segunda-feira, 24 de janeiro de 2022

«José Afonso ao vivo» de Adelino Gomes


Trata-se aqui de um belíssimo livro/disco de 84 páginas com dois CDs e um LP dos concertos de José Afonso em Coimbra (4-5-68) e Carreço (23-2-80). Adelino Gomes (n.1944) chamou-lhe «Uma fagulha colectiva» embora na página 3 se leia «Zeca Afonso inédito» e na capa se leia «José Afonso do vivo». O trabalho deste livro/disco confirma em pleno as palavras de Jacinto Baptista em 1978 no jornal «Diário Popular»: «O jornalista é o historiador do quotidiano». Na verdade Adelino Gomes estava no Cais da Rocha Conde de Óbidos em 9-9-67 e queria entrevistar José Afonso (1929-1987) para o programa PBX no RCP mas a primeira resposta é adversativa: «Porquê? Para quê? Deixei-me dessas coisas. Importantes, umas cantiguetas?» . Adelino Gomes não desiste e recorre a fotografias, recortes de jornais, cartazes, ofícios da GNR, ofícios da PIDE, cartas, bilhetes para espectáculos, convites, recados. Assim organiza uma reportagem, o mesmo é dizer, uma cartografia sentimental dum certo tempo português exacto e definido.

A primeira parte do livro vai de 9-9-67 (chegada da navio «Angola») a 28-12-68, data do espectáculo na Gruta das Lapas (Torres Novas) com intervenção directa do pároco Amílcar Fialho, natural de Santa Catarina. A segunda parte avança para 28-2-1980 com os pormenores do concerto realizado nesse dia às21h30m na Sociedade Instrução e Recreio de Carreço. O resto está no livro e nenhuma nota de leitura pode substituir. Fiquemos com as palavras finais de Adelino Gomes: «Falei com mais de uma centena e meia de pessoas. Pessoalmente, via telefone e inúmeras vezes por email. Apenas uma pequena parte verá o seu nome citado neste trabalho. Esse foi sempre, enquanto jornalista, um dos meus dramas.»      

Resumir um livro de 84 páginas em 23 linhas também pode ser visto como um drama mas como diz o lugar-comum de todos nós «não há-de ser nada» O importante é que o convite a ler o livro e a ouvir os CDs ou o LP seja aceite porque um caso destes só acontece uma vez na vida.

(Editora: Tradisom, Introdução, investigação e texto: Adelino Gomes, Nota do editor: José Moças. Posfácio: Ricardo Romano, Concerto de Coimbra: Jorge Rino, Concerto de Carreço: Manuel Mina, Design: Rodrigo Madeira, Revisão: Laura Alves, Apoios: Fundação INATEL, Municípios de Coimbra, Torre de Moncorvo, Santo Tirso, Setúbal, Viana do Castelo e Grândola)

[Um livro por semana 679]


quinta-feira, 13 de janeiro de 2022

«A mesa está posta» de Jorge Silva Melo


Depois de «Deixar a vida» (2002) e «Século passado» (2007) Jorge Silva Melo (n.1948) surge com este livro de 407 páginas que é de todo impossível sintetizar em 31 linhas. Crítico de cinema e de teatro, actor, argumentista, professor, tradutor, ensaísta, dramaturgo, realizador de cinema, JSM trabalhou como assistente de Peter Stein e Giorgio Strehler, sendo fundador do Teatro da Cornucópia e director do Grupo Artistas Unidos. Bastaria a «saga maldita» dos Artistas Unidos no «Espaço A Capital» para organizar um inventário de acções miseráveis, silêncios criminosos, alheamentos perversos, traições canalhas e mentiras tenebrosas: «Fomos para sítios que detestei como o Teatro Taborda onde nem sequer a chave tínhamos! Depois o Convento das Mónicas onde até nos cortaram a electricidade para nos obrigarem a sair…» A sua paixão pelo Teatro nasceu muito cedo: «Foi lá em cima, no Tivoli entrando pela porta das traseiras, que comecei a ver teatro. Foi por 1958-9, Era uma coisa cá comigo, como se fosse um segredo.» Das suas memórias se pode extrair uma ideia de Teatro: «Um segredo ente o palco e quem, deslumbrado, vê?» Ou sobre a Vida: «Mas não é isso a vida, histórias que vamos inventando nessa vida sempre mais pequena do que o nosso desejo?» Sobre Teatro o autor não pergunta mas declara: «O teatro que me interessa não tem nada, nada, nada mesmo nada a ver nem com a magia nem com as variedades.» E sobre o Cinema, mais adiante: «A minha formação é o cinema, estudei cinema, fiz cinco longas metragens e alguns documentários: em que é que escrever uma peça é diferente de escrever um argumento?» A propósito de «A Estalajadeira» de Carlo Goldoni surge uma ideia: «Sim gosto de ver uma senhora a passar a ferro, gosto do realismo, (…) ingénuo, analítico. E quando penso no teatro é raro não pensar logo em copos, pratos, louças, cadeiras, mesas. Sim, venho daí.» Enda Walsh está na página 159 («Andamos todos à volta do Christy») e Tchékhov na 279: «Querem heróis, heroínas, efeitos cénicos. Mas na vida as pessoas não andam aos tiros nem fazem declarações de amor a toda a hora nem a toda a hora se dizem coisas inteligentes.» Ao lado da vida fica a força da morte: «10 de Agosto, 2018. Sei do suicídio, no Porto, de um actor que não conheci, amigo de amigos. Rapaz ainda, 31 anos. Fiquei tão triste. Chamava-se António Alves Vieira. (Que querem?, sinto culpa por não o ter conhecido, gostava de ter estado com ele, de o ter visto, actor. Porque gostava de o ter honrado naquilo mesmo que fazia, o teatro que quis.) Penso nesse rapaz que não conheci.» Uma nota final para uma paixão antiga: «Volto sempre a Goldoni, nasceu ali um teatro, nasceu um mundo. Não terá sido Goldoni a inventar o sorriso, essa forma que ele tem de acariciar as fraquezas dos homens?» Um livro a não perder.

(Editora: Livros Cotovia, Organização: Leonor Buescu, Foto da capa: Jorge Gonçalves, Paginação: Joana Figueira, Apoios: Fundação Calouste Gulbenkian, Direcção Geral das Artes, Ministério da Cultura)

 [Um livro por semana 678]

 

quarta-feira, 5 de janeiro de 2022

«O pórtico da Glória» de Mário Cláudio

Depois de «A Quinta das Virtudes» e «Tocata para dois clarins», Mário Cláudio (n.1941) encerra neste livro o chamado «tríptico do sangue da tribo» - um conjunto de romances nos quais a ficção e a realidade se cruzam de modo feliz. Não se trata apenas da vida e da morte de um casal (Diego e Hermínia) nem da cartografia das indústrias organizadas por um natural de Béjar (Espanha) a viver no Porto (bisavô do narrador) mas também, em paralelo, o tempo da cidade tripeira entre os finais do século XIX e o início do século XX, o viver coletivo pois revela  o respirar da cidade, sua paisagem e seu povoamento. O título do volume surge com o sonho da página 70: «Saímos ambos da Igreja do Salvador de Matosinhos, tudo conforme ao que, na realidade, se dera e eis que de repente verifiquei que se abria diante de nós um certo pórtico, por onde eu nunca passei, a não ser em estampas e que é chamado da Glória e que confere acesso à Catedral de Santiago de Compostela.»

O ponto de partida para as 139 páginas é a biografia dos onze filhos que Diego e Hermínia trouxeram ao Mundo. A técnica de conjugar ficção e realidade surge expressa na página 17 («Mas é de clara vantagem para quem escreve, na atenção aos tais incidentes de negligência e dramatismo, com que o acto religioso se preencheu, acrescentar alguma coisa àquilo que quedou por inteiro inventado») e, mais à frente, na 21: «E eu faço com que desapareça agora o austero José e deixo Diogo sozinho, a vaguear por ali, tímido em excesso». Num outro passo se articula de novo esta dupla inscrição: «Chegou a altura de celebrar as núpcias da minha avó Joana II e não encontro caminho para a pena que a arrastará porque junto de nós é que se torna mais difusa a escrita, adulterada pela arbitrariedade das razões que a sustentam.» Um dos aspectos fascinantes deste cruzamento está numa fala da página 65: «…terá a criatura sangue cigano, pois que passa o tempo de terra em terra e nem sabemos donde provém e porque razões se radicou por cá e arrisca-se a mana a que lhe corte ele o pescoço com uma navalha ou a que faça um assado de porco doente que algum lavrador enterrou?». A sombra do grande escritor nascido em Lisboa surge na página 77: «Naquela pequena praça, vizinha dos cenários de mais de um crime hediondo, a que não era alheia a sombra do espectro de Camilo Castelo Branco, principiava assim um entrecho de sucessos e de fracassos, marcado por razoável dose de traições.»

Vencedor do Prémio PEN Clube Português de Narrativa e do Prémio Eça de Queiroz, surge agora em segunda edição. Um livro a não perder por duas grandes razões. Por um lado prova que a Literatura é sempre uma homenagem à Literatura. Por outro lado Mário Cláudio realiza entre memória e ficção um feliz artesanato nestas páginas, juntando de novo tudo o que a morte separou.          

(Editora: Publicações Dom Quixote, Edição: Maria do Rosário Pedreira, Revisão: Madalena Escourido, Capa: Rui Garrido, Retrato original: Fernando Lanhas)

[Um livro por semana 677]