«Na impossibilidade de viajar e percorrer as
sete partidas do mundo, tenho-me
debruçado sobre as recordações da minha infância para delas tirar o material com que se faz literatura. Assim tem
acontecido com quase tudo o que tenho escrito e publicado desde 1947. Por
minha fortuna nasci em Almada, terra
profundamente associativa, cheia de cor e diversidade humana, com o estuário do Tejo lá em baixo e a grande cidade
de Lisboa diante do nariz. Vila que foi
conquistada à moirama por João Tiago, guerreiro de Afonso Henriques e de muitas e perdidas tradições,
onde o século dezanove nos legou bandas
de música, sociedades recreativas, bombeiros voluntários, cooperativas de consumo, montepios, o arco-da-velha! E
ainda um espírito liberal e humanitário
como raro se encontra noutro lugar. Terra de fragateiros e descarregadores de Cacilhas, de fabulosos
tanoeiros-músicos, pescadores
caparicanos, operários do Caramujo, de costureiras e de embarcadiços. Vila dos concertos de banda no jardim,
das festas de São João e do regresso
bacano da quinta da Ramalha, das cegadas carnavalescas, do enterro do bacalhau e da serração da velha, do Judas
dependurado no sábado de Aleluia, das
muitas e variadas pugnas desportivas dos anos vinte e trinta. Tudo isto me foi atirado aos olhos, numa
rapsódia de cor que faria inveja à paleta
de um Delacroix ou de um Chagall! Assisti também nas tabernas de Cacilhas e do Cais do Ginjal aos últimos
abencerragens de poetas populares,
cantadores de fado e escrevinhadores de cegadas: analfabetos uns, outros entendedores da escrita. Presenciei tudo isto na
minha acidentada infância. Mais tarde, quando
abandonei o box e o atletismo e tentei
escrever histórias e comédias, socorri-me da paisagem humana almadense. A minha experiência da doca, a vagabundagem
pelos cais, o contacto com tanoeiros e
fragateiros, assim como o material fornecido por minha mulher, que ainda era messe tempo costureira de «macacos» de
ganga, foram achegas para o Sábado sem Sol, Trapo Azul, Calamento, Gandaia,
etc».
(Fotografia de autor desconhecido)
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