terça-feira, 29 de setembro de 2020

«Assim nasceu uma língua» de Fernando Venâncio

Fernando Venâncio (n.1944) organiza este livro de 311 páginas em quatro partes: «Antes do Português», «Portugal constrói uma língua», «O Galego e o Português» e «Sós e acompanhados». Sendo impossível resumir um livro desta dimensão em poucas linhas faço nesta ficha um convite à sua leitura que nada pode substituir. Trata-se de um livro sobre palavras e, tal como Ruy Belo escreveu em «País Possível» de 1973, «Sempre entre mim e ao que chama coisas há-de haver palavras». O ponto de partida é um texto da página 14: «As línguas são feitas de palavras e a maioria delas acham-se recolhidas em dicionários. São factos, esses, que nenhuma dúvida parecem admitir. Acontece que a palavra, a noção aqui em causa, suscita vários problemas. E o primeiro deles é a sua própria existência. As palavras existem? Existem, sim, mas é com uma existência precária, artificial, baseada num exercício de abstracção. A larga maioria dos habitantes do planeta teria dificuldade em responder à solicitação: «Diga uma palavra». Com efeito, aquilo que produzimos, ao falarmos, não são palavras mas cadeias de sons entendíveis por outrem. Cadeias que podem ser muito breves: «Aí!» ou «Pára!» Daí uma descoroçoante mas muito prática definição de palavra: «um conjunto de letras entre dois espaços em branco». Exacto: a palavra pertence por natureza ao terreno da escrita e só nele tem verdadeiramente sentido.»

Como não podia deixar de ser o chamado «Acordo Ortográfico de 1990» aparece logo na ficha técnica e numa nota na página 200: «não existem e nunca existirão, traduções luso-brasileiras, seja de Proust, de Dan Brown ou de instruções de máquina de lavar. Em matéria de tradução e de edição, o Brasil e Portugal têm cada um, a sua política e a sua indústria , inteiramente independentes . O célebre Acordo Ortográfico de 1990 foi, no mundo real, um devaneio inútil e dispendioso.» Já num artigo no jornal «Público» disponível na Internet Fernando Venâncio chamou ao «AO90» a fórmula do desastre.      

(Editora: Guerra e Paz, Revisão: Ana de Castro Salgado, Capa e paginação: Ilídio J.B. Vasco, Mapas e fotografia: Carlos Filipe Nogueira, Maria Alice Fernandes e Fernando Venâncio)

[Um livro por semana 652]

segunda-feira, 21 de setembro de 2020

Viagem à volta dos prefácios – Santo Fernando


Dezassete anos (1) depois da sua morte caiu sobre a obra de Santos Fernando (1927-1975) um silêncio tenebroso. É tão difícil encontrar nas livrarias os treze livros que publicou como encontrar nas revistas e jornais literários um texto de estudo e divulgação da sua obra. Esta pequena viagem à volta dos prefácios dos seus livros surge como um alerta a quem ainda não o descobriu e uma chamada de atenção a quem já conhece. Todos sabemos o significado da palavra «prefácio» (discurso preliminar, inserto no princípio de um livro) mas Santos Fernando utilizou o prefácio como instrumento privilegiado de comunicação com o leitor: neles se pode descobrir o perfil biográfico ao lado da nota sobre a sociologia da literatura, relações com a crítica, problemas da fortuna editorial e da precária posteridade. Sem esquecer um olhar sobre os disparates do Mundo. Sobre a biografia lê-se em Os Cotovelos de Vénus: «Dizem que nasci em Lisboa, na Travessa do Moinho de Vento à Lapa, no dia 22 de Janeiro de 1927, num quarto exíguo onde mal couberam as três balas disparadas da Cova da Moura, onde se cozinhava uma revolução» E em Areia nos Olhos: «A nossa rua é algo que, mais tarde ou mais cedo, começa a significar alguma coisa para nós. A sua calma secular, aureolada por uma tradição de suspiros de amantes, escondidos em arcas encouradas, vejo-a agora fugir em montões de terra e pedra, que estrondosas viaturas transportam num frenesim apocalíptico.» Sobre o ofício de escritor lê-se em Os Cotovelos de Vénus: «O escritor, parte integrante da vida da sua época, observador firme no meio social, bastas vezes insociável, não pode desempenhar o papel frio e frívolo que volta as costas à cena. A sua missão lógica é estudar a geração a que pertence, de molde a auxiliá-la, gritando-lhe os podres, caricaturando-a, amando-a, em suma.» Mais tarde, em As Uvas Estão Maduras: «A literatura é uma arte famélica numa época de simbioses, mitos e contrastes – opinião para a qual se pode fornecer o seguinte exemplo: naquele prédio há um agregado familiar que morre vítima da fome e uma família que rebenta de indigestão.» Finalmente em Sexo 20: «Não se escrevem já livros extensos. Livros longos e mulheres enormes, assustam e o homem deixou de ter tempo para leituras excessivas.» Sobre o problema da posteridade descobrimos em Areia nos olhos: «Convencionou-se deixar passar o préstito dos artistas para, após terceira badalada, se invocarem então as glórias do defunto, depois da crítica severa dos íntegros infalíveis os ter apunhalado em vida. E eu pergunto: será fundamental, imprescindível chegar ao estado de fertilizante, de repolho, de fóssil, para finalmente se nascer?». Ou em As Uvas Estão Maduras: «Explorado como uma mina de antracite resta ao escritor a imortalidade que, se um dia chega, é já muito depois da transladação dos ossos, dos poucos, ainda assim, que resistiram aos prodigiosos roedores.» Sobre a importância dos prefácios lemos em A Bolsa do Canguru: «Perguntar se alguém costuma escrever os prefácios dos seus livros ou dá-los a outros para que os façam não será o mesmo que inquirir duma pessoa se manda fazer os filhos ao estrangeiro?» Já em As Uvas estão Maduras escrevia: «Eu gosto dos prefácios rosados, redondos, rijos como os seios que despontam às jovens colegiais, quase sem darem por isso, entre as aulas de ginástica e de físico-química. O prefácio é o meu living room. Onde eu aguardo os amigos. Os que gostam de dois dedos de conversa.» Em Os Cotovelos de Vénus reafirmava: «Escrevo estas linhas porque estimo os prefácios que são para a literatura o que um beijo é para as grandes paixões. Mas um prefácio nunca transmitirá bacilos.» Em Seis Gramas de Paraíso advertia: «O Mundo é, às vezes, pequeno para os Homens que cresceram demasiado e – sobretudo – para os que incharam soprados pelo fole hiperóxido da toleima. Talvez que num Mundo hipotético mas bem intencionado, as falsas convicções de vaidade se vistam com o rigor da modéstia; os problemas da matemática diária se resolvam no quadro negro da branca equidade…» E em Areia nos Olhos denunciava o esplendor gritante da nossa época: «Noites de núpcias de alta roda, ventiladas pela revista mundana, até ao pormenor rendilhado da íntima cueca; espirros de magnate com repercussões de abalo telúrico; frases desmioladas de um médio-centro lançadas à venta do indígena como relevantes descobrimentos científicos…» Mas se é preciso defrontar o Mundo com Humor – o que é o Humor? Talvez aquilo que diz o prefácio de A Bolsa do Canguru: «Eça de Queirós afirmava que uma só gargalhada chegaria para abalar uma instituição mas isto só é adaptável à nossa época se a instituição estiver a cair de podre.» Ou mais adiante no mesmo prefácio: «O humorismo, muitas vezes, não é uma gargalhada mas um silêncio que se faz à sua volta. Beaudelaire era da opinião de que o riso é provocado por uma quebra de equilíbrio.» Como nota final estas duas frases amargas dum autor que teve um livro publicado no Círculo de Leitores em 1971 (Consolação número três) no qual afirmou: «Com quem eu me entendo ainda melhor é comigo mesmo. Quando não estou irreflectidamente ao pé de mim.» No prefácio de Sexo 20 advertia: «A cozinha é o cérebro dos povos; o coração a alcova. AS bibliotecas foram condenadas.» Anos antes em Os Cotovelos de Vénus tinha sido profético: «Morrem breve os que, escrevendo para viver, acabam por escrever do mal que vivem.»

OS LIVROS DE SANTOS FERNANDO

A, Ante, Após, Até (1957), Seis gramas de Paraíso (1959), A Bolsa do Canguru (1961), Areia nos Olhos (1963), Os cotovelos de Vénus (1963), Tempo de roubar (1964), As Uvas estão Maduras (1965), Consolação número três (1968), Os grilos não cantam ao Domingo (1969), A sopa dos ricos (1970, Absurdíssimo (1972), A árvores dos sexos (1974) e Sexo 20 (1975)

Nota: O texto é de 1993 (Revista Ler nº 22) e entretanto foi publicado (Editora Sulfúria) o livro «Sexo 20»

quinta-feira, 10 de setembro de 2020

«periferias da luz» de António Ferra



António Ferra retoma neste seu «periferias da luz» os recentes «Já próximo dos Anjos» e «Bluff» num caminho de narrativa em prosa poética. Há na página 63, no capítulo «Luzes periféricas», um verso de Luís de Camões citado em itálico («que para mim bastava amor somente») que pode ser lido como a «chave» deste conjunto de doze sequências poéticas. Esta forma lembra muito Vitorino Nemésio quando lamentava a sorrir «Já não se faz poesia descritiva e é pena». De facto esta poesia de António Ferra «descreve» um mal social não só na paisagem como no povoamento. Temos, por exemplo, o «cheiro a urina», temos um «contentor sem tampa» e um «cartaz de junta de freguesia com instruções de sobrevivência». Mas temos também o lado humano quando um vagabundo a quem deram bons conselhos adverte e reage: «Puta que pariu o Arménio, sabujo de merda, / chulo de gel e sapato bicudo, sabe lá o que é a vida.» Conclusão provisória: temos uma vida breve e uma morte inevitável, só o Amor nos pode resgatar o peso do absurdo.  
O ponto de partida do livro é uma viagem: «deixo-me conduzir pelo carro entre ruas repetidas, / portas fechadas no silêncio da uma da manhã, / as cadeiras de um café, empilhadas, presas por uma / corrente igual à que me prende neste bairro / fora de horas.»
Mas este bairro é um lugar de abandono: «Deixaram-me aqui ou fui eu que os deixei? / Para onde foram, para o estrangeiro, emigraram, cortaram-lhes os telefones, as orelhas, os tomates, numa rixa de café? (…) Para onde foram todos?» Ao mesmo tempo também é um espaço de pensar «o sentido da vida e as recordações da infância» e para concluir «O gato parece dizer-me que ainda sou o poeta das noites suburbanas até à manhã seguinte.»
Tudo afinal se pode resumir a uma palavra – crueldade: «A crueldade começa e não se sabe onde vai parar, /uma pessoa pode ser ainda mais cruel do que é, / arreia-se num chavalo sem saber porquê / e depois dá-se-lhe mais porrada e ele continua a sangrar, / o pessoal não sabe onde parar /isso é que é crueldade.»

(Editora: Eufeme /Capa: Sérgio Ninguém, Revisão: Jorge M. Telhas)

 [Um livro por semana 651]

quarta-feira, 2 de setembro de 2020

«Mata – Retratos à la Minuta» de Manuel Barata



Manuel Barata (n.1952) junta neste livro de 100 páginas 46 retratos de pessoas naturais da freguesia da Mata ou a ela ligadas. Na página 7 do livro explico num texto de 6-12-2018, de modo resumido, o que sinto pelo livro: «Habituado por quarenta anos de jornalismo dito cultural a resumir, sintetizar e simplificar, vejo neste livro uma autobiografia na terceira pessoa do plural. Parece contraditório mas não é. Porque, contando as histórias dos outros, o autor conta-se a si próprio, integra-se e passa a fazer parte de um todo. O mesmo é dizer uma aldeia só com uma estrada para ir e para vir, os seus conflitos, palavras, sacrifícios, alegrias, ócios e negócios, vida e morte. Em ponto grande. Que é o ponto da paixão. Manuel Barata junta no seu trabalho a herança de dois mestres da nossa Literatura: Camilo e Eça. Do primeiro aquela certeza de que a poesia não tem presente – ou é sonho de futuro ou saudade do passado. Do segundo outra ideia, a de que as ocupações humanas tendem a explorara o Homem mas contar histórias é outra coisa - entretém o Homem o que, quase sempre, equivale a consolá-lo». Dito de outra maneira: uma viagem pelo Mundo da Mata (Castelo Branco) na segunda metade do século XX, uma viagem também ao lado de dentro da alma, uma aldeia em radiografia sentimental.

(Edição: RVJ Editores Lda, Design: André Antunes, Foto: Irene Felizardo)

[Um livro por semana 650]