quarta-feira, 30 de outubro de 2019

«O que eu ouvi na barrica das maçãs – crónicas» de Mário de Carvalho



Mário de Carvalho (n.1944) estreou-se em 1981 com «Contos da Sétima Esfera» e neste seu livro de 254 páginas junta crónicas publicadas entre 1987 e 1996 no «Jornal de Letras» e no «Público». As crónicas são divididas em quatro secções (Divagando, Intervindo, Oficiando e Rememorando) correspondendo a várias facetas do autor: ficcionista, cidadão, comunicador e memorialista. O título é uma homenagem à Literatura e vem do livro «A ilha do tesouro» de Robert Louis Stevenson. Francisco Belard refere no Prefácio «Mário de Carvalho e eu somos da mesma geração, o que explica várias afinidades (…) as afinidades emergem em muitas destas crónicas ou noutras intervenções públicas que teve e tem, a par dos livros.» Uma das crónicas indica 35 espécies de escritores desde o solene, o ansioso e o paranóico até ao erudito, ao obscuro e ao possesso mas sem esquecer o cronista: «Perora sobre tudo, numa olímpica omnisciência. Está convencido que tem muita graça e de que influi profundamente nos destinos do país. Imagina os governantes a lê-lo e a dizerem às mulheres (ou aos maridos): «Tem graça! Olha que este rapaz tem carradas de razão, vou passar a fazer como ele diz». Às vezes é feroz , faz ameaças: «Ah, sim? Então eu desanco-o na minha crónica!» No entanto fica um pouco perplexo se os amigos exclamam jovialmente: «Lá li a tua coisa no Diário Popular; aquela dos rinocerontes, muito gira – quando ele tinha escrito umas considerações hábeis sobre os chalés suíços para o Diário de Notícias.» O autor disserta sobre a crónica em si na página 42: «O leitor conta com uma opinião de actualidade, fluente, cívica, arguta e isenta de complicações.» Sobre Fernando Pessoa surge uma tese: «Na verdade quem morreu em 30 de Novembro de 1935 no Hospital de São Luís dos Franceses não foi Fernando Pessoa mas um vagabundo galego, muito esquálido, contratado para o efeito, que se chamava Paco Ximenez Albarrace. Quanto ao verdadeiro Fernando Pessoa, tinha-se esgueirado de noite, à capucha, disfarçado de freira carmelita para só voltar a ser visto mais tarde, na guerra de Espanha.» O acto de escrever («Não me recordo de uma única indignidade removida por um par de versos») tem as suas ambições e os seus limites: «Na parte que me toca estou convencido de que o que leva alguém a escrever é esta possibilidade de mentir à vontade sem agravo dos bons costumes nem do ordenamento jurídico.» Uma ideia para Portugal está na página 64: «Entre o torrãozinho de açúcar e a choldra lá tem que se mover o cidadão sensato e com noção das proporções.» Ou na página 83: «Somos muito vulneráveis. Não temos reservas nem defesas. Não há nichos, não há abrigos, não há resistências, não há territórios como outros têm.»  Noutra crónica lembra Joaquim Velez, João Camilo e Diniz Miranda na  prisão para concluir «ao lado do portugalinho dos sacanas a ferver de mercenários, oportunistas, videirinhos e minúsculos troca-tintas, também existe gente da têmpera daqueles em que falei.» Mário de Carvalho adverte a sorrir: «Terrível palavra é um «ego». Lido na natural direitura, apenas lhe falece um «c» para não ser «cego» e faz uma previsão em 1993 que se confirma em 2019: «…pode criar-se o clima propício a que um belo dia, meia dúzia de tipos (talvez mesmo quatro) em qualquer cervejaria de qualquer cidade de província…»

(Editora: Porto Editora, Prefácio: Francisco Belard)

 [Um livro por semana 630]

sexta-feira, 25 de outubro de 2019

A luz e a sombra no olhar de Rui Jordão


Escrevo para juntar de novo o que a morte separou. De Rui Jordão tenho três histórias; duas que ouvi contar e outra que vivi. O jogador natural de Benguela aproveitou uma ida a Espanha para receber algum do dinheiro que lhe ficaram a dever no Saragoça mas as notas tiveram de ser distribuídas por todos os jogadores do Sporting Clube de Portugal na camioneta. Logo em Elvas começou o meticuloso trabalho de recolher o dinheiro entregue a cada um para poder passar na fronteira. Dizem que quando um amigo esteve em Cabo Verde, Rui Jordão foi visitá-lo: meteu-se num avião e viajou quem sabe a lembrar os quintalões de Benguela onde se podia jogar sem relógios em muda aos seis acaba aos doze. Há uma dupla inscrição. O inventário ao lado do esplendor da amizade. O grupo de amigos do futebol integrava Mário Jorge e Manuel Fernandes. Um dia no Estoril estava com Mário Jorge na esplanada quando Jordão passou por nós em corrida matinal. Nem mesmo o ter sido chamado pelo nome o demoveu. Olhou para mim e terá tido a intuição de que eu sou jornalista; seguiu em frente e nunca mais consegui palavras suas para um livro. Ainda bem que no tempo de Fernando Assis Pacheco havia disposição para entrevistas: o livro é «Retratos falados» da Editora ASA. Os homens querem os seus momentos de luz e os seus momentos de sombra. A mim calhou-me a sombra nessa manhã de esplanada no Estoril. Talvez não tenha sido o Jordão, ele-mesmo. Pode ter sido o seripipi de Benguela, ave de vasta paleta de cores: plumagem de canela, face negra, peito e garganta cinzentos, ventre dourado e rabadilha vermelha. Sendo natural de Benguela «leva no bico uma esperança» como dizem os versos de Ernesto Lara Filho e a música de Carlos Mendes.  Há no olhar de Rui Jordão o peso da sombra e a força da luz. Como num quadro, a vida insinua esta verdade: é a sombra que dá relevo à luz. É a morte que cria dimensões na vida. Há no olhar de Rui Jordão a fusão de três mundos: animal, vegetal e mineral. O mesmo é dizer: seripipi de Benguela, infinitos quintais das casas e pedras junto ao mar. O mar onde Rui Jordão corria todas as manhãs à procura das ondas onda cabe a beleza de todas as sereias e a massa sonora de todas as orquestras.      

(Fotografia de autor desconhecido)       

segunda-feira, 21 de outubro de 2019

«Hoje é tudo falso e outras crónicas» de António Souto



O mais recente livro de António Souto (n.1961) inclui 31 crónicas e o título é retirado da página 13: «Os currais ruíram e já não há eira nem quem chegue lume à caruma, nem adega, nem mesa grande, nem quem se sente nela. Hoje é tudo falso, tudo tão distante…» Como género literário a crónica, sendo um híbrido, concorre com o poema, o conto, a notícia, a reflexão, o apontamento. A citação inicial de Eça de Queirós em 1867 dá uma ideia do fascínio da crónica: «A crónica é como estes rapazes que não têm morada sua e que vivem no quarto dos seus amigos». Na página 15 o autor refere o seu gosto pela música: «Tive há muitos anos um gira-discos que comprei em segunda mão. Eu não era um especialista em música nem sequer tinha um género musical de eleição.» Na página 21 outro registo, o do sofrimento: «Partilham-se testemunhos e consolos. Descobrem-se as fragilidades e os limites da vida. Experimenta-se o sofrimento próprio e alheio. Aprende-se o sentido da palavra e do silêncio, da confiança e da esperança.» Há também um lugar para a memória e para o passado. Primeiro a memória: «A seguir ao relógio que o meu avô me ofereceu no dia do meu exame da quarta classe, o camião de ferro amarelo foi talvez a minha maior relíquia da infância» Depois o passado: «Os rebuçados de hoje já não sabem a nada nem têm crianças que os procurem ou que os saibam descascar como segredos.»
Apenas mais dois exemplos no registo desta cartografia pessoal do autor. Por um lado o Natal: «Começo a ficar cansado de ouvir e ver tanto natal quando chega a quadra natalícia, como se não houvesse mais nada para ver e ouvir». Ou o Mundo: «Até uma certa idade pensamos que o Mundo é todo nosso, que somos o centro dele, que tudo quanto nos rodeia parece estar a mais, refugo.»
Afinal o mesmo Mundo onde o Padre António Vieira falava dos peixes grandes que comem os pequenos em vez de serem os pequenos a comer os grandes tal como já Almeida Garrett referiu os 200 pobres que são precisos para fazer um rico.

(Editora: On y va, Capa: Rui Fiolhais sobre mural de Joe Iurato, Grafismo e paginação: João Paulo Fidalgo)

[Um livro por semana 629]

quarta-feira, 2 de outubro de 2019

«Retratos» de António Ferra



Neste mais recente trabalho literário de António Ferra (n.1947) há uma adaptação do texto que acompanhava a exposição «Retratos de Nós» que teve lugar em Lisboa no ano de 2014. Nos «retratos» deste livro o fotógrafo é o poeta; o poeta é o fotógrafo: «Um vulto no jardim / sobre o tripé de pano preto». O ponto de partida é uma interrogação: «Quem és tu para exigir um retrato, para merecer uma imagem? Quem és tua para ordenar a luz e a sombra? Não respondes, apenas incitas a interrogação nos atavios que ostentas – jóias, vidrilhos, fios que te levam a energia.»      
Ao longo destes 16 poemas há uma permanente indagação entre o efémero e o fixo, entre o esquecimento e a memória: «Dama do tempo antigo, de severidade nos lábios, imobilizas o tempo numa postura ao longo das tábuas. Que um milímetro a mais não te descomponha o véu a encobrir a nudez que seduz os monstros quando a noite cai sobre rios de plástico. É eterna essa fugacidade.»
O derradeiro poema do livro dá conta da permanência dessa já referida indagação: «Nem sequer sei se as emoções que exibes são uma manobra para eu questionar a tua boca ou se são pedacinhos de papel que utilizas para atrasar a passagem do tempo.»

(Capa, imagem do autor e artes finais: Pedro Serpa, Impressão: Gráfica 99)

[Um livro por semana 628]