Carlos
Vale Ferraz (n.1946) é, desde «Nó cego» (1983), o autor de vários livros que
são referência obrigatória na ficção portuguesa sobre a Guerra Colonial de 1961
a 1974. O seu mais recente título parte de uma notícia de jornal - «Emigrante
milionário quer comprar igreja na sua terra e transformá-la num panteão para a
mãe». Para Shakespeare «a memória é a guardiã da mente» e, mesmo por isso, a
narrativa envolve também a Maria da Fonte: «O povo revoltou-se porque exigiu
enterrar uma velha na igreja e as autoridades queriam os mortos do regime
liberal em seu eterno repouso nos novos cemitérios com atestado da Junta de
Saúde.» A protagonista (Alice Oliveira) nasceu no Minho e, depois de ter
passado por Leopoldville, por Luanda e por Pretória viria a morrer na Nova
Zelândia, do outro lado do Mundo: «Partira para o Congo com um homem muito mais
velho e depois regressara para entregar o filho…»
Há
neste livro uma dupla inscrição. De um lado a narrativa em caracteres «Times»:
«A guerra do Congo reunia todos os venenos. Os de pior fama naquele caldeirão
de interesses pareciam ser os mercenários brancos . A figura de Jean Scrame
incendiou paixões desde 1960, após ter surgido nos jornais como comandante de
um grupo de guerreiros negros e brancos, Les
Affreux, os Terríveis, envolvidos nos negócios da secessão do Catanga, um
dos territórios mais ricos do planeta em minérios raros e de alto valor.» Do
outro lado a reflexão em «itálico»: «As
independências africanas sofreram a contradição da espingarda Kalashnikov, os
independentistas negros utilizaram-na para se libertarem dos brancos, mas não a
fabricavam e tiveram de a comprar aos brancos!» O conflito do Catanga e do
Congo Belga passa em «Times» para o outro lado da fronteira: «Alice Oliveira
sabia de fonte certa o que iria acontecer no Norte de Angola e quando. A data
do levantamento em armas contra os colonos portugueses fora definitivamente
marcada pelos dirigentes do Congo e pelos bacongos angolanos, seus aliados e
familiares do outro lado do rio.» Em itálico ficam as perguntas e as respostas:
«Porque não tomaram as autoridades
portuguesas medidas para evitar o que sabem que irá acontecer?» «Porque a
guerra interessa ao Salazar!».
Não
se limitando à biografia de Alice Oliveira, este livro avança para uma figura
mítica que também esteve em África como Che Guevara: «instalara um foco de
guerrilha nas montanhas de Baraka, com alguns revolucionários cubanos, seus
camaradas, grupos sobreviventes das forças dos Simbas derrotados e mais alguns
membros da tribo do chefe Kabila.» Mas reflecte, mais à frente, sobre «os
guerreiros coloniais reunidos à volta da Torre de Belém» que projectam memórias
«dos legionários romanos que há dois mil anos, no Campo da Morte, lamentaram a
independência da Hispânia, da Lusitânia, da Judeia e da Britânia».
(Edição: Porto Editora, Capa: Manuel
Pessoa - Um livro por semana 574)
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