Quase nada sei das origens da tua voz, seu
timbre e sua altura, seu calor e sua extensão, seu peso e seu rigor. Chamo-lhe calorosa
pois sinto nela o calor que sacode o dia, aquece o pão, ferve o leite e convida
ao pequeno almoço com ovos e bacon. Quando ouço a tua voz sinto nela o rumor
ritmado das ondas de todas as praias e as melodias de todas as orquestras.
Melodia, harmonia, contraponto – o que quer que seja musical nas manhãs de
Rádio. Porque toda a minha infância cabe numa telefonia Schaub Lorenz. O senhor
Messias, o Compadre Alentejano, o Teatro das Comédias, o romance da hora do
almoço, o telefone toca do Matos Maia. E também os discos pedidos dos
doentinhos dos sanatórios – Serviço 6, Sala 2, Cama 4. Sem esquecer os anúncios:
«Candeeiros bem bonitos / modernos, originais / compre-os na Rádio Vitória /
não se preocupe mais.» A tua voz é clarim, bandeira, estandarte. Primeiro avisa, depois convoca, de seguida vem
guiar os ouvintes como numa antiga romaria entre o sol que brilha e o pó que não
assenta. Havia a Rádio Graça, a Rádio Peninsular, o Clube Radiofónico de
Portugal e a Rádio Voz de Lisboa. A Voz de Lisboa era essa mistura feliz do
vagar dos eléctricos e da pressa na espuma dos rebocadores, o vagar do
sinaleiro e a pressa das fragatas do outro lado do Tejo. Vivi no Montijo entre
1957 e 1961; por isso ser fragateiro era um dos meus destinos possíveis. Aos
Domingos à tarde os eléctricos levavam bandeiras de estádios: Luz, Restelo,
Tapadinha, Lumiar. À noite saía nos jornais o resumo da jornada com a
classificação e os melhores marcadores. Os ardinas voavam nas Escadinhas do
Duque. Era a voz de Lisboa. Quase nada sei das origens da tua voz. Sei que nela
passa o coração do Mundo. As sombras e as luzes, as sementeiras e as colheitas,
a terra e o mar. Tudo cabe na tua voz que não termina e que continua.
[Crónicas do Tejo 117]
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