domingo, 23 de fevereiro de 2020

No tempo de Jesus não havia fotografias



Meu neto Pedro, menino de oito anos, é que fez a inesperada pergunta: «Avô, no tempo de Jesus não havia fotografias?». Apeteceu-me responder que no tempo de Jesus não havia fotografias nem telemóveis nem megafones. Por isso os discípulos de Jesus subiam aos terraços das casas desse tempo para falarem às multidões que O seguiam de terra em terra. A imagem mais divulgada de Jesus é, julgo eu, a de Rembrandt. Um Jesus já perto do julgamento estranho e insólito em que o «juiz» lava as mãos numa bacia colocada numa varanda para significar de modo simbólico o seu «desligar» da condenação de um justo. O sonho da esposa de Pôncio Pilatos não admitia segundas leituras nem interpretações posteriores. Ainda hoje em 2019 se diz «andou de Herodes para Pilatos» quando alguém se sente empurrado ou incompreendido ou «lavar as mãos como Pilatos» quando um outro alguém se pretende desligar de uma decisão incómoda e difícil porque não pacífica. Não esquecer que «Varanda de Pilatos» é o título de um livro de Vitorino Nemésio, uma novela editada pela Imprensa Nacional. Eu mesmo (peço muita desculpa aos leitores) usei num verso essa referência num poema magoado sobre o assassinato de um sócio do Sporting Clube de Portugal no Estádio do Jamor em 1996: «A Varanda de Pilatos/É na Praça da Alegria / Visto isso mais os actos/ Ninguém faz da noite dia.» Conclusão provisória, como todas as conclusões: no tempo de Jesus não havia fotografias mas as imagens continuam vivas e a memória instalada desse tempo agarra-se a muitos de nós como uma segunda pele. Um dia o meu neto Pedro irá perceber. A resposta à sua pergunta sobre as fotografias no tempo de Jesus pode demorar mas vai chegar um dia, talvez de modo inesperado. Mas vai chegar.     

[Crónicas do Tejo 202]

(Óleo de Rembrandt)

quarta-feira, 12 de fevereiro de 2020

«A pedra e a nuvem» de Raul Brandão



Raul Brandão (1867-1930) teve a vida em dupla inscrição: foi militar mas também jornalista e escritor. O que José Manuel de Vasconcelos organizou, selecionou e prefaciou foi um breviário brandoniano, um livro para ler todos os dias como quem reza e junta de novo tudo o que a morte separou. Como explica o organizador deste volume de 100 páginas: «O objectivo do presente livro é, sobretudo, o de proporcionar a quem não está familiarizado com a obra do escritor, um primeiro contacto como seu universo, as suas obsessões, as suas inquietações, aquilo a que se poderia chamar os «grumos» do seu pensamento, esse filosofar desagregado, repetitivo, de uma liquidez espessa que problematiza com acentuada expressividade (…) os grandes temas de sempre: o homem, a vida, a morte, o sonho, Desus.»
Mais do que um grande escritor (baste referir Húmus, Os Pescadores e As Ilhas Desconhecidas) Raul Brandão é um assombroso continente de ideias. Fiquemos apenas com duas. Primeira: «A que se reduz afinal a vida? A um momento de ternura e mais nada… De tudo o que se passou comigo só conservo a memória intacta de dois ou três rápidos minutos. Esses sim» Segunda: «A vida antiga tinha raízes, talvez a vida futura as venha a ter. A nossa época é terrível porque já não cremos – e não cremos ainda. O passado desapareceu, de futuro nem alicerces existem. E aqui estamos nós sem tecto, entre ruínas, à espera.»
A influência de Raul Brandão é transversal na literatura portuguesa actual. Dois exemplos: Augusto Abelaira publicou um romance com o título de Sem tecto entre ruínas e o meu livro biográfico sobre Vítor Damas arranca com esta frase de Raul Brandão – Ser diferente dos outros é já uma desgraça; ser superior aos outros é uma desgraça muito maior.

(Editora: Nova Vega, Capa: Paulo Bacelar, Organização, selecção de textos e prefácio: José Manuel de Vasconcelos, Editor: Assírio Bacelar, Paginação: Jorge Machado-Dias)

[Um livro por semana 640]