quarta-feira, 5 de janeiro de 2022

«O pórtico da Glória» de Mário Cláudio

Depois de «A Quinta das Virtudes» e «Tocata para dois clarins», Mário Cláudio (n.1941) encerra neste livro o chamado «tríptico do sangue da tribo» - um conjunto de romances nos quais a ficção e a realidade se cruzam de modo feliz. Não se trata apenas da vida e da morte de um casal (Diego e Hermínia) nem da cartografia das indústrias organizadas por um natural de Béjar (Espanha) a viver no Porto (bisavô do narrador) mas também, em paralelo, o tempo da cidade tripeira entre os finais do século XIX e o início do século XX, o viver coletivo pois revela  o respirar da cidade, sua paisagem e seu povoamento. O título do volume surge com o sonho da página 70: «Saímos ambos da Igreja do Salvador de Matosinhos, tudo conforme ao que, na realidade, se dera e eis que de repente verifiquei que se abria diante de nós um certo pórtico, por onde eu nunca passei, a não ser em estampas e que é chamado da Glória e que confere acesso à Catedral de Santiago de Compostela.»

O ponto de partida para as 139 páginas é a biografia dos onze filhos que Diego e Hermínia trouxeram ao Mundo. A técnica de conjugar ficção e realidade surge expressa na página 17 («Mas é de clara vantagem para quem escreve, na atenção aos tais incidentes de negligência e dramatismo, com que o acto religioso se preencheu, acrescentar alguma coisa àquilo que quedou por inteiro inventado») e, mais à frente, na 21: «E eu faço com que desapareça agora o austero José e deixo Diogo sozinho, a vaguear por ali, tímido em excesso». Num outro passo se articula de novo esta dupla inscrição: «Chegou a altura de celebrar as núpcias da minha avó Joana II e não encontro caminho para a pena que a arrastará porque junto de nós é que se torna mais difusa a escrita, adulterada pela arbitrariedade das razões que a sustentam.» Um dos aspectos fascinantes deste cruzamento está numa fala da página 65: «…terá a criatura sangue cigano, pois que passa o tempo de terra em terra e nem sabemos donde provém e porque razões se radicou por cá e arrisca-se a mana a que lhe corte ele o pescoço com uma navalha ou a que faça um assado de porco doente que algum lavrador enterrou?». A sombra do grande escritor nascido em Lisboa surge na página 77: «Naquela pequena praça, vizinha dos cenários de mais de um crime hediondo, a que não era alheia a sombra do espectro de Camilo Castelo Branco, principiava assim um entrecho de sucessos e de fracassos, marcado por razoável dose de traições.»

Vencedor do Prémio PEN Clube Português de Narrativa e do Prémio Eça de Queiroz, surge agora em segunda edição. Um livro a não perder por duas grandes razões. Por um lado prova que a Literatura é sempre uma homenagem à Literatura. Por outro lado Mário Cláudio realiza entre memória e ficção um feliz artesanato nestas páginas, juntando de novo tudo o que a morte separou.          

(Editora: Publicações Dom Quixote, Edição: Maria do Rosário Pedreira, Revisão: Madalena Escourido, Capa: Rui Garrido, Retrato original: Fernando Lanhas)

[Um livro por semana 677]


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