sábado, 30 de abril de 2022

«ente» de António Ferra

O mais recente livro de António Ferra (n.1947) parte do lamento do poeta (ele mesmo) «querem-me mais número de senha que gente» mas mesmo quando lhe dizem que «os poemas são inúteis» ele recomeça porque «um gajo tem de se preparar para a vida eterna».

 O mal-estar do Mundo surge reflectido pelo sujeito do poema: «Ao sábado não trabalho, levanto-me ao meio dia, vale-me o café tardio ao lado dos filósofos de bairro de niilismo em sacos de plástico.» Como solução há uma proposta: «O melhor é ouvir contar uma história / como a daquele trovador de bairro ao terceiro copo / a falar da trela da tia extensível / a passear o cão à noite / de vocabulário a condizer com os sapatos.»

Entre o Amor e a Morte o poema adverte: «basta uma faúlha, um
cigarro mal apagado, uma faísca de raiva logo ardem gritos abafados pelas sílabas do fim»

(Impressão: Gráfica 99, Composição: Pedro Serpa, Desenho: do autor)

[Um livro por semana 685]


quinta-feira, 21 de abril de 2022

«Poemas vadios» de Álamo Oliveira


Autor multifacetado (poesia, romance, conto, teatro, ensaio) Álamo Oliveira (n.1945) surge em novo livro de 3 sequências (Dispersos, Restos, Senil idade) e 69 páginas, cujo ponto de partida é uma reflexão sobre a Poesia e o Mundo: «o que há mais no mundo/são cemitérios de versos/ todos os dias aparecem /versos e mais versos /todos mortos enterrados em livros /no entanto a poesia é contentamento indizível /afecto com carácter de urgência /grito disparado na direcção da liberdade /silêncio em voo de espanto /por isso os versos morrem sempre que alguém os afoga no papel»

A reflexão é do Poeta, ele mesmo: «tremo de medo se a ilha tremer /sinto que a alma sai dentro de mim /cismo que o sismo tem mais que fazer / ai quem me dera ser tempo sem fim. /casas caídas são dores na rua /paira a tristeza sobre o seu olhar /tombam as telhas no colo da lua /a ilha chora nas águas do mar. /esse tremor é pior do que a guerra /é um punhado de pedras de dor / mas uma esperança do ventre da terra /sai a cantar muitos versos de amor.»

Na sequência de nove poemas que começam todos do mesmo modo («perdi a poesia») o da página 34 resiste («perder não é morrer») e o da página 46 faz a ligação ao Amor: «ninguém sabe que os seus olhos /são duas ilhas azuis /a flutuar na liberdade /das palavras e dos amores»

Na sequência final um dos poemas interroga («depois da morte para que serve o medo?») e o último afirma: «O poeta vai continuar a cultivar a veleidade /de que tudo seria mais triste /se não andasse a rimar o pavor da morte /com o sossego infinito do além»

(Editora: Companhia das Ilhas, Direcção: Carlos Alberto Machado, Assistência editorial: Sara Santos, Capa e foto: Rui Melo, Grafismo: Rui Belo)

 [Um livro por semana 684]