quinta-feira, 28 de dezembro de 2017

Alexandre O´Neill - «Há uns que ultrapassam o efémero da crónica»


Quase a chegar ao número cem das crónicas no «Correio do Ribatejo», já era tempo de uma destas crónicas se referir a Alexandre ´O Neill, (1924-1986), poeta maior e mestre da crónica. Descobri há dias o livro «Passo tudo pela refinadora» de Laurinda Bom (Editorial Notícias) na Livraria Sá da Costa e dei logo com uma aproximação do grande mestre às crónicas e ao seu mundo. Vejamos o que delas diz o Poeta Alexandre O’ Neill: «A crónica é, efectivamente, uma coisa efémera. Vai pedir alguma coisa de empréstimo à poesia e alguma coisa ao conto e não tem completa eficácia. Nem a construção de uma nem de outro. Sobre o que escrevo, creio que há algumas que podem perdurar algum tempo na memória das pessoas, mas lembro que hoje se lêem grandes cronistas brasileiros de outros tempos e se vê que perderam a força. O que acontece é que eu não sou, a bem dizer, um cronista. Escrevo (ou escrevia, melhor) textos para jornais que, depois reconheço, muito naturalmente, como textos poéticos. Então incluo-os nos livros. Nem todos, claro. Há uns que ultrapassam o efémero da crónica. Outros, que podem parecer prosaicos, são (ou melhor, serão) poemas em prosa, digamos, o que é muito diferente da prosa-prosa. E também me posso enganar e apressar, e tomar por poema o que não é…» Nota final – Alexandre O’ Neill foi grande amigo de Jacinto Baptista e muitas vezes conversei com o Poeta na Rua da Rosa onde existiu o Jornal «O Ponto» de boa memória. De boa memória também é o conselho do Poeta para que eu estivesse sempre rodeado de bons dicionários. Tenho feito os possíveis e os impossíveis por não esquecer essa recomendação…      

(Crónicas do Tejo 95)

quinta-feira, 21 de dezembro de 2017

Luís Alberto Ferreira – do azul de Luanda ao azul de Belém


Luís Alberto Ferreira (n.1933) é um magnífico jornalista luandense que desde cedo se tornou adepto do Clube Atlético de Luanda, agremiação especial de onde partiu gente para o MPLA – Américo Boavida e Diógenes Boavida foram seus jogadores. As calúnias contra este Clube («clube dos cozinheiros», «clube dos mulatos», «ninho de conspiradores») ainda deram mais força a uma entidade que nasceu, cresceu e sobreviveu «como um corcel de persistência e de estoicismo» tornando-se uma Escola de «amizades, de interacções e de solidariedades». Daí o nome de «Escola» que todos lhe davam, englobando neste «todos» a diversidade dos negros mestiços e brancos que estavam na Direcção (Aníbal Melo, Couto Cabral, Faliero Cunha, Alberto Luís Ferreira) e a massa adepta que ia dos musseques às Ingombotas e aos Coqueiros. Leitor atento da Revista Stadium, o jovem Luís Alberto reparava sempre num jogador dos azuis de Belém (José Simões) que usava um lenço dobrado sobre os calções negros. A camisola era azul como a do Atlético de Luanda. Anos depois, já estudante em Lisboa, o jovem luandense ia ver os jogos de Os Belenenses de eléctrico ao lado de Artur Quaresma e de Mariano Amaro. José Simões foi vitimado por uma pneumonia não sem antes ter visto a sua recusa em fazer a saudação nazi mascarada na capa de uma Revista onde alguém lhe desenhou os dedos. Pode ter sido essa «Escola» que ensinou Luís Alberto Ferreira a respeitar os outros que são adversários mas não inimigos. Por isso no funeral do extremo-esquerdo portista Nóbrega estavam poucos adeptos e nenhum dos «adesivos» que só aparecem nas vitórias. O pai de Rui e de Avelino Mingas também lá jogou e por isso há uma lógica quando Rui Mingas canta: «Fuba podre / peixe podre / pano ruim /cinquenta angolares / porrada se refilares».

(Crónicas do Tejo 109 – fotografia de autor desconhecido)

terça-feira, 19 de dezembro de 2017

«A pureza perdida do Desporto – futebol no Estado Novo» de Rahul Kumar


Rahul Kumar (n.1980) organiza o seu trabalho de investigação sobre o Desporto em Portugal de 1920 a 1960 em três capítulos: - Sociogénese do campo desportivo português – O Estado Novo e o desporto: ideologia e instituições – A pureza perdida do desporto: a profissionalização do jogador de futebol. Ao escolher o terceiro capítulo para título do livro, o autor segue o modelo dos contistas que designam um dos contos como título das suas colectâneas. É um risco assumido pois o conjunto de 288 páginas engloba várias vertentes e o Desporto em Portugal não tem nenhuma pureza perdida pois ela nunca existiu. Basta pensar que o maior feito do futebol português em 1928 (Jogos Olímpicos de Amsterdão) foi realizado ainda na base do «amadorismo» mas já se discutia na FIFA a questão o «manque à gagner» ou seja, neste caso, os salários perdidos pelos jogadores convocados para a selecção nacional durante a campanha olímpica de 1928.
Embora Rahul Kumar seja doutorado em Sociologia, este livro não deixa de ser, ao mesmo tempo, um ensaio e um conjunto de histórias: «A história aqui narrada procura compreender o significado cultural e social do desenvolvimento do jogo e a sua gradual diferenciação face a um outro conjunto de práticas recreativas e culturais. A transformação de uma actividade distintiva associada às classes dominantes, como era o futebol no final do século XIX, num espectáculo de massas não foi um processo pacífico. Com a afirmação plena da desportivização e da espactadorização do futebol – enquanto prática competitiva orientada para o público mais do que para o lazer dos praticantes – a questão à volta da qual se organizam as clivagens mais marcantes no campo concerne ao estatuto dos atletas desportivos e à sua profissionalização.»
Curioso é neste livro uma série de casos e de narrativas como por exemplo a irradiação do presidente da Direcção do Sporting Clube de Portugal em 1943 (Amado de Aguillar) por se ter dirigido ao todo poderoso Director-Geral dos Desportos em tom que o mesmo considerou «grave acto de indisciplina». Outro caso envolve o Sport Lisboa e Benfica em 1944 quando o seu secretário-geral (Júlio Ribeiro) foi suspenso por 30 dias e o Clube multado em 3.000 escudos.
O mundo do futebol em Portugal tem tido destas coisas insólitas: ainda há pouco tempo (1966) os jornalistas desportivos eram obrigados a serem sócios do Sindicato dos Tipógrafos e Ofícios Correlativos.

(Um livro por semana 577 - Edições Paquiderme, Revisão: Raul Henriques, Grafismo: Carlos Bártolo)


quinta-feira, 14 de dezembro de 2017

Do comboio de Falconwood ao comboio de Rio Maior


O meu neto Thomas está um homenzinho. Entrou para uma «Grammar School» em Londres e lá vai todos os dias com gravata e blazer no comboio que em sete minutos o leva para a Escola. Os sete minutos são os mesmos que me levam todos os dias ao Rossio. Gosto muito de todos os meus netos (são quatro) mas o mais velho é especial por ter sido o primeiro a nascer (2006) e por ser protagonista de um dos mas veementes poemas que escrevi - «Domingo à tarde em Falconwood». Pois a memória magoada desse domingo à tarde no jardim junto aos comboios de Falconwood com o seu arraial de exclusão, de maldade e de estupidez («sumos de pacote e bolos de fábrica») levou-me a recordar a Feira de Rio Maior. Além dos cabos de cebolas de Alvorninha, havia uma corrida de bicicletas com os homens da Volta a Portugal. Na curva da estrada colocavam fardos de palha. Ainda me lembro dos agentes da P.V.T. e das suas ruidosas máquinas. Outra máquina era o comboio que me lembro de ter visto em Rio Maior. Era uma locomotiva adaptada à via reduzida. Eu sentia-me excluído da Feira de Rio Maior porque quando queria alguma coisa a resposta era sempre a mesma: «Tu não tens querer!» Muitos anos depois em Falconwwod o meu neto Thomas foi excluído não de uma festa de aniversário (estavam no seu direito) mas do convívio com os seus amigos de rua e de escola que estavam a poucos centímetros do nosso banco de jardim. Há uma música triste comum às duas exclusões como se o comboio trouxesse na sua via reduzida a redução da vida ao rancor, à maldade e à estupidez. Ou seja à exclusão. Os meus avós podem ter a desculpa do tempo cinzento («Está tudo bem assim e não podia ser de outra forma») mas as mães de Falconwood não podem ter perdão. O meu neto Thomas vai estudar numa escola onde os filhos delas nunca vão entrar.     

(Crónicas do Tejo 94 – fotografia de autor desconhecido)


domingo, 10 de dezembro de 2017

Pedrógão Grande, Tancos e José Gomes Ferreira - o Senhor da Serra é longe de Sintra


Algumas patacoadas escritas sobre os mortos de Pedrógão Grande e o assalto a Tancos levaram-me a lembrar os 25 mortos do Regimento da Artilharia Ligeira de Queluz na Serra de Sintra no dia 8-9-1966. Folheando o Diário de José Gomes Ferreira (1900-1985) leio esta entrada relativa a esse dia: «Esta madrugada ouvi, pela primeira vez nos longos anos da minha existência, os regougos de uma raposa perto de casa. Descoberta de um mundo misterioso que aproveita o ante-nascimento do Sol para a liberdade sem homens.» em 1966 havia a Censura e o Senhor da Serra era longe de Sintra. Só em 17 de Setembro de 1966 o «poeta militante» escreve «De novo em Albarraque». O Senhor da Serra é perto de Coimbra e Sintra é perto de Lisboa. Num país pequeno como Portugal essas ciosas contam. Na Rua do Ouro os cafés estavam cheios de gente ansiosa por notícias não «visadas pela Censura». A verdade é que 51 anos passaram num instante e todas as mortes nos dizem respeito. Mesmo quando não parece. No dia 12 de Janeiro de 1966 José Gomes Ferreira (1900-1985) escreveu no seu Diário: «Em Janeiro de 1966 existem em Portugal 13 escritores cujos nomes não podem sair nos jornais. A saber: quatro componentes do júri que deu o prémio ao Luandino Vieira: Augusto Abelaira, Alexandre Pinheiro Torres, Fernanda Botelho e Manuel da Fonseca. E os nove assistentes que em Roma, na reunião da Comunidade Europeia de Escritores, votaram a expulsão do Paço de Arcos: Sophia de Mello Breyner, Mário Sacramento, Natália Correia, Francisco Rebelo, Jorge Reis, Fausto Lopo de Carvalho, o Tareco, o José Augusto França e o Urbano Tavares Rodrigues. E neste país de abaixo-assinados ainda não apareceu nenhum protesto de escritores contra este facto inaudito que nos marca a todos a ferro em brasa.»
   
(Crónicas do Tejo 93)

segunda-feira, 4 de dezembro de 2017

«A última viúva de África» de Carlos Vale Ferraz


Carlos Vale Ferraz (n.1946) é, desde «Nó cego» (1983), o autor de vários livros que são referência obrigatória na ficção portuguesa sobre a Guerra Colonial de 1961 a 1974. O seu mais recente título parte de uma notícia de jornal - «Emigrante milionário quer comprar igreja na sua terra e transformá-la num panteão para a mãe». Para Shakespeare «a memória é a guardiã da mente» e, mesmo por isso, a narrativa envolve também a Maria da Fonte: «O povo revoltou-se porque exigiu enterrar uma velha na igreja e as autoridades queriam os mortos do regime liberal em seu eterno repouso nos novos cemitérios com atestado da Junta de Saúde.» A protagonista (Alice Oliveira) nasceu no Minho e, depois de ter passado por Leopoldville, por Luanda e por Pretória viria a morrer na Nova Zelândia, do outro lado do Mundo: «Partira para o Congo com um homem muito mais velho e depois regressara para entregar o filho…»
Há neste livro uma dupla inscrição. De um lado a narrativa em caracteres «Times»: «A guerra do Congo reunia todos os venenos. Os de pior fama naquele caldeirão de interesses pareciam ser os mercenários brancos . A figura de Jean Scrame incendiou paixões desde 1960, após ter surgido nos jornais como comandante de um grupo de guerreiros negros e brancos, Les Affreux, os Terríveis, envolvidos nos negócios da secessão do Catanga, um dos territórios mais ricos do planeta em minérios raros e de alto valor.» Do outro lado a reflexão em «itálico»: «As independências africanas sofreram a contradição da espingarda Kalashnikov, os independentistas negros utilizaram-na para se libertarem dos brancos, mas não a fabricavam e tiveram de a comprar aos brancos!» O conflito do Catanga e do Congo Belga passa em «Times» para o outro lado da fronteira: «Alice Oliveira sabia de fonte certa o que iria acontecer no Norte de Angola e quando. A data do levantamento em armas contra os colonos portugueses fora definitivamente marcada pelos dirigentes do Congo e pelos bacongos angolanos, seus aliados e familiares do outro lado do rio.» Em itálico ficam as perguntas e as respostas: «Porque não tomaram as autoridades portuguesas medidas para evitar o que sabem que irá acontecer?» «Porque a guerra interessa ao Salazar!».
Não se limitando à biografia de Alice Oliveira, este livro avança para uma figura mítica que também esteve em África como Che Guevara: «instalara um foco de guerrilha nas montanhas de Baraka, com alguns revolucionários cubanos, seus camaradas, grupos sobreviventes das forças dos Simbas derrotados e mais alguns membros da tribo do chefe Kabila.» Mas reflecte, mais à frente, sobre «os guerreiros coloniais reunidos à volta da Torre de Belém» que projectam memórias «dos legionários romanos que há dois mil anos, no Campo da Morte, lamentaram a independência da Hispânia, da Lusitânia, da Judeia e da Britânia».

(Edição: Porto Editora, Capa: Manuel Pessoa - Um livro por semana 574)


segunda-feira, 27 de novembro de 2017

Para Emília Isabel em Santarém a partir de uma foto de Joshua Benoliel


A foto do grande Joshua Benoliel (1873-1932) surge no jornal da Exposição da Fundação Gulbenkian intitulada «O Mundo derrubado» patente ao público de 30-6-2017 a 4-9-2017. Parece-me que a legenda está errada (não tenho a certeza) pois a viúva do militar sobe a Rua Garrett dirigindo-se à Basílica dos Mártires. Se descesse estaria a regressar da missa de sufrágio na Basílica. Tudo isto tem a ver com a Emília Isabel porque a Rua Garrett cruza-se coma a Rua Serpa Pinto em Lisboa e a Rua Serpa Pinto em Santarém aparece num poema que escrevi mentalmente à janela da redacção do jornal O MIRANTE nos idos de 1998. Vinte anos passaram num instante mas o que eu via nas mulheres da Rua Serpa Pinto em Santarém era a vastidão da Charneca, a riqueza da Lezíria e a diversidade do Bairro. O Ribatejo, claro. Via e vejo nas mulheres a imagem directa da terra, sementeiras e colheitas, lágrimas e beijos, alegrias e tristezas, luz e escuridão, vida e morte.
A Emília Isabel talvez já não passe pela Rua Serpa Pinto ou se passa eu já não estou lá à janela para registar em poema esse tempo breve mas intenso entre o lugar e o espaço, entre a terra e a memória. A beleza da mulher viúva na fotografia de Joshua Benoliel precipita a minha memória da beleza de Emília Isabel. A primeira tem o registo objectivo de uma fotografia; a segunda tem o registo subjectivo de um poema. Em ambos os casos há no olhar da mulher uma clara rejeição da morte. De 1918 a 1998 são oitenta anos de alegria teimosa contra a tristeza da morte, da indiferença e do esquecimento. Tal como a Terra, a Mulher deseja a luz da Primavera que nasce todos os dias porque o Amor nunca desiste de aparecer na nossa Vida mesmo no mais cinzento quotidiano.    

(Crónicas do Tejo 91 - Fotografia de Joshua Benoliel)

quarta-feira, 22 de novembro de 2017

Netos, cirurgião, pianista e guarda-redes ou a magia das mãos



Aqui estou depois de seis dias de «estadia» no Hospital da Luz onde fiz vários exames e fui operado a uma neoplasia do cólon. Tudo começou no Museu da Água onde caí por ter batido com o joelho num pilarete. Levado para o Hospital de São José pelo INEM, tive um tratamento cinco estrelas tanto na viatura como no «Banco» com várias análises e exames. A razão do meu problema era a anemia; faltava saber como e quando eu perdia sangue. A cirurgia aconteceu em 16 e o regresso a casa foi em 21. Os meus quatro netos tiveram uma reacção curiosa: os três mais velhos enviaram cartões com incentivos, o mais pequeno ficou atónito perante a panóplia de cateteres no pescoço do avô. Os desenhos dos mais velhos são uma ternura e a colagem do terceiro é uma delícia. Não tenho palavras disponíveis para dizer obrigado a todos (família, amigos e conhecidos) todos irmanados na ideia de fazer e desejar o melhor. Até o  meu filho tirou dois dias de férias. O cirurgião tem mãos mágicas e nunca lhe poderei agradecer o que fez por mim. Pode ter sido baptizado pelo pároco da sua terra, primo da minha avó e com quem trabalhei na sua «missa nova». O pianista cujas mãos mágicas recordo em Cascais e Lisboa e nos discos de Colónia e Tóquio, esteve na origem dum poema do meu primeiro livro de 1981. Foi premiado pela Associação Portuguesa de Escritores sendo o júri composto por Armando Silva Carvalho, Fernando J.B. Martinho e Pedro Támen. Sem ele talvez nunca tivesse escrito «Os guarda-redes morrem ao Domingo» que deu origem a um livro com o mesmo título. Pensei muito nele naqueles dias de Hospital. Tal como pensei no pianista e no cirurgião. Afinal a magia da mão é a mesma e até os meus netos com os seus desenhos e desejos fazem magia porque juntam de novo tudo o que a morte esteve prestes a separar.

(Crónicas do Tejo 104)

quarta-feira, 15 de novembro de 2017

Meu avô em Rio Maior (feira da Cebola) e no Cartaxo (feira dos Santos)


O meu avô de Santa Catarina nasceu em 1906 e morreu em 1979. Seu nome é José Almeida Penas. Era carpinteiro, pintava, fazia portas e janelas e, às vezes, fabricava pequenos caixões. A ele recorriam as pessoas em casa de quem tinham morrido anjinhos. O recado era dado por alguém da família, um primo ou um irmão mais velho do menino morto. Nasci em 1951 e lembro-me bem de o meu avô fazer caixões pequeno sem levar dinheiro. Julgo até que em vez de pregos ele usava lágrimas para unir as tábuas. Como conhecia toda a gente na minha terra e nos lugares à volta (os casais) ele dizia baixinho a sua lamentação perante a morte daquela criança: «Ah fado dum ladrão!» Com este lamento ele revoltava-se contra o destino daquele menino cuja vida fora cortada de modo abrupto pelo tifo, pela meningite, pelo garrotilho. Pela morte numa palavra. Tenho algumas memórias felizes de meu avô em Rio Maior quando da feira da Cebola lá para Setembro. Ele e o senhor Josué iam vender a obra de todo um Verão de trabalho – barris, celhas, tinas, tonéis. Já pensavam na vindima. Depois compravam o sal na Fonte da Bica por causa da proximidade da matança do porco. A Feira dos Santos era no Cartaxo e nem me lembro como íamos para lá mas tenho memória de uma taberna onde num quadro se lembravam os maus pagadores a giz. Havia um identificado apenas como «chofer da Ribatejana». Uma vez houve pancadaria entre um grupo de forcados e um conjunto de ciganos mas quando apareceu a PSP os dois grupos voltaram-se para os agentes da polícia. Entre sorrisos, meu avô afastou-me do epicentro daquilo e dizia baixinho: «Que grande sarrafusca!» E era mesmo grande pois chegou até hoje. Sessenta anos passaram num instante. Pode dizer-se em conclusão: 1957 foi anteontem.    

(Crónicas do Tejo 90 – fotografia de autor desconhecido)

domingo, 5 de novembro de 2017

«Passeio Mágico com Romeu Correia» de Luís Alves Milheiro


Luís Alves Milheiro (n.1962) celebra neste seu mais recente livro o centenário do escritor almadense Romeu Correia. Nascido em Cacilhas no ano de 1917, o autor de «Desporto-rei» reclamou-se sempre «um produto do movimento associativo», foi atleta em diversos clubes entre eles o Sporting Clube de Portugal de 1940 a 1945 («muita saudade e ternura») mas sempre se definiu como um contador de histórias: «Se tivesse nascido há mil anos, não teria sido cobrador no Banco, seria um contador de histórias. E sentir-me-ia muito honrado em andar de terra em terra, de povo em povo.» 
O ponto de partida deste trabalho é simples e complicado ao mesmo tempo; dizia este autor: «Escrevo para fugir à solidão. Escrevo para tentar ser amado. Escrevo pra ser solidário. Sou um trabalhador que escreve histórias sobre a vida de outros trabalhadores». O seu sonho, que ficou sempre em suspenso pois tinha que ganhar a vida num emprego, era «fazer um longo estágio por Feiras e Romarias» pois deste modo, contactando com feirantes e saltimbancos, ficaria a conhecer mais teatro do que «em qualquer conservatório estrangeiro.»
Há um lado fascinante neste «Romeu Correia por ele mesmo» que Luís Alves Milheiro criou a partir de entrevistas deste autor hoje centenário a jornais e revistas. Trata-se da referência a outros artistas. Vejamos o que diz sobre Manuel Ribeiro de Pavia: «De uma só peça. Duro como um chavelho mas, ao mesmo tempo, delicado como uma flor. Pequeno, moreno, de mãos cabeludas e retorcidas como raízes.» Ou sobre Sebastião da Gama: «Nos últimos meses de 51, navegava eu num ferry-boat para Lisboa quando, detrás dos automóveis, oiço um tremendo grito que me sacudiu: Ó Calementoso! Calamentoso! A voz e o atrevimento eram-me familiares mas aquele termo Calementoso? Volto-me e aparece-me por detrás de uma carroça, o Sebastião. Faz uma grande festa e esclarece-me: Éh pá, chamei-te Calamentoso porque escreveste o «Calamento», o romance dos pescadores da Caparica!»
A segunda parte do livro ficciona uma entrevista com Romeu Correia neste ano de 2017 (ano do Centenário) mas se tivermos que resumir tudo em duas linhas poderemos ficar pela página 120: «Foi uma luta sobretudo cultural, fundando bibliotecas, escrevendo romances, contos e peças de teatro.»

(Edição: SCALA, Capa: Mártio, Revisão: Diamantino Lourenço, Apoio: C.M. Almada)

(Um livro por semana 575)

quarta-feira, 1 de novembro de 2017

Em Maio de 1967 no Jamor, ali muito perto do Rio Tejo



Em 25 de Maio de 1967 eu tinha 16 anos e ainda se ia para o Estádio Nacional de eléctrico com atrelado. Foi lá que vi na final da Taça dos Campeões, o jogo entre o Celtic e o Inter com o capitão Billy McNeill receber a Taça dos Campeões Europeus das mãos de Américo Tomás, o ao tempo presidente da República. Tudo começou com um balde de água fria: o golo de Alessandro Mazolla de grande penalidade logo aos 7 minutos. Golo do Inter, 1-0 para os italianos. Na segunda parte Tommy Gemmel empata e Steve Chalmers assina o golo da vitória que poderia ter sido mais dilatada se não fosse a excelente exibição do guarda-redes italiano – Sarti de seu nome. Ficou na minha memória o endiabrado jogador Jimmy Johnstone que espatifou por completo a defesa do Inter. Não esqueço esse jogador endiabrado também porque mereceu da Fábrica Fabergé um ovo desenhado em sua honra, depois de Czares e Czarinas da Velha Rússia terem tido essa honra tão especial. Mas também não esqueço um homem de quilt que passou o tempo todo a cantar e a dançar, numa espécie de êxtase de paixão; o homem cantava antes, durante e depois do jogo, o mesmo é dizer com 0-0, com 0-1, com 1-1 e com 2-1. O escocês cantou e dançou sempre com o seu quilt e a sua bandeira. Hoje dia 27-10-2017 fui com um casal de amigos escoceses e seus dois filhos ao Estádio Nacional onde tirámos fotografias e festejámos a vitória do Celtic. Eu tinha 16 anos e hoje tenho 66, o tempo passa a voar. O Steven era um bebé e só sabe do que ouviu contar. Diz a lenda que ainda há adeptos do Celtic em Lisboa a festejar porque nunca voltaram a Glasgow e a Edimburgh. São os leões de Lisboa. O passado nunca acaba e nem sequer ainda é passado, tudo está presente, tudo se vê de novo e é isso que faz do futebol um mundo ainda fascinante. 

(Crónicas do Tejo 99 – Fotografia de autor desconhecido)

terça-feira, 24 de outubro de 2017

Gralhas, P.M.E.s e carta a Jorge Silva Melo


Li no Facebook que um livro te dá como «fundador» do Teatro de Campolide omitindo a fundação do Teatro da Cornucópia, entre outras coisas relevantes. É um nojo mas tenho para a troca. Outro dia pediram-me uma crónica sobre o escritor Luiz Pacheco e eu aceitei porque fui amigo dele e era o assinante nº 186 do seu ficheiro pessoal. Escrevi a crónica e no momento de a enviar adicionei uma foto do escritor em Palmela. Pois no jornal colocaram o rosto do Luiz Pacheco ao lado do meu nome. O paginador não sabia quem sou eu e, mais grave, não sabia quem é o Luiz Pacheco, um escritor já canónico da Literatura. Eu, obscuro e discreto PME (pequeno e médio escritor) quando me querem apertar os calos mando-os logo consultar o «Dicionário de Literatura Jacinto do Prado Coelho». Como diz o Povo: Toma lá pelos queixos que é para aprenderes. O teu livro «Século Passado» tem uma gralha no nome do Joel Serrão (aparece Ferrão) e o mesmo Joel Serrão no Jornal de Letras de 29-4-2015 é omitido como organizador e editor das «Cartas de Fernando Pessoa a Armando Cortes-Rodrigues»  tarefas que são atribuídas a António Rebordão Navarro. Também há gralhas orais. A minha filha mais velha (Arquitecta) estudou numa Universidade onde havia um senhor de fato-macaco sempre disponível para arranjar fechaduras escangalhadas, vidros partidos ou outro qualquer problema. Um dia, na bicha para o café, o senhor pediu em voz alta «duas italianas» para ele e para o engenheiro de Manutenção; sem saber de nada duas italianas estudantes em carne e osso ficaram todas abespinhadas com o homem do fato-macaco. A propósito de italianas há uma escritora desse país que insiste em escrever angélica quando a bebida dos Açores é angélica. Outra apresenta-se como estudiosa de Sebastião da Gama mas escreve que ele morreu com 28 anos (foram 27) e falha no nome do director da Gazeta do Sul – Chama Augusto Barbosa a Alves Gago, Fiquemos por aqui.

(Vinte Linhas 1702 - fotografia de autor desconhecido)

domingo, 15 de outubro de 2017

Menina 25 Anos Depois


Vem do lado da luz e faz um vagaroso intervalo na pressa do trânsito, tão veloz e tão compacto.
É um tempo novo que os seus olhos abrem no que resta da manhã: a cidade tinha uns taipais de névoa e foi a sua força que os rompeu. Barcos aflitos apitaram no Tejo o desassossego da rota duvidosa.
São estes os paradoxos do Tempo: quem procure o seu bilhete de identidade achará cifras e datas, uma cronologia pesada. Porém, nem a voz nem o olhar nem o corpo solto e leve se conjugam com o tempo registado. E a luz, aquilo a que chamo luz, mistura de respiração e olhar, retrato e volume, ruptura e movimento, essa continua a iluminar quem dela, mulher-menina, se aproxima. Tal como há vinte e cinco anos ela transporta as quatro estações na voz, os dias da semana no olhar, os meses no rosto, as horas nas mãos.
É o tempo condensado de uma viagem entre o campo e a cidade.
Celeiro de emoções, adega de perfumes, eira de saudades, sótão de memórias, a sua voz é, ainda hoje, o registo pessoal da luz da aldeia contra a névoa da cidade.

(Óleo de Albert Linch)

sexta-feira, 6 de outubro de 2017

António Barreto sem emenda ou «o número absurdo de mortos»


António Barreto escreve no «Diário de Notícias» de 10-9-2017 na sua página «Sem emenda» esta frase miserável: «Os incêndios florestais de 2017 especialmente de Pedrógão Grande, entraram para a história.» Considero a frase miserável porque é demagógica, é parcial, é mentirosa, é omissa em relação às coordenadas e às circunstâncias. Este mesmo António Barreto fica numa nota de rodapé da História de Portugal porque ajudou a rebentar com a Reforma Agrária tal como Maldonado Gonelha ajudou a «partir a espinha à Intersindical». Eles foram dois «peões de brega» numa «tourada» em que o «inteligente» foi Mário Soares. Como inteligente, foi dele que partiu a indicação de música para as «faenas»; não uma música qualquer mas uma música muito triste como a dos «robertos» ou das «cégadas».
Em 2003 morreram 18 pessoas nos fogos do concelho de Vila de Rei, ardeu 90 por cento da sua mancha florestal e a vaga de calor matou 1953 pessoas. Uma delas foi a minha sogra. Em 1966 morreram 25 soldados do Regimento de Queluz na Serra de Sintra. Sei disso porque comecei a trabalhar no dia 9-9-1966 deparando no BPA da Rua do Ouro com muita gente de lágrimas nos olhos pois Algueirão e Mem Martins são perto de Sintra e as más notícias correm depressa apesar da Censura aos jornais, à Rádio e à TV. Pois o António Barreto nada disse de parecido sobre os dois casos – que eu me lembra. Talvez porque o primeiro-ministro era Durão Barroso em 2003 e o exílio na Suíça não lhe dava elementos para exercer a sua demagogia em 1966. Falar em «número absurdo de mortos» só mesmo o absurdo António Barreto. Deveria ter ficado lá pela Suíça onde estava muito bem. Por aqui já ninguém meu conhecido quer enfiar esses e outros «barretes» do António Barreto.

(Vinte Linhas 1700 - Fotografia de Miguel Lopes)

domingo, 1 de outubro de 2017

Jorge Silva Melo ou no melhor pano cai a gralha


A minha ligação ao Teatro não é de agora. Desde 1966, quando vim para Lisboa trabalhar no BPA da Rua do Ouro, estava muito perto do José Palla e Carmo e frequentei teatros os mais diversos. Vi peças de (entre outros) Luzia Maria Martins, Bernardo Santareno, Romeu Correia ou Bertolt Brecht, vi actores como (entre outros) João Perry, Vasco de Lima Couto, João d´Ávila, Jorge Silva Melo, Luís Miguel Cintra, Rogério Vieira, Luís Lucas, Paulo Renato, Laura Alves, José Viana, Raúl Solnado. Chega. Estiva na Sala Cinzenta do Sindicato dos Bancários do Sul e Ilhas na encenação de «A excepção e e regra» com música de José Afonso. Brecht, claro, tal como em «O círculo de giz caucasiano» no Teatro Aberto da Praça de Espanha. Recordo também o «Casimiro e Carolina» e o «Não se paga, não se paga» de Dário Fo. E a Raquel Maria que, nesta memória, não pode ficar para trás. Num certo sentido vejo no Teatro a fragilidade e a força da Poesia. Um dia Maiakowsky terá escrito que «as palavras valem pouco, tanto como as pétalas pisadas depois de um baile» mas o problema é que precisamos de palavras para comunicar com os outros, seja na Poesia, no Teatro ou em qualquer aspecto mesmo comezinho da vida. Nisto das palavras o medo maior são as gralhas. Na Poesia como no Teatro. Acabo de receber o programa dos «Artistas Unidos» sobre a peça de Dimítris Dimitriádis «A vertigem dos animais antes do abate» e lá está na linha 6 do texto «récia» em vez de Grécia. Falta um «G» em caixa alta. Talvez por isso tenho saudades do tempo em que as coisas eram compostas a chumbo. Outro aspecto diz respeito às sessões «A voz dos poetas» que só referem o local (Rua da Escola Politécnica 135) mas não a hora. Como dizia o outro – pequenas coisas que não são coisas pequenas. Nota final – talvez o nome de Brecht não seja bem assim. 

(Vinte Linhas 1699)

sábado, 23 de setembro de 2017

«A Benfica dos Lobo Antunes Exposição até ao dia 15 de Outubro


Trata-se de uma exposição que mistura dois tipos de memória (fotografia e texto) aberta desde 15 de Setembro a 15 de Outubro no Espaço Ulmeiro na Avenida do Uruguai 13 A (Benfica) de Segunda a Sábado das 9h30m às 19h. A curadoria é de Ana Sofia Franco e Andreia Friaças, os patrocínios são do Espaço Ulmeiro e da Info Friaças Lda e o apoio institucional é do Arquivo Municipal de Lisboa – Câmara Municipal de Lisboa.
Estamos em 2017 e esta é uma viagem no tempo, um regresso teórico ao passado, uma busca do nosso tempo perdido na cidade de todos nós. Estas ruas (sabemos de ciência certa) não vão voltar a ser como nas fotografias, as calhas dos eléctricos desapareceram, a ideia de que há sempre lugar para o estacionamento é mentira. Trata-se (arrisco a afirmação) do esplendor da nostalgia. A foto sugere algo como «eu passei por ali em 1966», há uma inscrição pessoal de cada um dos espectadores da exposição numa memória colectiva.
Parece de propósito mas horas depois de visitar a exposição «A Benfica dos Lobo Antunes» recebo «O nome dos poemas», livro de Soledade Martinho Costa (Edições Vela Branca) onde na página 50 se pode ler este poema para António Lobo Antunes: «A manter vivos / Os nomes / E a Casa / Ser o eco da infância. / À flor da pele / A ternura / Assumida e assinada. / Mas ser também / Vela de seda / Em mastro desfraldada / Num mar de rebeldia / E de coragem. / A inverter as regras / Ao recato / Imposto ao bom nome / Das palavras.»
Como diziam os cauteleiros de antigamente «Há horas de sorte» e isto de receber um belo livro com um poema dirigido a um protagonista de uma exposição de fotografias antigas e de palavras modernas foi mesmo uma hora de sorte.

(Vinte Linhas 1701)

sábado, 16 de setembro de 2017

Dissertação para um quadro de Maria de Lourdes Mello e Castro


Num primeiro olhar vejo neste belíssimo quadro de 1957 o sorriso de Lena, a menina de 1976 quando subia ao monte de pedras do Jardim da Estrela para ver o Rio Tejo. Lena, ela-mesma, a Leninha, a mais nova num gruo de cinco irmãos (Kiki, Guida, Tó, Rui, Lena) a Lena que estava na Quinta do Conde num tempo de sonhos quando parecia a todos nós que o tempo não voava, como voa, afinal. Escreveu um dia Ruy Belo que «o medo da morte é a fonte da arte» e talvez seja essa a razão para o quadro de Maria de Lourdes Mello e Castro e para a minha obscura e discreta crónica. Hoje estamos em 2017, sessenta anos depois do quadro, falo com Lena uma vez por ano e sei que as suas filhas já estudam na Universidade. Eu próprio sou um portador de passe da terceira idade que me dá descontos porque pago hoje metade do que pagava em Fevereiro passado. A viagem da obra de arte é outra, não precisa de autocarros ou Metros nem de comboios para atravessar a paisagem e o povoamento da nossa vida cinzenta.
A obra de arte torna-se mais portátil, mais leve, mais particular. Graças à multiplicidade das cópias de um quadro de 1957 podemos hoje recordar num óleo com sessenta anos uma menina que nasceu em 1976 e nunca mais saiu da memória deste seu amigo nascido em 1951. Num quadro, tal como num poema, cada leitor apropria-se daquilo que julga poder guardar junto ao lado mais sentimental do corpo humano – o lado do coração. Num certo sentido não podia ser a Lena que em 1957 ainda não tinha nascido mas no quadro é de facto, na verdade, a Lena. Essa Lena de 1976. O esplendor do sorriso, a luz do olhar, a serena contemplação do Mundo. Ou dito de outra maneira e como queria André Breton: «É no amor humano que reside todo o poder de regeneração do Mundo».                         

(Crónicas do Tejo 77)

quinta-feira, 7 de setembro de 2017

O eléctrico «28» debruçado sobre o Rio Tejo


(dedicado a Thomas Francisco Sutherland em Londres)

Este é o meu eléctrico desde 1966 quando comecei a trabalhar no BPA da Rua Áurea nº 110 e morava na Travessa do Caldeira, ali à Calçada do Combro. Nesse tempo o «28» subia a Rua Augusta e descia a Rua Áurea à noite e nos fins-de-semana. Isso permitia-me ir ao cinema Estúdio 444, apanhar o Metro na estação do Campo Pequeno, sair na do Rossio e esperar o «28» ao pé das floristas do Largo. Outro dia arrancaram os carris da Rua Áurea e foi para mim doloroso porque aqueles ferros eram parte da minha memória viva tantos anos depois daquelas tão antigas viagens.
Anos depois foi o meu filho Filipe que nele viajou com os seus mais chegados amigos (os Tiagos e o Hélder) no tempo da Escola Secundária David Mourão-Ferreira e mais tarde quando a Escola Veiga Beirão mudou de nome. Tinha sido ela a minha Escola em 1971 quando, graças ao trabalho do Poeta Manuel Simões, nosso professor, os meus primeiros poemas foram editados e saíram num livrinho colectivo com o título de «Lugar de Ser».
O meu neto Thomas chama-lhe «my tram» («o meu eléctrico») e fica surpreso quando no Largo das Duas Igrejas vê passar o «28» que vem dos Prazeres para a Graça. Admira-se em voz alta: «look, there is another!». Ou seja, «olha afinal há outro!». Claro que há outras memórias do mesmo eléctrico. Eu próprio, já avô, fui muitas vezes no tal «28» à Voz do Operário ali na Graça buscar o meu neto Pedro o fim da tarde.  Este «28» é afinal todos os eléctricos que transportam passageiros e memórias, eles são uma cápsula do tempo feita de vidro e de madeira, feita de ferro e de napa – que os bancos de palhinha já não existem. Só a memória, só a recordação, só o sentimento.

(Crónicas do Tejo 75 - fotografia de autor desconhecido)

quinta-feira, 31 de agosto de 2017

Portugal - entre a sarjeta e o altar



Portugal é um país de analfabetos que conhece Bulhão Pato pelas amêijoas, Camões pelo olho perdido em combate e Bocage pelas anedotas. Não há volta a dar a esta situação. Foi para mim muito penoso e desagradável um destes dias ter ouvido alguém que parecia um sacerdote católico de Pedrógão Grande enquanto se paramentava a falar no que temia da burocracia portuguesa como sinónimo de atraso nas indemnizações. O vómito era grande, o nojo era enorme, a repulsa era poderosa. Alguém numa televisão pretendia transformar em notícia um simples temor (ainda por cima) direcionado a uma entidade (burocracia) não apresentada nem definida nem apontada,
O mesmo sacerdote católico nada disse (eu não o ouvi) em 2003 quando ardeu noventa por cento da mancha florestal do concelho de Vila de Rei, morreram dezoito pessoas e a vaga de calor fez 1593 (ou 1953) vítimas só confirmadas pelo INE em Janeiro de 2004. Presumo também que nada disse em 8 de Setembro de 1966 quando na Serra de Sintra morreram na flor da idade vinte e cinco jovens militares do Regimento de Queluz.
Aos Domingos de manhã há muitas pessoas a sair de uma igreja dos arredores de Lisboa e a atravessarem a estrada fora das passadeiras tal é a pressa de comprarem um jornal que em vez de tinta usa a água suja das sarjetas para ser impresso. Esta relação entre a sarjeta e o altar preocupa-me mas já não a estranho. Em Portugal é assim. Os que saem a correr da igreja nem reparam no jornal «A Voz da Verdade» que fica numa pequena mesa ao lado da pia baptismal. «A Voz da Verdade» é um jornal que tem poucos leitores. Os seus possíveis leitores que vão à missa dominical preferem um jornal impresso com a água suja das sarjetas.   

(Vinte Linhas 1698)

quarta-feira, 23 de agosto de 2017

João de Melo - as lágrimas e os beijos ou «Gente feliz com lágrimas»


O Facebook tem destas coisas: li um texto teu mas perdi-lhe o rasto e apenas posso recordar os tópicos. Falava da tirania, do abuso de poder, do fascismo, da maldade. Falava da Turquia mas eu não me esqueço da Arménia porque passaram apenas cem anos e cem anos é muito pouco, é o tempo entre o meu avô e o meu neto. Escolhi uma foto de um funeral de crianças na Faixa de Gaza porque vem mesmo a propósito. Há apenas homens a chorar a morte dos seus filhos inocentes. As mulheres ficaram a chorar de outra maneira, depois de terem beijado os seus mortos. Há aqui na Faixa de Gaza o outro lado do Gueto de Varsóvia e o que eu vejo neste funeral de meninos lembra os mortos de Der Iassine em 1948. Trata-se da operação «chumbo fundidio» idealizada numa cama de Hospital por Ariel Sharon. A morte é sempre uma experiência limite, uma tragédia e nunca uma estatística. Houve um Quisling na Finlândia, um major Hadad no estado fantoche entre o Sul do Líbano e o Norte de Israel. Ambos foram executados a seu devido tempo. Sabra e Shatila são massacres muito falados em 1982. Ainda hoje muita gente ao recorda no Líbano e não só. Há poemas vários e outras memórias. Eu não esqueço. Muito curioso é o facto de o teu texto referir a Turquia. Sabemos que a Arménia era um país e passaram cem anos sobre o genocídio do seu povo. O senho Calouste Gulbenkian veio para Portugal e aqui se sentiu bem. Todos em Portugal ficaram a ganhar mas os arménios foram mortos como passarinhos e os rios encheram-se de sangue perto de Erevan. «A vida não é nobre, nem boa nem sagrada» escreveu Federico Garcia Lorca. A fotografia com o rumor das lágrimas e dos beijos mostra um funeral na Faixa de Gaza e prova isso mesmo. Como diz um título de um livro teu é tudo isto é a «Autópsia de um mar de ruínas». 

(Vinte Linhas 1696 - Fotografia de autor desconhecido)

domingo, 13 de agosto de 2017

Carta a João Oliveira e Costa


Quando aceitei o seu pedido de amizade no Facebook estava a lembrar-me da entrevista que lhe fiz para a «Gazeta das Caldas» a propósito do seu livro «O império dos pardais». Nunca esperei que minutos passados caísse no meu Facebook uma chuva de tretas saídas não da sua Universidade mas da Faculdade de História da Rabicha, ali a Campolide, lugar onde a História é falsificada. Para além das tretas custou-me muito ver que em alguns comentários aparece a expressão «Carrega Benfica» que é uma cópia mentirosa, repugnante e mal feita de uma frase  do treinador Joseph Szabo (há quem escreva José Sezabo) dirigida a Fernando Peyroteo. Vem na página 85 do livro «Memórias de Peyroteo» e a sua expressão integral está na frase - «Não esquecer principal papel dê avançado-centro: Carega Maria!! (Compreenda-se atirar ao golo)» O comentário entre parêntesis é do autor do livro, Fernando Peyroteo.
Por favor arranje maneira de me desligar desta «amizade» no Facebook que não me interessa, só me desgasta  e onde entrei por engano. Tenho 66 anos de idade, nasci em 1951 e já não tenho paciência para muitas coisas, uma delas é este conjunto de tretas que me entrou assim tão de repente pelo ecran dentro. Para si não terá qualquer importância pois amigos não lhe faltarão e a mim faz-me diferença. Este friso de atletas do SLB mostra entre outras coisas que o gesto era transversal a todos os clubes grandes e até a alguns mais pequenos como o Casa Pia. O senhor que é especialista em História percebe muito bem que a matriz da época é muito importante para perceber um gesto. Não podemos olhar para coisas e pessoas dos anos 30 com os olhos de 2017. Fico à espera da supressão deste equívoco. Por favor. Espero que não me desiluda porque no Facebook não posso (mesmo!) ser seu amigo. 

(Vinte Linhas 1697)

domingo, 6 de agosto de 2017

Penélope - editora, livraria, livros e outras coisas sobre o Bairro Alto


Por um simpático comentário a uma ficha de leitura por mim assinada noutro Blog («transporte sentimental») soube do interesse de alguém (assina «Penélope») por tudo o que diga respeito ao Bairro Alto. Começo por referir a editora Apenas Livros cujo telefone é o 217582285; foi esta a editora do livro «Cancioneiro do Bairro Alto». Da parte das pessoas da editora em causa pode vir uma boa ajuda nas suas pesquisas. Depois assinalo o número de telefone da Livraria «Fábula Urbis» que é o 218885032. É uma livraria que tem tudo, mesmo tudo, sobre Lisboa. Vale sempre a pena uma visita, sairá sempre mais rica do que entrou. Também sugiro o livro «Dicionário das Alcunhas Alfacinhas» da editora Livros Horizonte com introdução e notas de Francisco Santana. Veja-se por exemplo a interessante entrada sobre «Ana do Cão» na página 13: «Mulher de baixa categoria e de má nota, que tinha uma casa de toleradas na Travessa da Palha. Era muito conhecida entre os estroinas de há 40 anos. Dizem que o poeta Mário Sá Carneiro, que se suicidou em Paris, o fez com desgosto de o pai ter contraído matrimónio com essa mulher por quem se apaixonou depois de velho.» Outro livro a recomendar é o romance «Bairro Alto» de Avelino de Sousa, romance baseado na opereta homónima do mesmo autor que foi levada à cena em Lisboa no teatro de São Luiz em 22-4-1927 (faz agora 90 anos!) pela Companhia de Armando de Vasconcelos com música de Venceslau Pinto, Alves Coelho e Raul Portela. Sugiro ao mesmo tempo os dicionários de Orlando Neves e Afonso Praça. Num deles, entre o calão e o palavrão, lê-se na entrada «Variedades» esta célebre frase que só podia ser ouvida no Bairro Alto de outros tempos: «Ó filho eu só faço o natural, se queres variedades vai ao teatro.»

(Vinte Linhas 1695)

quarta-feira, 2 de agosto de 2017

Pedrógão Grande e Tancos - os plurais são sempre um abuso


É conhecida a história de três alfaiates ingleses que assinaram uma petição à sua rainha lá pelos idos de 1500. O texto começava com um abusivo «nós, o povo inglês» o mesmo é dizer «we, english people» mas o abuso está no plural. Tudo isto tem a ver com o fogo de Pedrógão Grande e as munições de Tancos. Não ´é preciso ter muitos contactos para receber mensagens SMS ou EMAIL utilizando um abusivo plural para dar conta da revolta individual e copiada perante os factos. Sintomático é que algumas das mais incendiárias notícias sobre o fogo de Pedrógão Grande foram assinadas por um pseudónimo de um jornalista espanhol. Quando procuraram saber quem era o «artista» a chefe de redacção referiu com todo o desplante que é normal em Espanha as notícias serem assinadas com pseudónimo. Enfim trata-se de uma pacalaia como se diz na minha terra. Quanto ao dito assalto às munições de Tancos foi por acaso num jornal espanhol que apareceu uma lista supostamente completa ou inventada do material bélico roubado. Claro que isto é um esquema tal como é esquema o artigo a comparar o fogo no Sul de Espanha com o fogo do Centro de Portugal. Os demagogos falam no plural e comparam o que não tem comparação. É como comparar os fogos daqui com os da Califórnia nos EUA. Este tratamento sobranceiro dos espanhóis e o sublinhar canino deste lado da fronteira faz-me lembrar a história da letra que todos os meses era enviada para cobrança num banco de Madrid. Essa letra era avalizada por um Banco, o mesmo é dizer dinheiro em caixa. Quando no BPA começámos a perceber que o crédito em conta só surgia no dia seguinte demos início a uma tentativa de sermos ressarcidos dos juros mas ao fim de muito tempo com cartas, telegramas e telexes veio uma resposta taxativa e plural: «Es una prática de nosostros».

(Vinte Linhas 1694)

quinta-feira, 27 de julho de 2017

«O inspector da PIDE que morreu duas vezes» de Gonçalo Pereira Rosa



O subtítulo deste livro com 310 páginas de Gonçalo Pereira Rosa (n.1975) explica um pouco do conteúdo das 26 histórias que o integram: «e outras gaffes, triunfos e episódios memoráveis do século XX na Imprensa Portuguesa». Embora o título do volume seja escolhido a partir de um dos seus (digamos) capítulos assim como nos livros de contos, esta escolha poderia ter recaído noutro. Não é fácil escolher.
Ao todo são 26 os textos nos quais se conta parte da História do tempo português do século XX. Grande parte dele passado no regime da Censura; veja-se o texto de Jacinto Baptista na página 217: «Sei que por causa da Censura, pela tensão que me causa durante o dia, a toda a hora, pelo acréscimo de trabalho com que sobrecarrega as minhas funções de redactor-paginador, obrigando-me a desfazer e refazer títulos, a desfazer e a refazer páginas – por causa da Censura estou à beira de um colapso nervoso. E vou morrer mais cedo, arrasado, inconformado – por causa da Censura.» Gonçalo Pereira Rosa recorda as palavras de Ribeiro dos Santos sobre a Censura e a cumplicidade das Forças Armadas: «Como então se dizia, as armas eram seis: infantaria, cavalaria, artilharia, engenharia, aviação e censura».
Vitorino Nemésio definiu de modo certeiro o jornalismo: «Ser jornalista é andar à roda do mundo num só pé. Há ali miséria, efemeridade, glória e o pão que o Diabo amassou». Esse pão que o Diabo amassou, como na história que dá título ao livro, pode ser uma sucessão de acasos: No dia 2 de Outubro de 1960 o «Diário de Lisboa» publica a notícia necrológica do coronel Rui Padrão Pessoa de Amorim, cujo primo era homónimo e subdirector da PIDE. Ele reage desta maneira: «Mataram-me! Ainda por com com uma notícia de merda na necrologia, ao lado de mortos da Rua dos Fanqueiros… Eu que salvei a Pátria duas vezes do abismo…» Tudo termina numa nota do jornal que ninguém lê: «Por lamentável erro de informação, noticiámos ontem o falecimento do distinto oficial do exército (…) Quem faleceu foi o também distinto oficial do exército com o mesmo nome.»
O humor e a graça aparecem na página 304 num texto de Luís Alberto Ferreira quando o director de «O Mundo Desportivo» foi ao Estádio do Bonfim entregar a Taça Disciplina ao Vitória de Setúbal e o jantar ficou reduzido a uns amendoins e um copo de três: «Chamei-lhe bola-de-berlim com bigodes! Foi um escândalo.»
Fica uma pálida ideia destas 26 histórias de jornais e de jornalistas, um mundo difícil como Baptista-Bastos adverte: «Nascer e morrer no mesmo dia pode ser uma epopeia de gigantes mas é uma tarefa fatigante para os simples mortais».
(Editora: Planeta, Prefácio: Francisco Pinto Balsemão, Revisão: Fernanda Fonseca)

(Um livro por semana 560)


quinta-feira, 20 de julho de 2017

«Noite vertical« de Zetho Cunha Gonçalves



Há neste recente livro de Zetho Cunha Gonçalves (n. 1960) uma dupla inscrição: amor e morte. Amor na página 32 («E nenhum rio é como esse / o rosto magnificente da infância / a pátria inaugural da Poesia») e na página 67: «a minha escola primária / foi a sombra duma árvore muito antiga – e a voz / um pêndulo que soletrava / nas crateras debaixo do fogo / horas e números – no horizonte». A morte pode ler-se na página 21 («Os meus mortos deram-me versos, assombros – um rio acampado na memória») e na página 65: «Olho para o Tempo e digo: - Eu estive / onde a morte começou. Insensitiva, / reles, insidiosa, banal.» 
Entre o amor e a morte surge o poema inicial («Os rios tocam-se de águas iluminadas») espécie de janela para o poema da plenitude no qual tudo se liga: «Trago nas minhas mãos – o coração do mundo / o tempo em que os rios ardem / se volto o meu rosto / à tua passagem / na multidão». O poema da página 59 integra um programa de vida e de poesia na voz da Mãe: «Meu filho / se aquilo que sonhaste não chega / para encheres a barriga / ao teu desejo e ao teu sossego / canta / canta com a voz voltada para nascente / enquanto lavras / e lavras a força / e a dança do leopardo.»
O autor convoca versos e frases de Dante Milano, Rainer Maria Rilke, Jacobo Fijman, Friedrich Hölderlin, António José Forte, Fernando Assis Pacheco, Ruy Duarte de Carvalho, Eduardo White e Herberto Helder para homenagear em poemas, aforismos e prosa-poemas figuras diversas das Artes e das Letras: António Ramos, Rosa, Fernando Assis Pacheco, António Prates, David Mestre, Robson Dutra, Roberto Chichorro, José Craveirinha, Ruy Duarte de Carvalho., Eduardo White e Herberto Helder. Nesta oscilação entre «cantar» e «reflectir», Zetho Cunha Gonçalves lembra David Mestre com um poema feito dos títulos dos livros do poeta morto em 1998: «1 - O nome, crónica / do ghetto, sobe / pseudónimo ao poema:/ pulmão / subscrito a giz / nas barbas do bando / 2 – No relógio de Cafucôlo / nem tudo é poesia / lusografias crioulas: são quarenta / e nove anos / obra cega, / do canto à idade.»
(Editora: Língua Morta, Capa: Gustave Doré)

(Um livro por semana 559)


sexta-feira, 14 de julho de 2017

O jornalismo ou carta aberta a Gonçalo Pereira Rosa


Os jornais e as revistas foram a Universidade que não tive. E também foram o meu Liceu. Nasci em 1951 e em 1957 uma senhora muito fina no Montijo afirmou mais ou menos isto à porta de uma pastelaria famosa: «Os filhos dos motoristas não vão para o Liceu!». E eu era filho de um motorista; por isso não fui para o Liceu. Naquele tempo o Liceu mais perto do Montijo era o de Setúbal e os rapazes iam de comboio até ao Pinhal Novo e aí apanhavam outro comboio para Setúbal onde estava o poder político e também o poder cultural. A «Gazeta do Sul» no Montijo que eu via ser feito nas Oficinas Gráficas ainda a chumbo e a edição mensal (feita em Rio Maior) de «O Catarinense» que a minha mãe guardava numa caixa de sapatos juntamente com o semanário «Sporting» que eu lia em primeira mão antes do jornal chegar à assinante Dona Teresa, são o princípio de tudo.
Conheci o Gonçalo Pereira Rosa porque fui redactor do jornal «Sporting» de 1988 a 2006 e estreei-me em 1978 no «Diário Popular» mas vamos por partes. Cheguei aos dez anos com a biografia já definida: iria estudar numa Escola Técnica (nunca num Liceu) e iria trabalhar aos quinze anos. Quase não tive férias em 1966 no Verão em Santa Catarina: um telegrama de Secretaria chamou-me para ir trabalhar na Rua do Ouro nº 110, a sede do Banco Português do Atlântico. Antes desse deslumbramento em 1966 dos Suplementos Literários com o «Diário de Lisboa», o «Diário Popular», o «República» e a «Capital» (a partir de 1969) eu vivi em Vila Franca de Xira e ia todos os Domingos à noite comprar o «Diário Popular» por duas razões: o futebol à tarde e a crónica de Santos Fernando. Hoje continuo a pensar como pensava nesse tempo que «Os grilos não cantam ao Domingo».            

(Vinte Linhas 1693)

sábado, 8 de julho de 2017

Lamentação para um tempo passado na foto a preto e branco


Num destes fins de tarde de Lisboa com um céu cheio de nuvens brancas a anunciar trovoadas e bandos de turistas (não viajantes) em calções curtos que sobem as Escadinhas do Duque a gritar «Are you local people?», num destes fins de tarde recebi uma oferta inesperada. Um livreiro em arrumações na sua livraria descobriu desirmanada uma fotografia a preto e branco que me ofereceu. Pode ser a Brigitte Bardot, pode ser uma das jovens actrizes a que os jornais dos anos 60 chamavam «azougadas» e mostravam os seus pequenos biquínis nas praias da Riviera Francesa. O livreiro meu amigo oferece-me a fotografia e com ela o pretexto para uma crónica. Esmo sem estar presente nela esta fotografia tem a ver com esse tempo. Eu era em 1966 um jovem atónito, confuso e perdido na grande cidade. Tinha começado a trabalhar numa sexta-feira nove de Setembro porque nesse tempo trabalhava-se ao sábado até às 13 horas nos Bancos. Não tenho a certeza se actriz é Brigitte Bardot nem isso é agora o mais importante. Sei que este é um retrato desse tempo de guerra e paz, de amor e ódio, de morte e vida. Mesmo quando as manhãs se abriam em esperança as tardes acabavam em amargura. O tempo era triste, a monotonia tudo abarcava, o velho ditador, o monstro de Santa Comba Dão falava na Rádio e na TV para dizer: «Está tudo bem assim e não podia ser de outra forma!»

(Vinte Linhas 1692)

segunda-feira, 3 de julho de 2017

«Há vozes no Charco» de Raul Malaquias Marques e Pierre Pratt


Paisagem e povoamento, já o lembrava Carlos de Oliveira. Tudo nesta história começa com a paisagem: «Não é grande este charco. Podia ser maior, é verdade. Mas, assim como está, está bem. Fosse ele maior, havia logo de vir alguém chamar-lhe lago…» Segue-se o povoamento: além dos simpáticos vizinhos da herdade, no charco existem rãs, um boi e um menino (o Quim) que guardou uma rã na taça de vidro onde a mãe costuma fazer a mousse de manga. Passada uma semana a rã acabou por regressar ao charco, levada pelo menino Quim.
O biólogo que estuda o charco e que conta esta história está preocupado porque se anuncia a construção de uma grande estrada que poderá vir a arrasar o charco: «Os senhores do projecto são categóricos. Dizem eles que nenhum desvio é possível. Não é possível porquê? Não o disseram.»
A história continua porque as vozes do charco são também as dos leitores que o autor convida a manifestarem-se não contra a estrada mas contra o facto de a estrada poder vir a arrasar o charco. Dai as palavras finais: «Vocês vêm comigo? Podemos marcar já o dia?»
Na última página se explica como este livro é «carbonfree» pois para o editar foi preciso cortar árvores e gastar energia para produzir o papel no qual o livro foi impresso. Para compensar as emissões de dióxido de carbono para a atmosfera, a APCC em colaboração com a Ecoprogresso apoiaram um projecto de energia limpa através do calor gerado numa indústria, evitando a emissão de dióxido de carbono por combustíveis fósseis.
(Editora: APCC, Revisão: Clara Boléo, Design: Raquel Castelo)

(Um livro por semana 555)

segunda-feira, 19 de junho de 2017

Revista Aldraba nº 21 Abril 2017 - Homenagem a Maria do Céu Ramos


O moínho da capa da Revista ALDRABA nº 21 está parado tal como parou no passado dia 18 de Abril o moínho do coração de Maria do Céu Ramos, vice-presidente da Direcção e associada nº 59 da ALDRABA. Entre o moínho que transforma grão em farinha e o que transforma dias em tempo de viver, as semelhanças são óbvias. Pelo menos para mim que fui convidado para apresentar o conteúdo destas 30 páginas. Num dos meus poemas associei o moínho ao navio: ambos precisam de velas e ambos viajam embora com destinos diferentes. O destino do moínho é o pão, o destino do navio é o porto mais próximo. Nada contra os motores actuais mas isso é outra conversa.  
O texto de José Nelson Cordeniz sobre as danças de Carnaval na Ilha Terceira surge com uma arte final algo descuidada. Além de um abuso dos advérbios de modo (essencialmente, especialmente, propriamente, actualmente, claramente) nota-se que o acordeão vem a página 21 como algo de positivo e na página 19 aparece a concertina como instrumento musical que tem prejudicado a música folclórica. Embora não seja este o local e o momento para tratar este assunto, a verdade é que para a maioria das pessoas acordeão e concertina andam a par. Outro pormenor de descuido está na referência à estrutura das danças: «Saudação, Assunto e Despedida» na página 20 mas «Introdução, Assunto e Despedida» na página 21 embora o texto anuncie que é tudo «igual». Pouco compreensível é na página 21 o texto que refere «um convívio após a Dança recheado de iguarias típicas» mas não é o convívio que é recheado; pode ser a mesa posta. De qualquer modo a mensagem de inventário e notícia chega ao leitor e é esse o objectivo do texto.
Nuno Nabais num artigo de opinião intitulado «Lisboa, a Cultura e Espinosa» refere entre outros pontos de muito interesse esta ideia: «hoje aquilo que interessa à Universidade não é a indústria cultural mas o comércio cultural». Nesse sentido, não é de estranhar que, mais à frente, surja outra ideia sobre a mudança de paradigma: «os suplementos literários foram substituídos por agendas culturais» ou dito de outra maneira «uma compilação avulsa de sugestões de entretenimento». Em termos sintéticos pode dizer-se que os jornais do meu tempo (1978) tinham secções de «Artes e Espectáculos» mas hoje é só espectáculo. Tudo isto pode ser dito de outra maneira: são quatro os conceitos e as palavras-chave para a actual circunstância – património, luxo, arte e turismo. Espinosa nasceu em Amsterdam. De família natural de Vidigueira que foi expulsa de Portugal e refugiou-se na Holanda. Escreve Nuno Nabais: «Sonhava em português, fazia exegese em hebraico, escrevia tratados de ética e filosofia política em latim e dirigia a oficina de lentes em holandês». Nestas palavras está um resumo do escritor que pode vir um dia para o Panteão Nacional ou ter até o seu nome num Prémio Literário.
Fernando Fitas assina um texto sobre os Museus no qual afirma que «o Museu tem de ser um espaço vivo para ser vivido», permitindo aos visitantes manusear as peças das prateleiras. Luís Filipe Maçarico refere dois livros de António Salvado e cita de um deles a frase de um autor francês para quem «o Museu é a Universidade Popular através dos objectos». Shawn Parkhurst da Universidade americana de Louiseville (Kentucky) ocupa a página 8 com um texto de amor ao Rio Douro: «O amor agarrou-me em 1992. Eu já não existo sem o Douro, mesmo estando longe dele». Outras águas são as de Sónia Tomé. Resumem a sua participação no Festival Literário Internacional de Querença em Agosto de 2016. Nesse encontro literário foi patente a flutuação entre dois tempos e dois mundos da água no Alto Barrocal Algarvio: ora escassa, ora excessiva. Muito curiosa é uma das quadras sobre uma realidade que já não volta: a má língua das mulheres quando lavavam a roupa numa pedra da ribeira: «Água nos dá alegria / Lava a alma e o coração / Água lava tudo quanto cria / Só a má língua é que não».
João Coelho recorda os tempos difíceis dos marçanos que com 13 ou 14 anos chegavam da terra e começavam logo a carregar as compras das «senhoras» às costas em cabazes de vime. O pagamento era «cama, mesa e roupa lavada» mas a cama era má, a comida era´péssima e da roupa só era lavada uma muda por semana que o sabão sempre foi caro e a ganância sempre foi forte. Nuno Roque da Silveira conta a história de Joaquim Raposo Dias, um polidor de móveis na Calçada das Necessidades e a memória do seu avô Raposo que tinha um quiosque no cruzamento das ruas Marquês de Fronteira e Artilharia Um. Escreve a certo passo «Caíram-lhe em cima» mas o texto não explica quem caiu em cima do avô. Talvez mariolas como então se dizia e escrevia. Maria Adelaide Furtado lembra a gramática dos toques dos sinos que até há pouco tempo e ainda no século XX regulavam a vida de muitas comunidades. Nos Açores havia uma frase em muitas freguesias que toda a gente acatava: «Trindades batidas, meninas recolhidas» Tanto o sino como o chocalho nascem da arte do fogo. E tanto um como outro continuam a ter uma função comunicativa mas já não tão importante como por exemplo no século XIX em que «era o sino que punha em movimento todo o Universo». Os chocalhos empurravam os rebanhos mas hoje há cada vez menos pastores e menos rebanhos para guardar. José Rodrigues Simão assina um texto de memórias (55 anos depois no título) apesar de no texto se referir a 50 anos e não 55. Embora louve o esplendor da paisagem não existe nele um enquadramento geográfico que o permita localizar de imediato. O mesmo se passa com o texto de Mateus Dias Campeã sobre a memória de uma caçada e o uso do furão. Maria Eugénia Gomes assina as páginas sobre as viagens e os actos eleitorais da ALDRABA e é no seu texto que se percebe melhor o conteúdo da capa da Revista: «Os moinhos do Outeiro são únicos no Mundo em termos de funcionamento». O cartoon de Luís Afonso mantém o nível altíssimo de ironia que num jantar simpático em Serpa o levou a lamentar para mim a saída de Sousa Cintra do lugar de Presidente da Direcção do SCP: «Cada frase daquele homem era já meia anedota. Era só completar.» A Revista fecha com um poema, um belo poema de Izidro Alves que além de tudo o que quase exige o texto da página 8 («terra, poesia e emoção») tem muita oficina e é essa oficina que leva este poema a cumprir aquilo que me parece ser a razão de ser de toda a literatura: ligar de novo tudo o que a Morte separou.