Depois
de «A Quinta das Virtudes» e «Tocata para dois clarins», Mário Cláudio (n.1941)
encerra neste livro o chamado «tríptico do sangue da tribo» - um conjunto de
romances nos quais a ficção e a realidade se cruzam de modo feliz. Não se trata
apenas da vida e da morte de um casal (Diego e Hermínia) nem da cartografia das
indústrias organizadas por um natural de Béjar (Espanha) a viver no Porto (bisavô
do narrador) mas também, em paralelo, o tempo da cidade tripeira entre os
finais do século XIX e o início do século XX, o viver coletivo pois revela o respirar da cidade, sua paisagem e seu
povoamento. O título do volume surge com o sonho da página 70: «Saímos ambos da
Igreja do Salvador de Matosinhos, tudo conforme ao que, na realidade, se dera e
eis que de repente verifiquei que se abria diante de nós um certo pórtico, por
onde eu nunca passei, a não ser em estampas e que é chamado da Glória e que
confere acesso à Catedral de Santiago de Compostela.»
O
ponto de partida para as 139 páginas é a biografia dos onze filhos que Diego e
Hermínia trouxeram ao Mundo. A técnica de conjugar ficção e realidade surge
expressa na página 17 («Mas é de clara vantagem para quem escreve, na atenção
aos tais incidentes de negligência e dramatismo, com que o acto religioso se
preencheu, acrescentar alguma coisa àquilo que quedou por inteiro inventado»)
e, mais à frente, na 21: «E eu faço com que desapareça agora o austero José e
deixo Diogo sozinho, a vaguear por ali, tímido em excesso». Num outro passo se
articula de novo esta dupla inscrição: «Chegou a altura de celebrar as núpcias
da minha avó Joana II e não encontro caminho para a pena que a arrastará porque
junto de nós é que se torna mais difusa a escrita, adulterada pela
arbitrariedade das razões que a sustentam.» Um dos aspectos fascinantes deste
cruzamento está numa fala da página 65: «…terá a criatura sangue cigano, pois
que passa o tempo de terra em terra e nem sabemos donde provém e porque razões
se radicou por cá e arrisca-se a mana a que lhe corte ele o pescoço com uma
navalha ou a que faça um assado de porco doente que algum lavrador enterrou?».
A sombra do grande escritor nascido em Lisboa surge na página 77: «Naquela
pequena praça, vizinha dos cenários de mais de um crime hediondo, a que não era
alheia a sombra do espectro de Camilo Castelo Branco, principiava assim um
entrecho de sucessos e de fracassos, marcado por razoável dose de traições.»
Vencedor
do Prémio PEN Clube Português de Narrativa e do Prémio Eça de Queiroz, surge agora
em segunda edição. Um livro a não perder por duas grandes razões. Por um lado
prova que a Literatura é sempre uma homenagem à Literatura. Por outro lado
Mário Cláudio realiza entre memória e ficção um feliz artesanato nestas
páginas, juntando de novo tudo o que a morte separou.
(Editora:
Publicações Dom Quixote, Edição: Maria do Rosário Pedreira, Revisão: Madalena
Escourido, Capa: Rui Garrido, Retrato original: Fernando Lanhas)
[Um
livro por semana 677]
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