terça-feira, 25 de maio de 2021

«Contos Municipais» de António Manuel Venda

António Manuel Venda (n.1968) organiza nestes dez contos uma memória, um decálogo, uma radiografia de um determinado município no qual o insólito convive com o trivial, o vulgar com o invulgar, o estranho com o comum. Como pode ler-se na contracapa: «há um presidente, alguns vereadores, os inevitáveis técnicos, uma empregada de limpeza, um tipo da inspecção (da capital), um ouriço-cacheiro com um cargo que não é nada de deitar fora, um bruxa, o diabo, secretárias, amantes, uma toupeira de risca azul, um ladrão, uma «préfeita» e pouco mais».

No conto «Ligação umbilical» a geminação municipal é para ser feita com um afinal inexistente município do Brasil: «Claro que o município de Tupirim de Parapapá não existia mas nunca ninguém se tinha preocupado em ir comprovar como uma simples busca num atlas.»

No conto «As grandes opções do plano» trata-se de um vereador e de uma assessora descobertos por uma empregada de limpeza os dois em cima de uma mesa da sala de reuniões a «tratarem das grande opções do plano». Depois de várias peripécias, a empregada de limpeza passa a auxiliar de acção educativa e no fim acrescenta: «Tenho é ideia de que a menina estava por cima».

Em «Então o homem já explodiu ou não?» uma nova vereadora queixa-se, por exemplo, de: «no seu município havia o costume, que classificou como «medieval», de o edifício da câmara fechar no dia dos anos do presidente., mesmo que este não fosse sábado, domingo ou feriado.»

Fica uma ideia apenas aproximada do livro de 87 páginas com dez contos que sem deixarem de ser municipais como refere o título tratam acima de tudo do factor humano que marca o fio da narrativa: o município é um pequeno mundo com sua luz e sua sombra, seus conflitos e entendimentos, suas guerras e seus momentos felizes.

(Editora: Just Media, Capa e grafismo: Paulo Escrevente, Imagem da capa: António Manuel Venda, Foto do autor: João Andrés, Apoio: Junta de Freguesia de Monchique)

 [Um livro por semana 668]

terça-feira, 11 de maio de 2021

«Um piano ao fim da tarde» de Soledade Martinho Costa


Soledade Martinho Costa estreou-se na Poesia em 1973 («Reduto») e organiza as 185 páginas deste livro em nove sequências: De mim, Do amor, Da infância, Da poesia, dos poetas, Do Natal, Do país, De Lisboa, Dos outros e Quatro retratos – Ribatejo, Vila Franca de Xira, Nazaré e Sintra. O volume abre com uma citação de Federico García Lorca: «Todas as coisas têm o seu mistério e a poesia é o mistério de todas as coisas.» O poema da página 14 dá título ao livro: «O sopro da distância / Traz-me o som sem palavras /De um piano. / Fecho os olhos e tenho a certeza /De que alguém, ao longe /Toca para mim.» Entre o precário da Vida e o inevitável da Morte, só o Amor responde: «Olhar-te devagar /Reter as tuas mãos /Dizer teu nome / Beber das palavras /Com que fazes /Mudar em madrugadas /O sol-posto /Toda a distância /Incenso, timbre, gosto.»

Como Camilo Castelo Branco afirmou «A Poesia não tem presente; ou é sonho ou saudade» e aqui o passado tem vários registos. Por exemplo pessoais («Ajuda-me a aceitar o que não quero / A ter por companhia quem não conheço») ou «Não sei se eram os corpos das mulheres /Engolidos pelas grades dos portões /Se das fábricas a estridência dos apitos /Ou as sirenes dos barcos junto ao cais». Ou então dois colectivos. O da página 57 «É preciso ter sofrido /Ter sentido na alma /A mágoa /A impotência/ Para poder dizer /Que a vida nos engana /Que não é /Aquela rosa sem espinhos /Que a nossa primavera imaginou.» Ainda o da página 122, a memória dos homens que se ausentavam do Alentejo para pedir esmola: «Lembro-me /De os ver passar na minha rua /Em grupo/Grupo pequeno/ Três a quatro homens /A capa alentejana pelos ombros.» Perante os sentimentos contraditórios, amor e repulsa perante a Vida, o poema assinala na página 114: «A vida que me arrasta e me fascina /Embora disso me acuse e me arrependa.»

O futuro é uma advertência: «Se a vida não me deu /O que era justo/ Deixai-me dormir assim/ Sozinha e fria. /Agora /Não preciso mais /De companhia.» Entre o passado e o futuro, surgem as palavras e o seu projecto: «Fazer com elas uma arma / Ou uma pomba /Um lamento como um eco num poço/ A tranquilidade de um aceno/ Uma lágrima que se retrai/ Um sorriso que se esconde.» Sendo autora para a infância e juventude, não surpreende que Soledde Martinho Costa assinale os massacres de Alepo («De todas as palavras que o coração conhece /Nenhuma poderá expressar com sílabas exactas/ A visão da morte de um anjo à flor do mar») ou Shatila e Sabra: «As crianças condenadas que contestam /braços pendentes e lágrimas no rosto/ que se fale de paz e que no mundo/ sob o peso deposto nos seus ombros/ o homem se recuse a ser poeta/quando todas as crianças são poemas.»

(Editora Sarrabal, Capa: Pierre-Auguste Renoir, Revisão tipográfica: L. Baptista Coelho)  

[Um livro por semana 667]