Nota
prévia - «A revolta das palavras» (Editora Bertrand) é o título de um belo
livro de Maria Ondina Braga. Eu viajo todos os dias numa carruagem do Metropolitano onde está escrito «Marques Pombal» em
vez de Marquês de Pombal. Depois regresso
ao fim da tarde num comboio onde está escrito «Melecas» em vez de Meleças. Vejo uma autora universitária a escrever
«flexa» em vez de flecha num livro sobre
quadras. José Saramago no seu «Viagem a
Portugal» chama São João de «Alpalhão» à igreja de São João de Alporão em Santarém. Adiante. Todos estamos rodeados
de gralhas. Nada a fazer. Gostava de
aproveitar o pretexto para falar do livro de Maria Ondina Braga e numa altura em que é tão fácil publicar um
livro deixo esta reflexão intitulada
«Livros por abrir»; vejamos um excerto: «Livros fechados - as pessoas. Almas isoladas, tímidas (orgulhosas?),
passam por nós todos os dias, moram à
nossa beira, jamais as conheceremos. Quem é ele? Quem sou eu? Que temos lido uns nos outros? Que temos tentado ler?
Recordo-lhe os olhos claros, a boca dura, o ar
ensimesmado. A capa. O título. O formato.
Mas a alma? O conteúdo? Livros que nenhumas mãos folhearam. Intactos e já passados, já caducos. Promessas frustradas.
Corpos virgens que os anos ironicamente
violaram de esquecimento. Um dia, contudo, o
livro por abrir saiu do ventre da tipografia cheiroso de tinta fresca. O
seu criador apalpou-lhe com amor a brochura de
cartolina, de papel couché, desdobrou-lhe
as orelhas, separou-lhe delicadamente as folhas, enterneceu-se diante dele. Um dia, nascimento e noivado ao mesmo tempo.
Algo secreto, porém, vagamente vergonhoso, com
qualquer coisa de incesto. Nascimento,
noivado e morte. Seu destino era correr mundo, suscitar paixões, entregar-se a todos. Pessoas como livros:
homens e mulheres ignorados, apagados,
sombras.»
(Crónicas do Tejo 76 - fotografia de autor desconhecido)
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