quinta-feira, 30 de março de 2017

Revista "Devir" nº 4


Dizia Dinis Machado a sorrir à porta da Livraria Bertrand na Rua Garrett que «qualquer maneira de começar é uma boa maneira de começar». A propósito de Revistas Culturais ocorre-me uma história recente passada na Biblioteca Municipal de uma cidade perto de Lisboa. Um utente habitual entra na sala e pergunta ao funcionário que o olhava interrogativo: «Tem a Revista Orpheu?»
Ao que o dito cujo senhor funcionário respondeu: «De que mês?» Quer isto dizer que ainda há muita gente a não saber que o «Orpheu» é uma Revista de 1915. Portugal é um país especial pois ao contrário do lugar-comum nem é um país de poetas nem de brandos costumes. Poucos meses depois de morrer o poeta Luís Vaz de Camões ninguém sabia da sua campa junto à igreja da Pena.
Quanto aos brandos costumes basta ver as guerras entre liberais e miguelistas do século XIX para registar as mais diversas carnificinas e dos dois lados. Adiante. Nascido em 1951, foi em 1971 na Escola Veiga Beirão que vi dois poemas meus publicados na edição colectiva «Lugar de ser».
Tratava-se de uma «exposição de arte poética e plástica» organizada pelo nosso professor de Português o poeta e editor Manuel Simões. Os quatro poetas eram José do Carmo Francisco, José Miguel Nascimento, José Manuel Marques e Manuel Ferreira Teixeira. Os três ilustradores foram Francisco Costa, José Miguel Nascimento e José Manuel Marques. Se refiro este título «Lugar de ser» é porque me parece correcto, feliz e acertado. Uma publicação colectiva ou uma Revista Cultural são, de facto, lugares de ser, lugares de afirmação, de revelação, de exposição.
Um primeiro olhar sobre a Devir nº 4 fixa-se na capa como uma pintura de Ana Mata (Setúbal,1980), uma pintura como já não se usa. O segundo olhar para no ensaio de José Manuel de Vasconcelos sobre «A cidade na obra de Irene Lisboa» (1892-1958). São dez páginas na primeira das quais se clarifica o local de nascimento de irene Lisboa. Trata-se da Quinta da Murzinheira em Arranhó  e não Murtinheira como por erro crasso aparece na contracapa do livro «Solidão» editado pelo Círculo de Leitores. Algo parecido com o que se passou com José Cardoso Pires que numa contracapa de um outro livro do Círculo de Leitores surge como nascido no Peso (Covilhã) quando de facto nasceu em São João do Peso (Vila de Rei). Adiante. O terceiro olhar vai para o texto de Vânia de Sousa Majadas sobre a Poesia de Orides Fontela (1940-1998) uma autora brasileira que «não casou, não teve filhos, não tinha trabalho fixo nem paciência para as convenções e conveniências sociais e materiais» e cuja obra de estreia é «Transposição» de 1967: «A brevidade do verso de Orides Fontela é cortante, porque fere o leitor de forma que ao final do livro percebe-se que se foi tocado por algo inexplicável, de intangível beleza, como é típico nas leituras de grandes obras, essas que laceram pela verdade a natureza do homem». Muito curioso é o facto de Irene Lisboa também não casou nem teve filhos. Deu-se por inteiro à obra literária e não misturou a vida prática com os livros. Outro olhar fixa-se no texto de Nuno Matos Duarte («Um lugar para a arte») na página 49: «Para sobreviverem como artistas os indivíduos são impelidos a exteriorizarem-se segundo princípios claros traduzidos em ideia de carreira, pede-se-lhes «atitude» e «coerência» o que por um lado vem fundir e confundir ambas as categorias da diferença mas por outro incita à sua degeneração. Verdadeira doença da velocidade é este protagonismo a «atitude» atribuído, conferindo-se-lhe qualidades que ela, efectivamente, não possui.» Renato Suttana assina um estudo sobre a poesia de C. Ronald e Marta López Vilar assina uma dissertação sobre o acto de escrever. No fim é tudo importante neste nº 4 da Revista Devir; por isso uma apresentação corre o risco (que eu evito) de ser um inventário. Fiquemos na citação breve do poema «Pó» de Ruy Ventura como exemplo do poema que representa todos os poemas de todos os tempos. Basta lembrar que verso significava em latim o sulco do arado na terra e só muito mais tarde passou a definir o verso no poema:

«É preciso extrair da geometria
A verdade que a passagem do arado
Foi escondendo nas margens deste rio.
Para se encontrar a semente depositada no leito
Teremos de saber que vulcão nos cobriu de cinza
De onde veio a poeira que uma matéria escura

Foi transformando, lentamente, em húmus»

domingo, 26 de março de 2017

O Marinheiro, o Electricista e o Marquês


No livro «Jorge Vieira e o futebol do seu tempo» de Romeu Correia o marinheiro é Cipriano dos Santos (1901-1969), o electricista é Jorge Viera (1898-1986) e o marquês é António Penafiel (1898-1973). A fotografia foi tirada em Junho de 1928 na Ilha da Madeira quando a equipa principal do Sporting Clube de Portugal estreou as camisolas listadas e se deslocou ao Brasil para defrontar o Vasco da Gama (2-2-), o Fluminense (1-2) e a seleção do Rio de Janeiro (1-1). As viagens eram feitas nos paquetes da Mala Rela Inglesa: o «Alcântara» de Lisboa para o Rio de Janeiro e o «Andes» do Rio de Janeiro para Lisboa. Os jogadores «leoninos» e os atletas de outros clubes foram ao alfaiate pois as refeições ao jantar obrigavam ao uso do «smoking». A comitiva do Sporting Clube de Portugal era chefiada pelo presidente António Soares Júnior e integrava o treinador Charles Bell, Cândido de Oliveira, Salazar Carreira e os jogadores Cipriano dos Santos, Martinho de Oliveira, Jorge Viera, Matias, Serra e Moura, António Penafiel, Abrantes Mendes, Agostinho Cervantes, João Jurado, João Francisco e José Manuel Martins. Além dos jogadores «leoninos» seguiram viagem os seguintes «reforços»: António Roquete e Gustavo Teixeira (Casa Pia), Liberto dos Santos (União de Lisboa), Carlos Alves (Carcavelinhos), João dos Santos e Armando Martins (Vitória de Setúbal). O futebolista Alberto Augusto que estava no Rio de Janeiro a treinar o América. Juntou-se aos patrícios. Vasco Santana, o actor português que estava no Rio de Janeiro em 1928 afirmou a um jornal carioca: «Sou um leão velho e isso pode ser atestado pelo número de matrícula da minha carteira. Tenho também dois leõesinhos que são meus filhos e que apesar da sua tenra idade, já fazem parte dessa escola de educação física e moral que é o Sporting Clube de Portugal.»

(fotografia de autor desconhecido)

sexta-feira, 24 de março de 2017

A "Solidão" de Irene Lisboa (1892 - 1958)



Irene Lisboa (1892-1958) nasceu perto de Arruda dos Vinhos e morreu em Lisboa. Num pequeno convite à leitura e descoberta dos seus livros, revelo uma das suas páginas no livro «Solidão» editado pelo Círculo de Leitores. Vejamos: «Que dia tão bonito, tão bonito! Até me parece que vejo a água do Tejo correr e brilhar; Os barcos pequenos cruzam-se uns com os outros. Tudo se move para aqueles alegres lados. Era interessante poder reter o que vejo e o que sinto: a fulgência da manhã, a vibração das coisas, aquela palpitação da água. Ora me parece que despede faíscas, ora que está cheia de malhas brancas que nos iluminam. Esta terra é curiosa. De vez em quando parece-me nova e animadora, conhecendo-a eu embora tanto! Uns cegos que encontrei lá para baixo estão agora ali parados, a cantar. Rodeados de marçanos e de gaiatos. Uma pequenita daquela casa encarnada, que me parece de teatro ou de papelão, onde há muita gente pobre e reparadora, veio pôr-se à janela a ouvir os cegos. Tal qual uma boneca de trapos! De chapéu de homem por causa do sol, de cintura muito apertada; Tudo tem a sua animação, tudo é engraçado. Mas basta-me fechar a janela e pôr-me a escrever para logo tudo se desanimar». Noutra página Irene Lisboa reflecte sobre a sua condição de autora: «Tu dizes-me que no que eu escrevo há sempre uma continência ou uma insuficiência que desconcertam quem me lê. Sim. Afinal porque é que eu não disse mais? Porque me deixo dominar sempre por um pudor, uma reserva que limitam a compreensão de quem me lê? Tu atribuis tudo isso à compressão social, a um hábito de defesa, a um critério moral velho, a um gosto artístico restrito; É possível que tenhas razão.»


 (O belo desenho de Vítor Simões junta o Caes das Colunas de 1923 e o Cais das Colunas de 2008)

sábado, 18 de março de 2017

Uma estátua em frente ao Mar da Palha


Não conheci o Padre Cruz mas estive perto de o conhecer. Outro dia ao subir a Rua Garrett em Lisboa parei em frente à escadaria da Basílica dos Mártires e o vendedor de fotografias ofereceu-me esta foto pois achou graça à facilidade com que a identifiquei. É um facto que não conheci o Padre Cruz mas estive perto de o conhecer no Montijo. Foi viver para lá em 1957 e o Padre Cruz tinha falecido em 1948. Muita gente na Rua Sacadura Cabral se lembrava dele a pedir um púcaro à Tia Pagá e a beber na fonte metálica onde uma mulher lavava a chave de casa desde a madrugada. Alcochete é perto do Montijo, é uma terra banhada pelo mesmo Mar da Palha. Para dar uma ideia de como era o tempo sem Internet nem telemóveis, o ciclone de 1941 ainda estava muito presente em 1957 nas conversas das pessoas, os fragateiros mortos nesse dia de ventos diabólicos, as imagens ingénuas dos «ex-votos» no Santuário da Senhora da Atalaia. Ainda lá devem estar com a sua pintura dita «naif» em forma de oração e acção de graças. Afinal não conheci o Padre Cruz (1859-1948) mas andei sempre por perto e agora ainda mais pois é em Benfica que está o seu jazigo. Sei muitas histórias do Padre Cruz como aquela do barbeiro da Rua da Alfândega onde ele foi bem atendido mas, como dava tudo aos pobres, não tinha dinheiro para pagar o corte de cabelo. «Tenha paciência, Deus lhe pagará!» - terá dito o Padre Cruz ao homem que, além do mais, era um carbonário. Mas, como por milagre, a barbearia encheu-se de fregueses e até fizeram bicha para, como dizem os profissionais, servir. Nunca o homem tinha tido tanta clientela. Mas há muitas histórias como aquela de terem prendido o Padre Cruz no Limoeiro. Foi um reboliço na cidade de Lisboa e só o Dr. Afonso Costa resolveu o assunto com um documento a proibir que o Padre Cruz fosse detido.

[Crónicas do Tejo 71]