sábado, 3 de junho de 2017

«A céu aberto» de Paulo da Costa Domingos


Paulo da Costa Domingos (n.1953) nasceu no mesmo ano em que António Maria Lisboa partiu. Não era um Mundo qualquer, era Portugal: «uma fila de velhos muito pobres, verdade e fingimento, à porta de um dispensário, num coro constante de tosses.» O ponto de partida da sua vida é uma família simples: «eu vinha do nada, nem nome de família, um avô jardineiro e ferozmente anticlerical, outro virado às estradas a abrir caboucos.» O ponto de chegada é uma conclusão: «Porque a leitura faz de nós melhores pessoas; faz de nós pessoas.» Pelo meio livros, traduções, filmes e desenhos de John Osborne, Boris Vian, Carlos de Oliveira, António Maria Lisboa, Pedro Oom, António José Forte, Luiza Neto Jorge, Manuel João Gomes, Aníbal Fernandes, João César Monteiro, Carlos Ferreiro e Vítor Silva Tavares: «Se dizes não é porque tens razão». A estas referências mais ou menos biográficas junto uma outra, pessoal: corria o ano de 1986 e a Revista Seara Nova publicava um texto meu sobre «as novas direcções da Poesia Portuguesa». Paulo da Costa Domingos surge nesse meu inventário devido à importância dos seus livros. Cito de memória «Asfalto», «Travesti», Cabra-cega», «Carmina», «Nas alturas», «Violeta náutica», «Cicatriz» e «Tigres de papel», sem esquecer que criou a Editora Frenesi e organizou com Al Berto e Rui Baião a antologia «Sião».  
É complicado procurar ver na poesia de alguém a sua voz pessoal mas corro esse risco ao fazer a ficha de leitura deste livro de 108 páginas cujo título é retirado de um dos quatro capítulos do mesmo. O ponto de partida é o Outono: «Não será portanto / a mais bela idade da vida / mas não deixa o Outono / de ter o seu peculiar encanto: / a sua dádiva de calma doçura / a mansidão que para vós coa / um magnífico vinho novo.» O olhar do poema fixa-se no horizonte: «Famílias transtornadas em gangues / de assalto à comida, minúsculas ilhas / à deriva, é o salve-se quem puder.» Entre o ponto de partida e o horizonte, a ironia do poema tanto pode devastar a poesia de Augusto Gil («Batem leve, levemente / água abundante e laranjas / do mesmo olival») como arrasar uma canção de Amália Rodrigues («Temente que a achassem feia / tomou o barco negro prá cidade») sem esquecer o cinema («É de evitar mesa posta / para os doze indomáveis patifes») ou a literatura num título de Alexandre Herculano: «A dama pé-de-cabra». Outras vezes o texto poético fica na ironia mais (digamos) simples à volta do real («o real é moscas sobre bosta humana») ou daquilo a que podemos chamar real: «Os que não conseguem / uma chefia/ batem no cão / por serem / celibatários».  O tempo actual pode definir-se no poema «Seita» - «Nem oiro nem sossego / se encontra aqui / nem saúde nem fraternidade / só gente ruim, / avariada». Porque não há saída nem solução: «Veio mesmo para ficar / dizem, a crise dominante / que nos torna inofensivos / suplicantes obrigados.» Ao longo dos tempos a Poesia nunca hesitou em chamar as coisas pelos seus nomes. No mesmo poema um verso recorda «a solidão dos jardineiros» que podia ser um título possível para este belíssimo livro de poemas. (Editora: Averno, Desenhos: Pedro Calapez )

(Um livro por semana 557)

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