segunda-feira, 4 de dezembro de 2017

«A última viúva de África» de Carlos Vale Ferraz


Carlos Vale Ferraz (n.1946) é, desde «Nó cego» (1983), o autor de vários livros que são referência obrigatória na ficção portuguesa sobre a Guerra Colonial de 1961 a 1974. O seu mais recente título parte de uma notícia de jornal - «Emigrante milionário quer comprar igreja na sua terra e transformá-la num panteão para a mãe». Para Shakespeare «a memória é a guardiã da mente» e, mesmo por isso, a narrativa envolve também a Maria da Fonte: «O povo revoltou-se porque exigiu enterrar uma velha na igreja e as autoridades queriam os mortos do regime liberal em seu eterno repouso nos novos cemitérios com atestado da Junta de Saúde.» A protagonista (Alice Oliveira) nasceu no Minho e, depois de ter passado por Leopoldville, por Luanda e por Pretória viria a morrer na Nova Zelândia, do outro lado do Mundo: «Partira para o Congo com um homem muito mais velho e depois regressara para entregar o filho…»
Há neste livro uma dupla inscrição. De um lado a narrativa em caracteres «Times»: «A guerra do Congo reunia todos os venenos. Os de pior fama naquele caldeirão de interesses pareciam ser os mercenários brancos . A figura de Jean Scrame incendiou paixões desde 1960, após ter surgido nos jornais como comandante de um grupo de guerreiros negros e brancos, Les Affreux, os Terríveis, envolvidos nos negócios da secessão do Catanga, um dos territórios mais ricos do planeta em minérios raros e de alto valor.» Do outro lado a reflexão em «itálico»: «As independências africanas sofreram a contradição da espingarda Kalashnikov, os independentistas negros utilizaram-na para se libertarem dos brancos, mas não a fabricavam e tiveram de a comprar aos brancos!» O conflito do Catanga e do Congo Belga passa em «Times» para o outro lado da fronteira: «Alice Oliveira sabia de fonte certa o que iria acontecer no Norte de Angola e quando. A data do levantamento em armas contra os colonos portugueses fora definitivamente marcada pelos dirigentes do Congo e pelos bacongos angolanos, seus aliados e familiares do outro lado do rio.» Em itálico ficam as perguntas e as respostas: «Porque não tomaram as autoridades portuguesas medidas para evitar o que sabem que irá acontecer?» «Porque a guerra interessa ao Salazar!».
Não se limitando à biografia de Alice Oliveira, este livro avança para uma figura mítica que também esteve em África como Che Guevara: «instalara um foco de guerrilha nas montanhas de Baraka, com alguns revolucionários cubanos, seus camaradas, grupos sobreviventes das forças dos Simbas derrotados e mais alguns membros da tribo do chefe Kabila.» Mas reflecte, mais à frente, sobre «os guerreiros coloniais reunidos à volta da Torre de Belém» que projectam memórias «dos legionários romanos que há dois mil anos, no Campo da Morte, lamentaram a independência da Hispânia, da Lusitânia, da Judeia e da Britânia».

(Edição: Porto Editora, Capa: Manuel Pessoa - Um livro por semana 574)


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