terça-feira, 23 de julho de 2019

«A festa dos caçadores» de Henrique Manuel Bento Fialho



O mais recente livro deste autor (n.1974) tem 327 páginas e integra 119 contos curtos sendo o título retirado da página 10. «A festa dos caçadores» faz a ligação a uma das «chaves» deste livro: a Vida em si não chega e o Cinema é uma resposta ao seu vazio. Por isso o herói se esconde «atrás dos reposteiros da sala» e, depois vê filmes de cowboys, cujos heróis são conhecidos por «Jesse, Johnny, Pat, Billy ou Shane» para além do estranho, obscuro e sombrio «homem da harmónica». E surge uma conclusão: «Crescer é mais ou menos isto: o grito de um índio a dar lugar ao olhar concentrado e criminoso de uma certa noção de justiça.» Natália Correia escreveu «Nasce-se em Setúbal / Nasce-se em Pequim / Eu sou dos Açores / Mas não é assim / A gente só nasce / Quando somos nós / que temos as dores.» O autor refere três lugares para nascer («uma vila do antigo Oeste», «uma capital de aldeias divididas», «uma falésia do esquecimento») mas na página 11 propõe: «Devo ter nascido em Rio Grande.» Já sobre a morte, podemos ler na página 96 «O último desejo de meu pai foi que lhe lessem, uma a uma, As Elegias de Duíno.» e na 97 a conclusão «Morrer abençoado pelos versos de Rilke terá sido morrer de braço dado com a morte, em profunda intimidade com a morte, sem medo, sem ódio, sem solidão, sem esquecimento, com o pouco que há de eterno dentro de nós.» Entre nascer o morrer, uma citação de Wittgenstein explica e situa: «Os limites da minha linguagem significam os limites do meu mundo.» O ponto de partida das histórias é o espaço de Caldas da Rainha. Por exemplo «Na Praça da República havia um prédio maior que todos os outros» ou «Hoje morreu um homem aqui perto de casa na estrada que liga a rotunda da Fonte Luminosa à rotunda do CENCAL». Ou então «Arnaldo nasceu e foi criado numa aldeia do concelho de Rio Maior chamada Arrouquelas.» e «A Esther tinha a mania que era boa. Conheci-a numa discoteca de Alhandra.» Mas há histórias com livros («As livrarias estão atoladas de livros escritos por pessoas que não resistem à tentação de partilhar com o mundo as experiências traumáticas por que passaram.» e uma conclusão: «Se os livros são como as cerejas, os autores são como os figos: é preciso certo esforço para encontrar os melhores.» Noutra história o ponto de partida é pessoal («Tive em tempos um trabalho que me colocou em contacto com todos os interessados na feitura de um livro») tal como a conclusão: «Ao contrário do que julgam alguns neo-românticos, o melhor de se  trabalhar numa livraria está longe de ser os livros.» Uma outra tem a ver com jornalismo: «Trabalhei durante quatro meses num jornal regional ali para as bandas de Loures. A redacção ficava na Pontinha e o fecho era feito em Alcântara mas o jornal era de Loures.» Outras histórias evocam não a Cidade mas a Região («O negócio deles era o de quase toda a gente na região, a pecuária») não a Vida mas uma metáfora mais complexa da Vida: «O Campo recolheu-se com a criança nos braços. Às vezes lembra-se da Cidade mas ela nunca mais se lembrou do Campo.» Já Eça de Queirós escreveu que «as ocupações humanas tendem a explorar o homem; só essa de contar histórias se dedica amoravelmente a entretê-lo, o que tantas vezes equivale a consolá-lo»

(Editora: Abysmo, Capa: Sal Nunkachov, Revisão: Noémia Machado, Citações: Gustave Flaubert, Teixeira de Pascoaes e Lucia Berlin)

[Um livro por semana 624]

quinta-feira, 11 de julho de 2019

«Veneza pode esperar» de Rita Ferro



Depois de se estrear em 1990 com «O nó na garganta» e de ter publicado romances, crónicas, fotobiografias e literatura infantil, Rita Ferro (n.1955) estreia-se no registo diarístico com este «Veneza pode esperar». O ponto de partida está na página 168: «O meu avô António nasceu há 117 anos – como pode um homem tão moderno ter nascido no século XIX? O João Amaral, da LeYa, desafiou-me a escrever um romance biográfico sobre ele, mas ao fim de meses de tentativas falhadas substituí-o por este diário.» O diário cobre o tempo passado entre Maio e Novembro de 2013 e o título do volume está na página 217. Rita Ferro define-se como uma «sem-terra» da Política: «A esquerda enerva-me por se arrogar de superioridade moral, a direita, por se acreditar socialmente superior, os monárquicos, por acharem que validam os seus pergaminhos prescritos com este pacote suspeito: o fado e as corridas como defesas prioritárias, a religião defendida como uma tribo, o ceptro sem mão que o sustente.» Ao contrário do que escreve na página 201 a autora não «fala sozinha». Este livro de 236 páginas pode ser lido como um coro grego onde cabemos todos e ninguém fica de fora. O ponto de partida para o «coro grego» pode ser uma frase de Woody Allen em «As faces de Harry:« A frase mais bela do mundo não é «amo-te» mas «é benigno». A propósito da Vida e daquilo que viemos aqui fazer: «Uns querem ser felizes, outros aprender. Os primeiros raramente conseguem, desesperam. Os segundos não se ralam com a infelicidade, desde que instrua. O problema é quando a infelicidade nada traz.» Veja-se esta reflexão sobre uma casa que demorou onze anos a construir e que hoje (2013) é só recordação: «Já não tenho a casa nem economias para a reforma, apenas grandes recordações.» Ou esta outra sobre gatos: «Hitler não gostava de gatos, Churchill adorava-os e eu fui educada a detestá-los. A minha mãe achava que ter gatos era um sintoma de solidão desesperada e sentia tanto medo deles como das donas.» Façamos um resumo: o livro lê o diferente, o presente e o futuro. O diferente é dado pela fala de uma mulher que vive em Harare: «Cada dia é uma dádiva e este apego que vocês têm às coisas na Europa, parece-nos absurdo.» O presente tem a ver com o autismo actual: «Chega um casal de espanhóis, cada um carregando o seu iPad. Preparo-me para dizer bom dia mas nenhum contacto é estabelecido. Conversam a um palmo de distância e olham noutra direcção. Nem a vibração do telemóvel os arranca a si mesmos. Quando falo e solto uma gargalhada não movem as cabeças.» O futuro é um dos netos: «Ontem, dando banho àqueles oito quilos de futuro, pensei que a vida tem sempre razão.»
Povoam este livro memórias de Agustina Bessa Luis, Manuel da Silva Ramos, Vergílio Ferreira, Natália Correia, Arur Portela Filho, Afonso Lopes Vieira, Gabriel García Márquez ou Sebastião da Gama – entre outros. Sobre o Prémio PEN Clube atribuído ao livro «A menina é filha de quem?» percebe-se a mágoa por indevidamente o prémio associar nas notícias o seu nome ao cargo político do avô e não ao facto de o mesmo avô ter trazido a Portugal em 1935 escritores como Henri Membré, François Mauriac e Jacques Maritain (entre outros) para ajudar a criar em Portugal um PEN Clube. 
         
(Editora: Dom Quixote, Revisão: Clara Boléo, Capa: Maria Manuel Lacerda, Edição: Cecília Andrade)

[Um livro por semana 623]