terça-feira, 31 de outubro de 2023

«O quarto segredo de Fátima» de Mário Rui Silvestre


Mário Rui Silvestre é autor multifacetado: contos («Do rio à margem»), romances («Para a morte não ter razão»), poemas («Ribaterra»), historiografia («As gloriosas máquinas do pão») e ensaio («Em torno de Camões») por exemplo. Neste seu recente livro de 472 páginas, o autor organiza, em 16 capítulos, uma narrativa que cruza vários  registos. Um deles é o policial («Onde é que trazes a bomba!?») a propósito do assalto ao automóvel do narrador que transportava um manuscrito. O outro é o histórico («nesta húmida manhã de 13 de Março do ano de Cristo de 1147»). O ponto de partida é uma ideia («Hoje Fátima seria impossível») e uma certeza: «Fátima é uma narrativa compósita, construída, a maior parte, depois de 1930». Esta data está ligada à morte do Patriarca Mendes Belo em 1929, ele que «nunca validou com a sua presença tamanho logro». O jornal «O Mensageiro» perguntava «Como conciliar a afirmativa de que a guerra acabava no dia treze de Outubro se ainda hoje continua?» O pároco de Fátima, por sua vez, «nunca foi à Cova da Iria no dia das aparições» A este aspecto pessoal juntamos o lado social: «O erro da República foi querer acabar, numa geração, com a religiosidade popular irracional e fanática». Pode ler-se na página 221 «O verdadeiro milagre de Fátima está nisto: ter sido o elo aglutinador das forças reaccionárias, religiosas e civis que acabaram com a República e prolongaram as trevas.» Portugal não mudou muito: «paranóia e regabofe de reis, abusos do clero e parasitismo de fidalgos». Uma conclusão provisória: «Se não existisse morte não havia religiões». Um convite à leitura: «O melhor dos tesouros perdidos é buscá-los». Também por isso este é, sem dúvida, um livro a não perder.

(Editora 5livros.pt)

[Livros e Autores 15]

 

domingo, 15 de outubro de 2023

«Colheita serôdia – inéditos e dispersos» de Levi Condinho

Levi Condinho (n. 1941 – Bárrio, Alcobaça) mantém neste seu livro de 63 páginas a linha do  anterior «Roteiro cego» - entre a Natureza e a Cultura. O título desta recolha já remete para a actividade agrícola, a colheita serôdia é uma recolha tardia, com os frutos já maduros. Por outro lado os poemas estão povoados com referências a nomes das Artes e das Letras: Lawrence, Borges, Ruy Belo, Álvaro de Campos, José Gomes Ferreira, Herberto Helder, Peter Handke, Holderlin, Jorge Peixinho, Shoenberg, Bach, Boulez, Messien, Cesário Verde, Pavese, Mozart, Pousão, Matisse, Chagall, José Auréli ou Kurosawa.

O autor mantém a sua ligação a uma (a sua) arte poética antiga embora neste volume tenha a data de 5-6-90: «Perscrutar os veios da matéria /seus nexos sons perfumes /ínfimas substâncias copuladas pela língua /inventar o Verbo que invente a negação /da profaneidade da palavra /que autómatos nos move sobre escarpas/ autonomizar a «casa do Ser» /nos seus casulos de silêncio/ fazendo-os explodir no seio de Deus /para que Outro se recrie/ ser uno entre corpo e fluxo /usar o saber de todas a osmoses /todas a íntimas soberanias do sangue /negar a Morte abraçando-a /no Mundo»

Fiquemos com o poema escrito em 30-11-94 na memória da manhã de 1955: «Aquela tépida manhã primaveril - 1955 talvez / o bando dos «corvos» fato preto gravata obrigatória /onde seria a sessão de cinema / «Marcelino pão e vinho» - o menino em que nos revíamos / caminhando pelas Ómnias / talvez no Vale de Santarém irrecuperável neblina /essa frescura branca poalha do tempo/ o cheiro penetrante do estrume /junto a uma cavalariça rente à estrada de saibro/ o pecado pressentido a malícia indefesa /( as mãos – mundanamente – nos bolsos) / «os corvos» - «aí vão eles» murmúrios blasfémias / o ódio jacobino do mundo/ contra a redoma da Graça esse orgulho essa alteridade /(…) / o sangue do jovem «corvo» atarantado / entre antíteses impossíveis /esperma comburente no júbilo do incenso.»

(Editora – Húmus, Direcção – Francisco Guedes)

[Livros e Autores 14]