Este
livro de Ana Cristina Silva é dedicado a «todos os resistentes antifascistas» e
adverte: «Esta obra baseia-se em factos verídicos. No entanto, nomes e
situações foram ficcionados.» O livro de estreia da autora é «Mariana, todas as
cartas» de 2002 e o seu anterior romance é «Salvação» de 2018. O título deste
recente trabalho surge nas páginas 127, 149 e 200 mas o primeiro é o ponto de
partida: «Nas longas noites de Caxias, nunca as detidas viram um sorriso no
rosto de Maria Helena.» Por um lado está Leninha, do outro Laura Branco, a
agressora e a agredida. Não apenas pelos actos mas também pelas palavras
porcas: «És uma cabra e não és uma vaca porque não tens físico para isso!»
Laura respondeu: «Mas tens tu.» A narrativa não se limita ao duelo entre a
agente da PIDE e a detida em Caxias. As memórias de infância de Laura são o
retrato dum certo tempo português: «As suas amigas eram filhas dos homens que
se alugavam à jorna na praça da vila (…) Outros havia em piores condições.
Trabalhadores que não eram escolhidos pelos feitores (…) e que se juntavam nas
tabernas. Homens desgarrados que cantavam o orgulho de ser alentejano por ruas
tortas, pedindo com mágoa uma moeda para os filhos.» Do lado de Maria Helena há
vitórias e derrotas: «Chamava-se Maria Augusta, era camponesa do Couço e
denunciou os camaradas. Uma outra camponesa, de nome Maria Custódia, oriunda da
mesma terra, não proferiu qualquer palavra.» A hostilidade perversa de Maria
Helena para com as mulheres tinha raízes na infância: «No dia em que Salazar
foi a Setúbal e beijou Maria Helena na testa o seu pai deu uma tareia na
mulher.(…)Envergonhava-se da mãe, fraca e débil, sempre a suspirar pelos
cantos. (…) Desde a primeira classe que as colegas de Maria Helena suspeitavam
que ela tinha instintos ruins.» O filho de Maria Helena era um rapazinho
cobarde mas era adepto do Benfica como a mãe. Essa relação surge na organização
da narrativa como exemplar. O Clube tem uma visão revisionista da História do
Desporto em Portugal: mente sobre a data da fundação, mente sobre os títulos de
campeão, mente sobre a idade dos jogadores, inventa mentiras delirantes como a
de em 1907 um grupo de sete jogadores ter saído do SLB para fundar o SCP. Os
jogadores em causa saíram do Grupo Sport Lisboa e apenas procuravam um estádio
onde pudessem tomar banho depois dos jogos. O SCP tinha sido fundado em 1906,
depois de tentativas em 1902 (Belas) e 1904 (Campo Grande). O julgamento de
Leninha foi o previsível: a maior parte do discurso era palavreado patriótico
no qual mergulhava para se justificar a si própria. O discurso deslocado da
realidade surge em 1977 mas o resultado é suave: «Seis meses de cadeia.» Laura
conclui: seria um processo lento, requereria todo o seu esforço para não se
deixar enredar nas imagens do passado.» A vida de Maria Helena cabe em duas
linhas («um matrimónio despedaçado, um filho que só lhe dava preocupações, uns
pais cada vez mais velhos e agora um amante que a abandonava») mas no fim
afirma «nunca me arrependi de nada. Os tempos da PIDE foram os mais felizes da
minha vida.»
(Editora: Planeta Manuscrito, Revisão:
Fernanda Fonseca, Capa: Patrícia Silva sobre imagem de Hayden Verry, Foto;
Fernando Dinis)
[Um livro por semana 632]
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