Ernesto Rodrigues (n.1956), poeta,
professor, ficcionista, crítico, contista, tradutor e ensaísta, é um fascinante
e poliédrico «Homem de Letras» que publica ficção desde 1980 - «Várias bulhas e
algumas vítimas». Este romance de 153 páginas termina com duas frases («Esta é
a minha pátria. E o fim desta vida de romance.»)e organiza-se em três divisões: «Budapeste» (da página 7 à 61), «Índico» (da página
63 à 104) e «Turvação» (da página 105 à 153).
O ponto de partida é uma frase da página 8
(«Eu só queria atravessar o passado») mas a viagem não é apenas uma revisitação
a uma cidade na qual o autor do livro foi professor de Português entre 1981 e
1986. A viagem engloba dois países, duas cidades e dois continentes: Hungria e
Moçambique, Budapeste e Maputo, Europa e África. A dupla inscrição
(vida/literatura) está na página 26: «A vida é muito estranha. Suspendamos a
emoção e sempre agarrado à filha, face contra face, em respiração que vai
secando rios de lágrimas, vejo como, da literatura à vida, há uma diferença
abissal.»
O lado da vida está por exemplo na
dedicatória da página 5 (Rózsa Zoltán e Pál Ferenc) o primeiro dos quais
conheci em amena cavaqueira com Jacinto Baptista e António Torrado. A
intercepção é dada por exemplo na página 7: «Eu vinha de uma longa busca e de
Trieste, Italo Svevo no olhar.» Na página 11 surge uma advertência: «Voltar aos
lugares onde fomos felizes torna-nos lentos.» Mas já nas páginas 7 e 8 surgia a
oposição entre duas ideias. Por um lado «A mentira salva a Humanidade», por
outro lado «A mentira perde-nos».
Este livro mostra como a Literatura pode
ser a mistura feliz de sangue pisado e exercício, vida e estilo. Na visita ao
passado o autor depara com um Professor em fim de carreira e define-o como
membro de «uma geração fora de moda» para concluir: «Ninguém antecipa o alcance
dos seus actos. Somos seres do imediato, bebendo tudo da fonte do instante que
nem sabemos se voltará a encher.»
A viagem não é apenas revisitação mas, ao
mesmo tempo, uma certa moral de História: «Nessa época, éramos contemporâneos
da História. Protagonistas eram poucos. (Sê-lo-á esta lágrima de tinta?)» Depois
de ler na página 125 que «A beleza do mundo está bem repartida» talvez seja
esta a chave perfeita para o romance - «lágrima de tinta» . Porque o sangue
pisado da vida se mistura com o exercício do estilo em doses perfeitas.
(Editora:
Gradiva, Capa: Armando Lopes, Editor: Guilherme Valente)
[Um livro por semana 619]