quarta-feira, 30 de junho de 2021

«Os Tripeiros» de António Coelho Lousada

António Coelho Lousada (1828-1859) não foi «um jornalista de banca» nas colaborou em diversos jornais e revistas do Porto como A Lira da Mocidade, A Grinalda, Miscelânea Poética, O Bardo, Braz Tisana, Clamor Público, A Esmeralda, O Nacional, O Comércio do Porto ou A Península. A sua vida foi marcada pela paixão por Maria Emília Braga, irmã dos escritores Alexandre e Guilherme Braga, falecida em 1850. Arnaldo Gama considerou-o «Um homem de talento», Pedro da Silveira lembra-o como «Um moço triste, preso à lembrança de noiva» e Camilo Castelo Branco viu nele «uma inteligência que será aqui a primeira.» A narrativa arranca no ano de 1384 quando, perante o cerco castelhano a Lisboa, o Mestre de Avis envia Rui Pereira (tio do Condestável) ao Porto a pedir auxílio aos burgueses da cidade. Não é fácil tal tarefa pois vozes se levantam contra («Se os de Lisboa carecem de nós, nós não carecemos deles»)  até que um discurso serena os ânimos: «Meteram-vos na cabeça que vos queriam matar à fome porque se embarca a carne na esquadra mas não se lembrou ninguém que todos os miúdos cá ficam!» Segundo Camilo Castelo Branco em Os Tripeiros «sublimemente se explica o epíteto que alguns palermas cuidam soar indecorosamente para os netos da valente raça de portuenses».

Tal como refere o título do sexto capítulo este «romace-crónica» cruza no seu articulado «causa pública e coisas particulares» em 165 páginas. De um lado o Porto: «O Porto tinha de tudo: súbditos da coroa e súbditos da mitra e moradores que nem reconheciam uma nem outra; havia cristãos, mouros e judeus. A aljama era a mais pobre; a esnoga era a mais rica; a cruz era a mais forte.» No pano de fundo geral nascemos conflitos particulares, os amores de Fernando/Irene ou João/Garifa e surge uma reflexão sobre o Amor («As mulheres lucram menos com o que recebem do homem em geral: não as compensamos.» ) ou dito de outra maneira («A pobre não sabia que o amor não se traduz bem em palavras») ou ainda («maior feitiçaria que a do amor não pode haver») e conclui, dirigindo-se aos leitores: «os que são casados, o são por amor e os solteiros e as solteiras ainda não deram um sorriso, um olhar a dote algum de boa soma, simplesmente pelo dote e nada mais». Voltando ao lado social da narrativa, lê-se na página 126: «A poesia nessa época era tida em grande conta e as atenções da assembleia voltaram-se para o bardo.» E na 148 se lê: «as mouras por aqueles tempos roubavam às cristãs bastantes corações, tanto de nobres como de peões, o que as obrigava a crer em poderes ocultos para não se confessarem derrotadas nos encantos.»

(Editora: Associação de Jornalistas e Homens de Letras do Porto, Prefácio, notas e revisão: José Viale Moutinho, Foto: João Paulo Coutinho)

 [Um livro por semana 670]


terça-feira, 15 de junho de 2021

«O intervalo entre o raio e o trovão» de Eduardo Jorge Duarte


Depois de «Montanário» (2017), de ver contos publicados no «Le Monde Diplomatique», no «Jornal de Monchique» e em «Uma coruja nas ruínas» (2018), Eduardo Jorge Duarte (n.1982) estreia-se na Poesia com este «O intervalo entre o raio e o trovão», título do primeiro poema do livro de 84 páginas: «Parecemos perdidos no mundo. /No intervalo entre o raio e o trovão. / Perplexos na tempestade, /Contamos cada segundo /Que vai da luz da solidão/Ao ruído da nossa humanidade. / E só após o estremeção /Lembramos que a vida/ É uma corrente de ar comprimida / Entre o estrondo e o clarão.» No poema da página 21 surge um outro olhar sobre a vida: «Trezentos e sessenta e cinco dias de velhice/ Inteiros, vividos em casas decimais. / O destino bateu-lhes à porta e disse /Que a dor, o amor e tudo o mais/ Que neles se cumprisse /Eram milagres fatais /Da meninice /A morrer de causas naturais.»

Um dos aspectos fascinantes neste livro de estreia é a lucidez como quando o Poeta fala consigo mesmo («Também morrerás, poeta, /Fica descansado») ou fala da pressa como inimiga da Poesia ( «Era qualquer coisa que nos acontecia /E para a qual não tínhamos uma definição /Nenhuma palavras lhe servia.») ou ainda sobre o acto de ler: «Não tenho pressa /O caminho é em frente /Uma casa não se começa /Pela telha mais recente /Como um verso delicado / É um modo alvoroçado /De dizer um sentimento urgente. /O meu trabalho é paciente /Percorro livros, tapo cada buraco /Deixado aberto pelo escritor. /A palavra é o meu fato-macaco: /Sou leitor.»

Numa simples nota fica o poema da página 28, um programa completo: «Deixa tocar o poema/Dá-lhe o tom e a voz que entenderes. /Se for coisa de saudades ou problema /De amigos ou de mulheres /Ouve-o, deixa-o falar sossegado /Até que o sentimento mais limpo se revele /E saibas então entrar na pele /Daquele que não vês do outro lado.»

Pata terminar o poema da página 57 que conclui: «Entre versos fúteis e opacos /Até um cego pode ver a voz de Deus.»

(Editora: On y va, Foto do autor: Luís Costa, Capa: Cristina Viana, Grafismo e paginação: João Paulo Fidalgo)

 [Um livro por semana 669]