sexta-feira, 28 de abril de 2017

O jornal do meu neto lembra-me o «velas do Tejo»


A minha paixão pelo jornalismo é muito antiga e não se explica: ainda agora, em tempo de vacas magras, lá continuo a comprar e a ler dois jornais por semana além de ler aqueles onde escrevo («Gazeta das Caldas» e «Correio do Ribatejo») sem esquecer «O MIRANTE» cuja camisola nunca despi e onde continuo a ter amigos. Meu neto Pedro tem cinco anos (quase seis) e avançou ontem na produção de um jornal para circular e ser lido pela família nuclear. Há ali uma mistura curiosa de televisão e de jornal em papel o que se compreende numa criança de cinco anos. Ora acontece que aquilo, o jornal do meu neto Pedro, deu-me para o sentimento e recordei de imediato o meu jornal (de parede), o «Velas do Tejo» quando na Escola Técnica de Vila Franca de Xira, ainda no Ciclo Preparatório, cheguei ao cargo de director por decisão da nossa professora de Português. Eu tinha a idade de onze anos e já sabia que no fim do Curso Geral do Comércio ia trabalhar. No Montijo, onde vivi de 1957 a 1961, uma senhora muito fina tinha dito algo como isto - «os filhos dos motoristas não vão para o Liceu». E eu não fui mesmo. O jornalismo foi também o Liceu que não tive. O meu neto Pedro e o seu jornal

são a ternura derramada que o meu olhar lhe dedica. Afinal tudo aquilo funciona: os seus cinco anos ainda não discutem a questão do pó e da posteridade. O jornalismo é ainda nos seus poucos anos de idade o esplendor do encontro, da festa e do intervalo entre o cinzento do quotidiano e o arco-íris da perenidade. Há sombras mas ninguém as vê naquele jornal onde tudo é luz, comoção e alegria. Um pequeno jornalista que ainda mal sabe escrever, veio resgatar e dar sentido ao dia do seu avô comovido pelas «notícias» e pelos desenhos ingénuos deste (quem sabe?) hoje ainda obscuro mas futuro historiador do quotidiano.

(Ilustração de Charles Dana Gibsons)

sexta-feira, 21 de abril de 2017

«Sexo 20» de Santos Fernando


A ficha de leitura começa com uma saudação à jovem editora «Sulfúria» que reedita este livro de Santos Fernando (1927-1975) antes publicado pela Editora Futura em 1975.O autor apresenta-se na página 90: «Tendo publicado tudo o que publiquei durante o regime fascista (nasci em 1927, não podia publicar noutro!) sem obter um prémio, uma bolsa ou um mandato de captura, sinto-me hoje mais livre para poder aprisionar a imagem mais tremida de um Clero que mais se benze, de uma Nobreza que mais se encolhe e de um Povo que mais ordena.» Sendo o livro datado de 5-3-1975 não admira a memória da Censura: «Urinava moral com cem por cento de hemoglobina, num alçar canino de perna contra a árvore genealógica dos tartufos» Nem é de estranhar a referência ao Estado Novo: começa por definir o tempo («uma ditadura que conseguiu manter limpas as paredes enquanto nos sujava o tecto!») para a seguir lembrar «Os mortos vivem em paz e os vivos viviam mortos» e, por fim, perguntar: «Chamará o senhor paz, um chefe de família não ouvir tiros na rua mas em casa ser bombardeado pela fome? Não apanhar na esquina uma paulada no crânio mas ter que privar-se de pensar com esse crânio ileso? Não ser algemado ou agrilhoado mas ser compelido a bater palmas ao que detesta e a não patear o que abomina?» Na página 80 surge uma referência aos burgessos da PIDE que iam apreender livros à Livraria de Luís Alves Dias em Campo de Ourique mas além dos livros levavam o poster com o actor Charlot: «Este gajo é o pior comunista de todos» - foi o comentário do labrego.   
Num livro de 1975 pode dizer-se que Santos Fernando continua a sorrir como no primeiro livro em 1957. Por isso pode escrever «A vida é uma carícia» ou «Há um santo para cada dia mas nem todos os dias são santos» e dissertar sobre o Mundo: «Procuras uma solução para o mundo? O quê, aqui? No próprio mundo? Chama-se a isso desenterrar palavras, sem glória.» Este livro é também uma viagem no tempo, no século 20 («Sexo 20») com uma memória da tropa em Tavira em 1948 (Luz, Fuzeta, Manta-Rota) onde havia um sargento arguto e um capitão que  fizera duas guerras a cavalo na secretária. O facto de ter «ressuscitado» o avô Lindolfo leva-o do sorriso («O morto não dorme, repousa») àquilo a que podemos chamar a profecia: «A menos que, cem anos depois de me enterrarem, o meu descendente, em cuja fronte haverá a localização dos planetas, se resolva por uma das alternativas: pôr sobre a lage as minhas obras ou reabilitar-me os ossos.» Tantos anos depois de 1975, a página 37 deste livro proclama uma razão: o escritor repudia «o epitáfio com que durante muitos anos o sepultaram em vida». O tempo veio ao encontro dessa profecia, este livro é a prova.   

(Editora: Sulfúria Edições, Capa. Paginação e design: Margarida Mendes)

(Um livro por semana 553)


terça-feira, 18 de abril de 2017

Saudação breve a um novo editor de Santos Fernando


É verdade - «Os grilos não cantam ao Domingo», Santos Fernando tem razão. Chama-se Vítor Rodrigues o homem que colocou toda esta máquina em movimento. Começou por ler um livro de Santos Fernando (1927-1975) e depois procurou saber mais mas para não se ficar no platónico editou mesmo o mais recente livro de Santos Fernando «Sexo 20», antes publicado pela Editorial Futura. Esta edição actual foi apresentada pelo encenador Jorge da Silva Melo e é da responsabilidade da «Sulfúria Edições» que Vítor Rodrigues compartilha com Margarida Mendes. Santos Fernando a personagem, ele mesmo, foi amigo de Luiz Pacheco e de Ferro Rodrigues (pai do Féfé), foi o homem do escritório dos Adubos Potássicos, Avenida da Liberdade nº 3 ali por cima do Café Paladium onde muita gente ganhou a vida a dar explicações e a jogar bilhar. A janela do escritório de Santos Fernando dava para o Elevador da Glória. É esse elevador que deve transportar de novo não Santos Fernando em pessoa mas a sua obra que eu comecei a admirar em 1963 quando vivia em Vila Franca de Xira e comprava todos os Domingos à noite o «Diário Popular» com a sua habitual crónica «Os grilos não cantam ao Domingo». Espero escrever sobre o livro «Sexo 20» noutra circunstância mas uma ocasião destas não se pode perder. Num país de analfabetos que conhece Bulhão Pato pelas amêijoas e Bocage pelas anedotas é salutar esta loucura de editar um livro novo de Santos Fernando 42 anos depois de 1975. Ele nasceu em 1927 em pleno Estado Novo (ou Ditadura Militar) e morre de modo inesperado em 1975 em pleno PREC. Com o elevador da Glória talvez seja possível que o nome de Santos Fernando entre mesmo no livro «Quem é quem na Literatura Portuguesa» O ano de 1927 fica mais pobre com a sua ausência.

(Vinte Linhas 1685)


domingo, 9 de abril de 2017

Por detrás dos sorrisos uma ribeira afluente do Ocresa



A fotografia pode ter sido tirada em 1945, talvez Setembro, mês do início das vindimas. Não se sabe nem isso é agora muito importante. Uma mulher-menina e uma menina-mulher celebram a festa das colheitas, o esplendor dos frutos, a apoteose da abundância. O lugar tem um nome (Braçal) e lá mais para trás dos sorrisos há uma ribeira que no Verão se torna caminho mas no Inverno leva água da Serra até ao Rio Ocresa. Para a direita da fotografia, a ribeira que vem da Sarzedinha alcança a Amoreira e o Casalinho nos Invernos de chuva, nevoeiro e tempestades. No tempo da fotografia tudo é diferente. O calor e os dias maiores abrem o sorriso de quem celebra a amizade num retrato, coisa rara nesse tempo de «seis por nove» a preto e branco. A fotografia é uma teimosa negação do tempo e do seu desgaste quotidiano. A mulher -menina do lado esquerdo saiu em 2003 dos palcos onde a febre, a pressa e o furor de ter sempre a palavra obrigam a uma atenção permanente. A menina-mulher do lado direito da fotografia permanece em 2017 embora tenha mudado o timbre, o registo e a extensão da voz. Tudo se modifica todos os dias de modo seguro, lento e inapelável. O sorriso em duplicado da mulher e da menina resiste na fotografia e chega a 2017 com a frescura de 1945 quando toda a esperança pessoal do Mundo tinha a sua própria legitimidade. Duzentos anos depois do primeiro livro (1817) que sistematiza em termos clínicos a Doença de Parkinson, ninguém quer sair da fotografia. O sorriso em duplicado povoa uma paisagem de onde sai uma ribeira a caminho do Ocresa. Nada mais é preciso para que o tempo seja inteiro, completo e feliz. A fotografia a tudo resiste – ao tempo, ao desgaste, à erosão dos dias. Até hoje há uma luz teimosa a dizer sempre que não. Ao esquecimento que organiza as suas emboscadas.

(Crónicas do Tejo 74 - fotografia de autor desconhecido)

quarta-feira, 5 de abril de 2017

«A revolta das palavras» (até em São João de Alporão)


Nota prévia - «A revolta das palavras» (Editora Bertrand) é o título de um belo livro de Maria Ondina Braga. Eu viajo todos os dias numa carruagem do Metropolitano onde está escrito «Marques Pombal» em vez de Marquês de Pombal. Depois regresso ao fim da tarde num comboio onde está escrito «Melecas» em vez de Meleças. Vejo uma autora universitária a escrever «flexa» em vez de flecha num livro sobre quadras. José Saramago no seu «Viagem a Portugal» chama São João de «Alpalhão» à igreja de São João de Alporão em Santarém. Adiante. Todos estamos rodeados de gralhas. Nada a fazer. Gostava de aproveitar o pretexto para falar do livro de Maria Ondina Braga e numa altura em que é tão fácil publicar um livro deixo esta reflexão intitulada «Livros por abrir»; vejamos um excerto: «Livros fechados - as pessoas. Almas isoladas, tímidas (orgulhosas?), passam por nós todos os dias, moram à nossa beira, jamais as conheceremos. Quem é ele? Quem sou eu? Que temos lido uns nos outros? Que temos tentado ler? Recordo-lhe os olhos claros, a boca dura, o ar ensimesmado. A capa. O título. O formato. Mas a alma? O conteúdo? Livros que nenhumas mãos folhearam. Intactos e já passados, já caducos. Promessas frustradas. Corpos virgens que os anos ironicamente violaram de esquecimento. Um dia, contudo, o livro por abrir saiu do ventre da tipografia cheiroso de tinta fresca. O seu criador apalpou-lhe com amor a brochura de cartolina, de papel couché, desdobrou-lhe as orelhas, separou-lhe delicadamente as folhas, enterneceu-se diante dele. Um dia, nascimento e noivado ao mesmo tempo. Algo secreto, porém, vagamente vergonhoso, com qualquer coisa de incesto. Nascimento, noivado e morte. Seu destino era correr mundo, suscitar paixões, entregar-se a todos. Pessoas como livros: homens e mulheres ignorados, apagados, sombras.»

(Crónicas do Tejo 76 - fotografia de autor desconhecido)

segunda-feira, 3 de abril de 2017

O eléctrico «28» debruçado sobre o Rio Tejo


(dedicado a Thomas Francisco Sutherland em Londres)

Este é o meu eléctrico desde 1966 quando comecei a trabalhar no BPA da Rua Áurea nº 110 e morava na Travessa do Caldeira, ali à Calçada do Combro. Nesse tempo o «28» subia a Rua Augusta e descia a Rua Áurea à noite e nos fins-de-semana. Isso permitia-me ir ao cinema Estúdio 444, apanhar o Metro na estação do Campo Pequeno, sair na do Rossio e esperar o «28» ao pé das floristas do Largo. Outro dia arrancaram os carris ds Rua Áurea e foi para mim doloroso porque aqueles ferros eram parte da minha memória viva tantos anos depois daquelas tão antigas viagens.
Anos depois foi o meu filho Filipe que nele viajou com os seus mais chegados amigos (os Tiagos e o Hélder) no tempo da Escola Secundária David Mourão-Ferreira e mais tarde quando a Escola Veiga Beirão mudou de nome. Tinha sido ela a minha Escola em 1971 quando, graças ao trabalho do Poeta Manuel Simões, nosso professor, os meus primeiros poemas foram editados e saíram num livrinho colectivo com o título de «Lugar de Ser».
O meu neto Thomas chama-lhe «my tram» (o meu eléctrico) e fica surpreso quando no Largo das Duas Igrejas vê passar o «28» que vem dos Prazeres para a Graça. Admira-se em voz alta: «look, there is another!». Ou seja, «olha afinal há outro!». Claro que há outras memórias do mesmo eléctrico. Eu próprio, já avô, fui muitas vezes no mesmo «28» à Voz do Operário ali na Graça buscar o meu neto Pedro o fim da tarde.  Este «28» é afinal todos os eléctricos que transportam passageiros e memórias, eles são uma cápsula do tempo feita de vidro e de madeira, feita de ferro e de napa – que os bancos de palhinha já não existem. Só a memória, só a recordação, só o sentimento.

(Crónicas do Tejo - Fotografia de autor desconhecido)