infantaria, cavalaria, artilharia, engenharia, aviação e censura».
Vitorino Nemésio definiu de modo certeiro o jornalismo: «Ser jornalista é andar à roda do mundo num só pé. Há ali miséria, efemeridade, glória e o pão que o Diabo amassou». Esse pão que o Diabo amassou, como na história que dá título ao livro, pode ser uma sucessão de acasos: No dia 2 de Outubro de 1960 o «Diário de Lisboa» publica a notícia necrológica do coronel Rui Padrão Pessoa de Amorim, cujo primo era homónimo e subdirector da PIDE. Ele reage desta maneira: «Mataram-me! Ainda por com com uma notícia de merda na necrologia, ao lado de mortos da Rua dos Fanqueiros… Eu que salvei a Pátria duas vezes do abismo…» Tudo termina numa nota do jornal que ninguém lê: «Por lamentável erro de informação, noticiámos ontem o falecimento do distinto oficial do exército (…) Quem faleceu foi o também distinto oficial do exército com o mesmo nome.»
O humor e a graça aparecem na página 304 num texto de Luís Alberto Ferreira quando o director de «O Mundo Desportivo» foi ao Estádio do Bonfim entregar a Taça Disciplina ao Vitória de Setúbal e o jantar ficou reduzido a uns amendoins e um copo de três: «Chamei-lhe bola-de-berlim com bigodes! Foi um escândalo.»
Fica uma pálida ideia destas 26 histórias de jornais e de jornalistas, um mundo difícil como Baptista-Bastos adverte: «Nascer e morrer no mesmo dia pode ser uma epopeia de gigantes mas é uma tarefa fatigante para os simples mortais».
(Editora: Planeta, Prefácio: Francisco Pinto Balsemão, Revisão: Fernanda Fonseca)

(Um livro por semana 560)


quinta-feira, 20 de julho de 2017

«Noite vertical« de Zetho Cunha Gonçalves



Há neste recente livro de Zetho Cunha Gonçalves (n. 1960) uma dupla inscrição: amor e morte. Amor na página 32 («E nenhum rio é como esse / o rosto magnificente da infância / a pátria inaugural da Poesia») e na página 67: «a minha escola primária / foi a sombra duma árvore muito antiga – e a voz / um pêndulo que soletrava / nas crateras debaixo do fogo / horas e números – no horizonte». A morte pode ler-se na página 21 («Os meus mortos deram-me versos, assombros – um rio acampado na memória») e na página 65: «Olho para o Tempo e digo: - Eu estive / onde a morte começou. Insensitiva, / reles, insidiosa, banal.» 
Entre o amor e a morte surge o poema inicial («Os rios tocam-se de águas iluminadas») espécie de janela para o poema da plenitude no qual tudo se liga: «Trago nas minhas mãos – o coração do mundo / o tempo em que os rios ardem / se volto o meu rosto / à tua passagem / na multidão». O poema da página 59 integra um programa de vida e de poesia na voz da Mãe: «Meu filho / se aquilo que sonhaste não chega / para encheres a barriga / ao teu desejo e ao teu sossego / canta / canta com a voz voltada para nascente / enquanto lavras / e lavras a força / e a dança do leopardo.»
O autor convoca versos e frases de Dante Milano, Rainer Maria Rilke, Jacobo Fijman, Friedrich Hölderlin, António José Forte, Fernando Assis Pacheco, Ruy Duarte de Carvalho, Eduardo White e Herberto Helder para homenagear em poemas, aforismos e prosa-poemas figuras diversas das Artes e das Letras: António Ramos, Rosa, Fernando Assis Pacheco, António Prates, David Mestre, Robson Dutra, Roberto Chichorro, José Craveirinha, Ruy Duarte de Carvalho., Eduardo White e Herberto Helder. Nesta oscilação entre «cantar» e «reflectir», Zetho Cunha Gonçalves lembra David Mestre com um poema feito dos títulos dos livros do poeta morto em 1998: «1 - O nome, crónica / do ghetto, sobe / pseudónimo ao poema:/ pulmão / subscrito a giz / nas barbas do bando / 2 – No relógio de Cafucôlo / nem tudo é poesia / lusografias crioulas: são quarenta / e nove anos / obra cega, / do canto à idade.»
(Editora: Língua Morta, Capa: Gustave Doré)

(Um livro por semana 559)


sexta-feira, 14 de julho de 2017

O jornalismo ou carta aberta a Gonçalo Pereira Rosa


Os jornais e as revistas foram a Universidade que não tive. E também foram o meu Liceu. Nasci em 1951 e em 1957 uma senhora muito fina no Montijo afirmou mais ou menos isto à porta de uma pastelaria famosa: «Os filhos dos motoristas não vão para o Liceu!». E eu era filho de um motorista; por isso não fui para o Liceu. Naquele tempo o Liceu mais perto do Montijo era o de Setúbal e os rapazes iam de comboio até ao Pinhal Novo e aí apanhavam outro comboio para Setúbal onde estava o poder político e também o poder cultural. A «Gazeta do Sul» no Montijo que eu via ser feito nas Oficinas Gráficas ainda a chumbo e a edição mensal (feita em Rio Maior) de «O Catarinense» que a minha mãe guardava numa caixa de sapatos juntamente com o semanário «Sporting» que eu lia em primeira mão antes do jornal chegar à assinante Dona Teresa, são o princípio de tudo.
Conheci o Gonçalo Pereira Rosa porque fui redactor do jornal «Sporting» de 1988 a 2006 e estreei-me em 1978 no «Diário Popular» mas vamos por partes. Cheguei aos dez anos com a biografia já definida: iria estudar numa Escola Técnica (nunca num Liceu) e iria trabalhar aos quinze anos. Quase não tive férias em 1966 no Verão em Santa Catarina: um telegrama de Secretaria chamou-me para ir trabalhar na Rua do Ouro nº 110, a sede do Banco Português do Atlântico. Antes desse deslumbramento em 1966 dos Suplementos Literários com o «Diário de Lisboa», o «Diário Popular», o «República» e a «Capital» (a partir de 1969) eu vivi em Vila Franca de Xira e ia todos os Domingos à noite comprar o «Diário Popular» por duas razões: o futebol à tarde e a crónica de Santos Fernando. Hoje continuo a pensar como pensava nesse tempo que «Os grilos não cantam ao Domingo».            

(Vinte Linhas 1693)

sábado, 8 de julho de 2017

Lamentação para um tempo passado na foto a preto e branco


Num destes fins de tarde de Lisboa com um céu cheio de nuvens brancas a anunciar trovoadas e bandos de turistas (não viajantes) em calções curtos que sobem as Escadinhas do Duque a gritar «Are you local people?», num destes fins de tarde recebi uma oferta inesperada. Um livreiro em arrumações na sua livraria descobriu desirmanada uma fotografia a preto e branco que me ofereceu. Pode ser a Brigitte Bardot, pode ser uma das jovens actrizes a que os jornais dos anos 60 chamavam «azougadas» e mostravam os seus pequenos biquínis nas praias da Riviera Francesa. O livreiro meu amigo oferece-me a fotografia e com ela o pretexto para uma crónica. Esmo sem estar presente nela esta fotografia tem a ver com esse tempo. Eu era em 1966 um jovem atónito, confuso e perdido na grande cidade. Tinha começado a trabalhar numa sexta-feira nove de Setembro porque nesse tempo trabalhava-se ao sábado até às 13 horas nos Bancos. Não tenho a certeza se actriz é Brigitte Bardot nem isso é agora o mais importante. Sei que este é um retrato desse tempo de guerra e paz, de amor e ódio, de morte e vida. Mesmo quando as manhãs se abriam em esperança as tardes acabavam em amargura. O tempo era triste, a monotonia tudo abarcava, o velho ditador, o monstro de Santa Comba Dão falava na Rádio e na TV para dizer: «Está tudo bem assim e não podia ser de outra forma!»

(Vinte Linhas 1692)

segunda-feira, 3 de julho de 2017

«Há vozes no Charco» de Raul Malaquias Marques e Pierre Pratt


Paisagem e povoamento, já o lembrava Carlos de Oliveira. Tudo nesta história começa com a paisagem: «Não é grande este charco. Podia ser maior, é verdade. Mas, assim como está, está bem. Fosse ele maior, havia logo de vir alguém chamar-lhe lago…» Segue-se o povoamento: além dos simpáticos vizinhos da herdade, no charco existem rãs, um boi e um menino (o Quim) que guardou uma rã na taça de vidro onde a mãe costuma fazer a mousse de manga. Passada uma semana a rã acabou por regressar ao charco, levada pelo menino Quim.
O biólogo que estuda o charco e que conta esta história está preocupado porque se anuncia a construção de uma grande estrada que poderá vir a arrasar o charco: «Os senhores do projecto são categóricos. Dizem eles que nenhum desvio é possível. Não é possível porquê? Não o disseram.»
A história continua porque as vozes do charco são também as dos leitores que o autor convida a manifestarem-se não contra a estrada mas contra o facto de a estrada poder vir a arrasar o charco. Dai as palavras finais: «Vocês vêm comigo? Podemos marcar já o dia?»
Na última página se explica como este livro é «carbonfree» pois para o editar foi preciso cortar árvores e gastar energia para produzir o papel no qual o livro foi impresso. Para compensar as emissões de dióxido de carbono para a atmosfera, a APCC em colaboração com a Ecoprogresso apoiaram um projecto de energia limpa através do calor gerado numa indústria, evitando a emissão de dióxido de carbono por combustíveis fósseis.
(Editora: APCC, Revisão: Clara Boléo, Design: Raquel Castelo)

(Um livro por semana 555)