quarta-feira, 29 de maio de 2019

«Um passado imprevisível» de Ernesto Rodrigues



Ernesto Rodrigues (n.1956), poeta, professor, ficcionista, crítico, contista, tradutor e ensaísta, é um fascinante e poliédrico «Homem de Letras» que publica ficção desde 1980 - «Várias bulhas e algumas vítimas». Este romance de 153 páginas termina com duas frases («Esta é a minha pátria. E o fim desta vida de romance.»)e organiza-se em três divisões:  «Budapeste» (da página 7 à 61), «Índico» (da página 63 à 104) e «Turvação» (da página 105 à 153).
O ponto de partida é uma frase da página 8 («Eu só queria atravessar o passado») mas a viagem não é apenas uma revisitação a uma cidade na qual o autor do livro foi professor de Português entre 1981 e 1986. A viagem engloba dois países, duas cidades e dois continentes: Hungria e Moçambique, Budapeste e Maputo, Europa e África. A dupla inscrição (vida/literatura) está na página 26: «A vida é muito estranha. Suspendamos a emoção e sempre agarrado à filha, face contra face, em respiração que vai secando rios de lágrimas, vejo como, da literatura à vida, há uma diferença abissal.»
O lado da vida está por exemplo na dedicatória da página 5 (Rózsa Zoltán e Pál Ferenc) o primeiro dos quais conheci em amena cavaqueira com Jacinto Baptista e António Torrado. A intercepção é dada por exemplo na página 7: «Eu vinha de uma longa busca e de Trieste, Italo Svevo no olhar.» Na página 11 surge uma advertência: «Voltar aos lugares onde fomos felizes torna-nos lentos.» Mas já nas páginas 7 e 8 surgia a oposição entre duas ideias. Por um lado «A mentira salva a Humanidade», por outro lado «A mentira perde-nos».
Este livro mostra como a Literatura pode ser a mistura feliz de sangue pisado e exercício, vida e estilo. Na visita ao passado o autor depara com um Professor em fim de carreira e define-o como membro de «uma geração fora de moda» para concluir: «Ninguém antecipa o alcance dos seus actos. Somos seres do imediato, bebendo tudo da fonte do instante que nem sabemos se voltará a encher.»      
A viagem não é apenas revisitação mas, ao mesmo tempo, uma certa moral de História: «Nessa época, éramos contemporâneos da História. Protagonistas eram poucos. (Sê-lo-á esta lágrima de tinta?)» Depois de ler na página 125 que «A beleza do mundo está bem repartida» talvez seja esta a chave perfeita para o romance - «lágrima de tinta» . Porque o sangue pisado da vida se mistura com o exercício do estilo em doses perfeitas.

(Editora: Gradiva, Capa: Armando Lopes, Editor: Guilherme Valente)

[Um livro por semana 619]

sábado, 18 de maio de 2019

«Fogo no mar» de João Falcato com uma capa de Victor Palla



Partindo de «O todo ou o seu nada» de Amadeu Lopes Sabino (Editora Bizâncio) cheguei a este livro é de 1953; conta a história da viagem do cargueiro «Mello» que uma explosão inexplicável consumiu em fogo nas águas sombrias do mar. O livro (Coimbra Editora) é dedicado à memória dos companheiros do autor que encontraram a morte no incêndio do cargueiro português a meio de uma viagem entre Buenos Aires e Lisboa: Álvaro Firmo da Silva, Alberto dos Santos Faria, Álvaro de Almeida Costa, Henrique Torcato Craveiro, Luís Alexandre Júnior, João da Silva Moreira, José Pereira, Herculano José, Joaquim Marques Machado, António Varela, José Simões, António Pais, Joaquim da Silva Pracana, José de Sousa Frade e José Fernandes d´Assunção. Há uma cantiga na página 28: «As ondas do mar são brancas / E no meio amarelas / Pobrezinho de quem nasce / Para morrer no meio delas» mas as primeiras linhas do romance são uma bela crónica de despedida: «Um primeiro puxão fez estremecer o «Mello», negro, sujo de carvão. Em movimentos descompassados, os rebocadores arrastam o corpo inerte e bojudo do navio, da beira do cais. Içada a escada do portaló, desligados os cabos que eram nervos que o faziam ser terra, prático na ponte, mansamente, em estremecimento de quem deseja maior pressa, o seu corpo é levado para o meio da doca. A ponte de Alcântara que fecha a saída, começa a girar numa permissão de passagem solicitada pelo som cavo do apito. Barcos pequenos saúdam com um zumbido quase imperceptível e seguem apressados o seu caminho na água suja da doca. AS chaminés dos rebocadores vomitam fumo negro, espesso, quase sólido. Sentado numa pedra do cais, um pescador solitário tira o chapéu encardido, num mudo desejo de boa viagem.» (fim de citação)           

[Crónicas do Tejo 163]

quarta-feira, 8 de maio de 2019

«O leitor irresponsável» de Vergílio Alberto Vieira



Vergílio Alberto Vieira (n.1950) tem vindo a juntar em livro desde 1993 os seus trabalhos de ensaio e crítica literária publicados com regularidade no Jornal de Notícias (1987-1998) e no Expresso (1999-2000) além de outros jornais e revistas mas adverte que tal tarefa é «dar nome a esse crime sem castigo, que leva alguém a reunir, em livro, o que sobre livros escreveu ao longo de anos, não é questão de profissão de fé, mas ofício de aprendiz sem mestre».
Se eu tivesse de sintetizar este livro de Vergílio Alberto Vieira (204 páginas) poderia dar-lhe o nome de «Almanaque Literário» tal como Carlos de Oliveira fez em «O aprendiz de feiticeiro», um livro de 282 páginas no qual o autor de «MIcropaisagem» revisita livros de autores tão diversos como Marguerite Yourcenar, Afonso Duarte, Abel Botelho, Fernando Pessoa, Raul Brandão, Erskine Caldwell, Alves Redol, José Gomes Ferreira, James Joyce ou Tchekov.
Neste livro de Vergílio Alberto Vieira são comentados, entre outros, livros de Louis-Ferdinand Celine, William Blake, Pablo Neruda, Ernest Hemingway, Graham Green, Jorge Luís Borges, Italo Calvino, Paul Celan, António Rebordão Navarro, Fernando J.B. Martinho, Pires Laranjeira, José Emílio-Nelson, Luís de Miranda Rocha, Rosa Alice Branco, Amadeu Baptista, Isabel de Sá, Orlando da Costa, Fernando Assis Pacheco, João de Melo e Luiz Pacheco.
Tal como Carlos de Oliveira faz um retrato de Alves Redol («Vejo-o meio sorridente, a boina basca puxada sobre a testa, a conversa pausada (afabilidade, camaradagem, aflorando palavra a palavra), o trato sereno, quase tímido, dum camponês civilizado que conheceu muito mundo e muito meandro sem desgastar toda a pureza inicial.»), Vergílio Alberto Vieira retrata Al Berto: «Nascido em Coimbra pelo ano de 1948, Al Berto , pseudónimo literário de Alberto Raposo Pidwell Tavares fez obra ao arrepio da sensatez, criou os seus infernos, recusou a quietude, foi homem  de paixão e, se nele havia um «louco» como Emile Cioran admite que há em nós, expulsou-o, cumprindo-se como destino.» Porque os livros não nascem sozinhos, são escritos por um autor.

(Editora: Quarto Crescente, Capa: Imhoteb, Bronze, Revisão do texto: Jorge Fernandes, Composição: César Antunes)

[Um livro por semana 618]