Paulo
da Costa Domingos (n.1953) nasceu no mesmo ano em que António Maria Lisboa
partiu. Não era um Mundo qualquer, era Portugal: «uma fila de velhos muito
pobres, verdade e fingimento, à porta de um dispensário, num coro constante de
tosses.» O ponto de partida da sua vida é uma família simples: «eu vinha do
nada, nem nome de família, um avô jardineiro e ferozmente anticlerical, outro
virado às estradas a abrir caboucos.» O ponto de chegada é uma conclusão:
«Porque a leitura faz de nós melhores pessoas; faz de nós pessoas.» Pelo meio livros, traduções, filmes e desenhos de John
Osborne, Boris Vian, Carlos de Oliveira, António Maria Lisboa, Pedro Oom,
António José Forte, Luiza Neto Jorge, Manuel João Gomes, Aníbal Fernandes, João
César Monteiro, Carlos Ferreiro e Vítor Silva Tavares: «Se dizes não é porque
tens razão». A estas referências mais ou menos biográficas junto uma outra,
pessoal: corria o ano de 1986 e a Revista Seara Nova publicava um texto meu
sobre «as novas direcções da Poesia Portuguesa». Paulo da Costa Domingos surge
nesse meu inventário devido à importância dos seus livros. Cito de memória
«Asfalto», «Travesti», Cabra-cega», «Carmina», «Nas alturas», «Violeta
náutica», «Cicatriz» e «Tigres de papel», sem esquecer que criou a Editora
Frenesi e organizou com Al Berto e Rui Baião a antologia «Sião».
É
complicado procurar ver na poesia de alguém a sua voz pessoal mas corro esse
risco ao fazer a ficha de leitura deste livro de 108 páginas cujo título é
retirado de um dos quatro capítulos do mesmo. O ponto de partida é o Outono:
«Não será portanto / a mais bela idade da vida / mas não deixa o Outono / de
ter o seu peculiar encanto: / a sua dádiva de calma doçura / a mansidão que
para vós coa / um magnífico vinho novo.» O olhar do poema fixa-se no horizonte:
«Famílias transtornadas em gangues / de assalto à comida, minúsculas ilhas / à
deriva, é o salve-se quem puder.» Entre o ponto de partida e o horizonte, a
ironia do poema tanto pode devastar a poesia de Augusto Gil («Batem leve,
levemente / água abundante e laranjas / do mesmo olival») como arrasar uma
canção de Amália Rodrigues («Temente que a achassem feia / tomou o barco negro
prá cidade») sem esquecer o cinema («É de evitar mesa posta / para os doze
indomáveis patifes») ou a literatura num título de Alexandre Herculano: «A dama
pé-de-cabra». Outras vezes o texto poético fica na ironia mais (digamos)
simples à volta do real («o real é moscas sobre bosta humana») ou daquilo a que
podemos chamar real: «Os que não conseguem / uma chefia/ batem no cão / por
serem / celibatários». O tempo actual
pode definir-se no poema «Seita» - «Nem oiro nem sossego / se encontra aqui /
nem saúde nem fraternidade / só gente ruim, / avariada». Porque não há saída
nem solução: «Veio mesmo para ficar / dizem, a crise dominante / que nos torna
inofensivos / suplicantes obrigados.» Ao longo dos tempos a Poesia nunca
hesitou em chamar as coisas pelos seus nomes. No mesmo poema um verso recorda
«a solidão dos jardineiros» que podia ser um título possível para este
belíssimo livro de poemas. (Editora: Averno, Desenhos: Pedro
Calapez )
(Um livro por semana 557)
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