O moínho da capa da Revista
ALDRABA nº 21 está parado tal como parou no passado dia 18 de Abril o moínho do
coração de Maria do Céu Ramos, vice-presidente da Direcção e associada nº 59 da
ALDRABA. Entre o moínho que transforma grão em farinha e o que transforma dias
em tempo de viver, as semelhanças são óbvias. Pelo menos para mim que fui
convidado para apresentar o conteúdo destas 30 páginas. Num dos meus poemas
associei o moínho ao navio: ambos precisam de velas e ambos viajam embora com
destinos diferentes. O destino do moínho é o pão, o destino do navio é o porto
mais próximo. Nada contra os motores actuais mas isso é outra conversa.
O texto de José Nelson Cordeniz
sobre as danças de Carnaval na Ilha Terceira surge com uma arte final algo
descuidada. Além de um abuso dos advérbios de modo (essencialmente,
especialmente, propriamente, actualmente, claramente) nota-se que o acordeão
vem a página 21 como algo de positivo e na página 19 aparece a concertina como instrumento
musical que tem prejudicado a música folclórica. Embora não seja este o local e
o momento para tratar este assunto, a verdade é que para a maioria das pessoas
acordeão e concertina andam a par. Outro pormenor de descuido está na
referência à estrutura das danças: «Saudação, Assunto e Despedida» na página 20
mas «Introdução, Assunto e Despedida» na página 21 embora o texto anuncie que é
tudo «igual». Pouco compreensível é na página 21 o texto que refere «um
convívio após a Dança recheado de iguarias típicas» mas não é o convívio que é
recheado; pode ser a mesa posta. De qualquer modo a mensagem de inventário e
notícia chega ao leitor e é esse o objectivo do texto.
Nuno Nabais num artigo de
opinião intitulado «Lisboa, a Cultura e Espinosa» refere entre outros pontos de
muito interesse esta ideia: «hoje aquilo que interessa à Universidade não é a
indústria cultural mas o comércio cultural». Nesse sentido, não é de estranhar
que, mais à frente, surja outra ideia sobre a mudança de paradigma: «os
suplementos literários foram substituídos por agendas culturais» ou dito de
outra maneira «uma compilação avulsa de sugestões de entretenimento». Em termos
sintéticos pode dizer-se que os jornais do meu tempo (1978) tinham secções de
«Artes e Espectáculos» mas hoje é só espectáculo. Tudo isto pode ser dito de
outra maneira: são quatro os conceitos e as palavras-chave para a actual
circunstância – património, luxo, arte e turismo. Espinosa nasceu em Amsterdam.
De família natural de Vidigueira que foi expulsa de Portugal e refugiou-se na
Holanda. Escreve Nuno Nabais: «Sonhava em português, fazia exegese em hebraico,
escrevia tratados de ética e filosofia política em latim e dirigia a oficina de
lentes em holandês». Nestas palavras está um resumo do escritor que pode vir um
dia para o Panteão Nacional ou ter até o seu nome num Prémio Literário.
Fernando Fitas assina um texto
sobre os Museus no qual afirma que «o Museu tem de ser um espaço vivo para ser
vivido», permitindo aos visitantes manusear as peças das prateleiras. Luís
Filipe Maçarico refere dois livros de António Salvado e cita de um deles a
frase de um autor francês para quem «o Museu é a Universidade Popular através
dos objectos». Shawn Parkhurst da Universidade americana de Louiseville
(Kentucky) ocupa a página 8 com um texto de amor ao Rio Douro: «O amor
agarrou-me em 1992. Eu já não existo sem o Douro, mesmo estando longe dele».
Outras águas são as de Sónia Tomé. Resumem a sua participação no Festival
Literário Internacional de Querença em Agosto de 2016. Nesse encontro literário
foi patente a flutuação entre dois tempos e dois mundos da água no Alto
Barrocal Algarvio: ora escassa, ora excessiva. Muito curiosa é uma das quadras
sobre uma realidade que já não volta: a má língua das mulheres quando lavavam a
roupa numa pedra da ribeira: «Água nos dá alegria / Lava a alma e o coração /
Água lava tudo quanto cria / Só a má língua é que não».
João Coelho recorda os tempos
difíceis dos marçanos que com 13 ou 14 anos chegavam da terra e começavam logo
a carregar as compras das «senhoras» às costas em cabazes de vime. O pagamento
era «cama, mesa e roupa lavada» mas a cama era má, a comida era´péssima e da
roupa só era lavada uma muda por semana que o sabão sempre foi caro e a
ganância sempre foi forte. Nuno Roque da Silveira conta a história de Joaquim
Raposo Dias, um polidor de móveis na Calçada das Necessidades e a memória do
seu avô Raposo que tinha um quiosque no cruzamento das ruas Marquês de
Fronteira e Artilharia Um. Escreve a certo passo «Caíram-lhe em cima» mas o
texto não explica quem caiu em cima do avô. Talvez mariolas como então se dizia e escrevia. Maria Adelaide Furtado
lembra a gramática dos toques dos sinos que até há pouco tempo e ainda no
século XX regulavam a vida de muitas comunidades. Nos Açores havia uma frase em
muitas freguesias que toda a gente acatava: «Trindades batidas, meninas
recolhidas» Tanto o sino como o chocalho nascem da arte do fogo. E tanto um
como outro continuam a ter uma função comunicativa mas já não tão importante
como por exemplo no século XIX em que «era o sino que punha em movimento todo o
Universo». Os chocalhos empurravam os rebanhos mas hoje há cada vez menos
pastores e menos rebanhos para guardar. José Rodrigues Simão assina um texto de
memórias (55 anos depois no título) apesar de no texto se referir a 50 anos e
não 55. Embora louve o esplendor da paisagem não existe nele um enquadramento
geográfico que o permita localizar de imediato. O mesmo se passa com o texto de
Mateus Dias Campeã sobre a memória de uma caçada e o uso do furão. Maria
Eugénia Gomes assina as páginas sobre as viagens e os actos eleitorais da
ALDRABA e é no seu texto que se percebe melhor o conteúdo da capa da Revista:
«Os moinhos do Outeiro são únicos no Mundo em termos de funcionamento». O cartoon de Luís Afonso mantém o nível
altíssimo de ironia que num jantar simpático em Serpa o levou a lamentar para
mim a saída de Sousa Cintra do lugar de Presidente da Direcção do SCP: «Cada
frase daquele homem era já meia anedota. Era só completar.» A Revista fecha com
um poema, um belo poema de Izidro Alves que além de tudo o que quase exige o
texto da página 8 («terra, poesia e emoção») tem muita oficina e é essa oficina
que leva este poema a cumprir aquilo que me parece ser a razão de ser de toda a
literatura: ligar de novo tudo o que a Morte separou.