quinta-feira, 20 de julho de 2017

«Noite vertical« de Zetho Cunha Gonçalves



Há neste recente livro de Zetho Cunha Gonçalves (n. 1960) uma dupla inscrição: amor e morte. Amor na página 32 («E nenhum rio é como esse / o rosto magnificente da infância / a pátria inaugural da Poesia») e na página 67: «a minha escola primária / foi a sombra duma árvore muito antiga – e a voz / um pêndulo que soletrava / nas crateras debaixo do fogo / horas e números – no horizonte». A morte pode ler-se na página 21 («Os meus mortos deram-me versos, assombros – um rio acampado na memória») e na página 65: «Olho para o Tempo e digo: - Eu estive / onde a morte começou. Insensitiva, / reles, insidiosa, banal.» 
Entre o amor e a morte surge o poema inicial («Os rios tocam-se de águas iluminadas») espécie de janela para o poema da plenitude no qual tudo se liga: «Trago nas minhas mãos – o coração do mundo / o tempo em que os rios ardem / se volto o meu rosto / à tua passagem / na multidão». O poema da página 59 integra um programa de vida e de poesia na voz da Mãe: «Meu filho / se aquilo que sonhaste não chega / para encheres a barriga / ao teu desejo e ao teu sossego / canta / canta com a voz voltada para nascente / enquanto lavras / e lavras a força / e a dança do leopardo.»
O autor convoca versos e frases de Dante Milano, Rainer Maria Rilke, Jacobo Fijman, Friedrich Hölderlin, António José Forte, Fernando Assis Pacheco, Ruy Duarte de Carvalho, Eduardo White e Herberto Helder para homenagear em poemas, aforismos e prosa-poemas figuras diversas das Artes e das Letras: António Ramos, Rosa, Fernando Assis Pacheco, António Prates, David Mestre, Robson Dutra, Roberto Chichorro, José Craveirinha, Ruy Duarte de Carvalho., Eduardo White e Herberto Helder. Nesta oscilação entre «cantar» e «reflectir», Zetho Cunha Gonçalves lembra David Mestre com um poema feito dos títulos dos livros do poeta morto em 1998: «1 - O nome, crónica / do ghetto, sobe / pseudónimo ao poema:/ pulmão / subscrito a giz / nas barbas do bando / 2 – No relógio de Cafucôlo / nem tudo é poesia / lusografias crioulas: são quarenta / e nove anos / obra cega, / do canto à idade.»
(Editora: Língua Morta, Capa: Gustave Doré)

(Um livro por semana 559)


Sem comentários:

Enviar um comentário