sexta-feira, 20 de julho de 2018

Dissertação para a voz de Maria Flor Pedroso



Quase nada sei das origens da tua voz, seu timbre e sua altura, seu calor e sua extensão, seu peso e seu rigor. Chamo-lhe calorosa pois sinto nela o calor que sacode o dia, aquece o pão, ferve o leite e convida ao pequeno almoço com ovos e bacon. Quando ouço a tua voz sinto nela o rumor ritmado das ondas de todas as praias e as melodias de todas as orquestras. Melodia, harmonia, contraponto – o que quer que seja musical nas manhãs de Rádio. Porque toda a minha infância cabe numa telefonia Schaub Lorenz. O senhor Messias, o Compadre Alentejano, o Teatro das Comédias, o romance da hora do almoço, o telefone toca do Matos Maia. E também os discos pedidos dos doentinhos dos sanatórios – Serviço 6, Sala 2, Cama 4. Sem esquecer os anúncios: «Candeeiros bem bonitos / modernos, originais / compre-os na Rádio Vitória / não se preocupe mais.» A tua voz é clarim, bandeira, estandarte.  Primeiro avisa, depois convoca, de seguida vem guiar os ouvintes como numa antiga romaria entre o sol que brilha e o pó que não assenta. Havia a Rádio Graça, a Rádio Peninsular, o Clube Radiofónico de Portugal e a Rádio Voz de Lisboa. A Voz de Lisboa era essa mistura feliz do vagar dos eléctricos e da pressa na espuma dos rebocadores, o vagar do sinaleiro e a pressa das fragatas do outro lado do Tejo. Vivi no Montijo entre 1957 e 1961; por isso ser fragateiro era um dos meus destinos possíveis. Aos Domingos à tarde os eléctricos levavam bandeiras de estádios: Luz, Restelo, Tapadinha, Lumiar. À noite saía nos jornais o resumo da jornada com a classificação e os melhores marcadores. Os ardinas voavam nas Escadinhas do Duque. Era a voz de Lisboa. Quase nada sei das origens da tua voz. Sei que nela passa o coração do Mundo. As sombras e as luzes, as sementeiras e as colheitas, a terra e o mar. Tudo cabe na tua voz que não termina e que continua.        

(Crónicas do Tejo 117 – fotografia de autor desconhecido)


terça-feira, 3 de julho de 2018

«No lamaçal da Primavera» de Alice Ruivo



Neste seu quinto livro de ficção, Alice Ruivo (n.1955) retoma o universo sentimental dos seus primeiros romances: O amargo e doce sabor da vida, Matilde, Carlota e Juliana e No dorso do vento. Neste No lamaçal da Primavera o ponto de partida é o casal Aurora e Jaime que vê a sua longa relação sacudida por uma frase de Jaime («Vamos para o divórcio») originando em Aurora uma nova situação: «Não é fácil recomeçar aos cinquenta e cinco anos mas estava decidida a deixar para trás os cacos, as pálpebras vermelhas e os soluços inacabáveis.»
O livro organiza-se em histórias cruzadas de várias gerações, a autora evidencia o mérito de partir sempre do particular para o geral deixando o registo de um certo tempo português entre 1945 e 2015, algo como setenta anos. Foi em 1945 que os pais de Aurora (Severino e Amélia) casaram. Com o divórcio de Aurora e Jaime a transitar em julgado, surge uma aproximação a Mariana: «Mariana colocou a mão sobre a sua nuca, procurou a raiz naquela massa de cabelo. Beijaram-se. Sentiu o seu clitóris endurecer, sair do seu esconderijo para se oferecer à fricção.» Mais à frente acontece o desenlace («não criámos raízes, na verdade muita coisa nos separa») e a conclusão: «Célia era mãe de Severino (pai de Aurora) e de Olinda (mãe de Mariana). Tinham a mesma avó. A avó Célia. Eram primas. Ou meias-primas.» Mais tarde Aurora fará o balanço com Mariana: «Eu não deixei o Jaime, ele é que me deixou. Por isso tu não foste uma troca, da mesma forma eu também não fui para ti. Ou seja: não deixaste a Odete por mim e ainda bem. Por isso aqui ninguém usou ninguém. Acontece entre duas criaturas que são livres e donas da sua pessoa.»
Tal como no caso Aurora/Jaime, com o problema de Constança e Fernando passa-se o mesmo: o conflito passa do privado para o social e a história torna-se exemplar, ganhando assim o estatuto de história de proveito e exemplo. Um livro de 179 páginas que se lê com a sofreguidão de um «policial» não à procura do criminoso mas à descoberta do lugar específico do tecido social onde os dramas se escondem e se revelam.  
  
(Capa: Maria Soledade Centeno, Prefácio: José Luís Outono, Posfácio: Lynda Carvalho - Um livro por semana 590)