quinta-feira, 21 de novembro de 2019

«As longas noites de Caxias» de Ana Cristina Silva



Este livro de Ana Cristina Silva é dedicado a «todos os resistentes antifascistas» e adverte: «Esta obra baseia-se em factos verídicos. No entanto, nomes e situações foram ficcionados.» O livro de estreia da autora é «Mariana, todas as cartas» de 2002 e o seu anterior romance é «Salvação» de 2018. O título deste recente trabalho surge nas páginas 127, 149 e 200 mas o primeiro é o ponto de partida: «Nas longas noites de Caxias, nunca as detidas viram um sorriso no rosto de Maria Helena.» Por um lado está Leninha, do outro Laura Branco, a agressora e a agredida. Não apenas pelos actos mas também pelas palavras porcas: «És uma cabra e não és uma vaca porque não tens físico para isso!» Laura respondeu: «Mas tens tu.» A narrativa não se limita ao duelo entre a agente da PIDE e a detida em Caxias. As memórias de infância de Laura são o retrato dum certo tempo português: «As suas amigas eram filhas dos homens que se alugavam à jorna na praça da vila (…) Outros havia em piores condições. Trabalhadores que não eram escolhidos pelos feitores (…) e que se juntavam nas tabernas. Homens desgarrados que cantavam o orgulho de ser alentejano por ruas tortas, pedindo com mágoa uma moeda para os filhos.» Do lado de Maria Helena há vitórias e derrotas: «Chamava-se Maria Augusta, era camponesa do Couço e denunciou os camaradas. Uma outra camponesa, de nome Maria Custódia, oriunda da mesma terra, não proferiu qualquer palavra.» A hostilidade perversa de Maria Helena para com as mulheres tinha raízes na infância: «No dia em que Salazar foi a Setúbal e beijou Maria Helena na testa o seu pai deu uma tareia na mulher.(…)Envergonhava-se da mãe, fraca e débil, sempre a suspirar pelos cantos. (…) Desde a primeira classe que as colegas de Maria Helena suspeitavam que ela tinha instintos ruins.» O filho de Maria Helena era um rapazinho cobarde mas era adepto do Benfica como a mãe. Essa relação surge na organização da narrativa como exemplar. O Clube tem uma visão revisionista da História do Desporto em Portugal: mente sobre a data da fundação, mente sobre os títulos de campeão, mente sobre a idade dos jogadores, inventa mentiras delirantes como a de em 1907 um grupo de sete jogadores ter saído do SLB para fundar o SCP. Os jogadores em causa saíram do Grupo Sport Lisboa e apenas procuravam um estádio onde pudessem tomar banho depois dos jogos. O SCP tinha sido fundado em 1906, depois de tentativas em 1902 (Belas) e 1904 (Campo Grande). O julgamento de Leninha foi o previsível: a maior parte do discurso era palavreado patriótico no qual mergulhava para se justificar a si própria. O discurso deslocado da realidade surge em 1977 mas o resultado é suave: «Seis meses de cadeia.» Laura conclui: seria um processo lento, requereria todo o seu esforço para não se deixar enredar nas imagens do passado.» A vida de Maria Helena cabe em duas linhas («um matrimónio despedaçado, um filho que só lhe dava preocupações, uns pais cada vez mais velhos e agora um amante que a abandonava») mas no fim afirma «nunca me arrependi de nada. Os tempos da PIDE foram os mais felizes da minha vida.»

(Editora: Planeta Manuscrito, Revisão: Fernanda Fonseca, Capa: Patrícia Silva sobre imagem de Hayden Verry, Foto; Fernando Dinis)

[Um livro por semana 632]

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