domingo, 20 de dezembro de 2020

Escritos sobre Freud» de Fernando Pessoa

Organizado por Cláudia Souza e Nuno Ribeiro, autores da edição e do estudo introdutório do recente «A família Crosse» (Apenas Livros), este livro de 76 páginas integra múltiplos registos da leitura que Fernando Pessoa fez sobre Freud. Damos relevo apenas a alguns aspectos pois o espaço não permite mais. Primeiro uma observação sobre a crítica literária: «Grande parte da crítica moderna, desde que se intoxicou com freudismos (com ou sem Freud) é uma maneira de se tornarem inutilmente complicadas coisas por vezes simples, outras vezes já de si complicadas e que exigiam antes simplificação que outra complicação.» Depois o excerto dum poema de Álvaro de Campos datado de 17-8-1930: «A liberdade, sim, a liberdade! / A verdadeira liberdade! / Pensar sem desejos nem convicções. / Ser dono de si mesmo sem influência de romances! /Existir sem Freud nem aeroplanos, /Sem cabarets, nem na alma, nem velocidades, nem no cansaço!» Em terceiro lugar uma citação da carta a João Gaspar Simões de 11-12-1931: «Ora a meu ver (é sempre «a meu ver») o Freudismo é um sistema imperfeito, estreito e utilíssimo. É imperfeito se julgamos que nos vai dar a chave, que nenhum sistema nos pode dar, da complexidade indefinida da alma humana. É estreito se julgamos, por ele, que tudo se reduz à sexualidade pois nada se reduz a uma coisa só nem sequer na vida intra-atómica. É utilíssimo porque chamou a atenção dos psicólogos para três elementos importantíssimos na vida da alma e, portanto, na interpretação dela: o subconsciente, a sexualidade e a conversão de certos elementos psíquicos em outros por estorvo ou desvio dos originais» No fim uma citação na qual a ironia de Fernando Pessoa vem ao de cima: «A humanidade divide-se em três classes sociais verdadeiras: os criadores de arte, os apreciadores de arte e a plebe. Julgar que ter automóvel é ser feliz é o sinal distintivo do plebeu.» 

(Editora: Apenas Livros, Capa: Imagem do Espólio de Fernando Pessoa na BNP)

[Um livro por semana 657]

 

segunda-feira, 7 de dezembro de 2020

O fascismo ou «tirou a carta mas vai puxar terra para os pés»

Meu pai não tinha sandálias de vento. No ano de 1956 meu pai tinha uma bicicleta cor de cinza e eu sempre soube distinguir, na pequena descida da Várzea do Lameirão, o som inconfundível da sua roda pedaleira em descanso. Para os outros era apenas mais uma bicicleta; para mim era a bicicleta. Não havia outra. Foi nessa bicicleta que ele fez viagens repetidas até Santarém para tirar a carta de condução. Eram noventa quilómetros por semana, por estradas péssimas, debaixo de chuva, levando batatas e azeite de casa para comprar todos os dias o peixe mais barato no mercado de Santarém. Pedalou sacrifícios, suores, poupanças, vento agreste e o mais que natural desejo de fugir ao seu destino traçado de cavador. Ou como dizia o senhor padre Castelão na missa de Domingo anunciando futuros casamentos, «profissão jornaleiro». Porque viviam, fingiam que viviam, da jorna paga aos Domingos de manhã no largo maior da terra depois da missa e antes da ida à taberna. Quando meu pai voltou orgulhoso da sua carta de ligeiros, pesados e serviço público, o patrão resolveu contratar um motorista nascido numa aldeia perto da Alcobaça. Vingou-se assim do seu analfabetismo total: como não conseguiu tirar a carta de condução, pagou uma fortuna a uns aldrabões que o receberam num café das Caldas da Rainha. Saíram pelas traseiras e deixaram-no só, sem dinheiro e sem carta de condução. Foi assim, na trilogia Deus/Pátria/Autoridade, em Santa Catarina, uma pequena aldeia da Estremadura, que aprendi o sentido exacto e total da palavra fascismo. Afinal uma palavra ainda desconhecida para mim nesse já distante ano de 1956. Bastaram dez palavras assim pronunciadas: «Tirou a carta mas vai puxar terra para os pés».   

[Crónicas do Tejo 240]

(Fotografia da Colecção de JCF)