domingo, 22 de novembro de 2020

Saudação breve a Ana Carolina


Eu te saúdo oh! Ana Carolina, menina pequenina envolta em cor-de-rosa numa alcofa de ternura entre o olhar doce da tua mãe e a força do teu avô, entre o frio da tarde a anunciar hipóteses de chuva e a minha pressa em te conhecer. Tu não sabes mas minutos depois de te ter conhecido, eu comprei uma embalagem de beijinhos a fiz-me à estrada a caminho de Lisboa. Tu não sabes mas nessa tarde choveu muito. As terras por fim encharcadas fizeram deslizar essa água fértil para as valetas. Passei pelas Gaeiras, pela Ponte Seca, pela Sancheira Grande, pela Palhoça, pelos Carreiros e pelo Cercal, sempre debaixo de uma chuva que nos anunciava e nos trazia de facto a fertilidade. E tu dormias descansada nos braços do teu avô dando à tua mãe um pouco de descanso nas rotinas e nas tarefas diárias perante um recém-nascido. Tu não sabes ainda mas a fertilidade começa pela água e eu já não via chover assim desde 2003. Aquilo a que chamamos «vida» começa com um momento que se define como «o rebentar das águas». Pequena e indefesa, oh! Ana Carolina tu não sabes como gostei de te conhecer e de fazer esta viagem entre as Caldas da Rainha onde ficaste e Lisboa onde te escrevo esta saudação breve e emocionada. Vejo, naquela chuva que caiu poucos minutos depois de te conhecer, um anúncio de vida e de alegria contra a aridez hostil da seca do ano que passou. As valetas da estrada velha entre as Caldas e Lisboa ficaram cheias de água nessa tarde em que te vi pela primeira vez. E os meus olhos cansados ficaram com uma neblina de júbilo. Graças a ti oh! Ana Carolina e à tua alegria cor-de-rosa dentro de uma alcofa de ternura. Porque o teu rosto envolto em rosa foi uma presença efectiva no espelho do meu velho Citroen, cinzento e cansado. E cheirava a maçãs no pequeno habitáculo entre a pressão da chuva e o negro asfalto da estrada velha das Caldas até ao Cercal.      

[Crónicas do Tejo 239]

(Óleo de Gary Melchers)


quinta-feira, 5 de novembro de 2020

O cais dos soldados em Londres


Estamos em Blackheath. Na Morden Road passamos à porta da casa do compositor Charles Gounod que aqui viveu nos tempos da guerra entre a França e a Prússia. Vinha à tarde no comboio de Charing Cross e alugava uma carruagem à porta da estação dos comboios. Mais à frente, no planalto, ficamos a saber que a actual A2, um dos itinerários principais de Inglaterra foi, em tempos recuados, a estrada romana para Canterbury. Henrique VIII, entre pompa e circunstância, aqui recebeu Ana de Cléves como futura esposa, no ano de 1540. Por sua vez Wat Tyler juntou em 1381 uma assembleia de camponeses revoltados nesta mesma estrada. Hoje o coração desta imensidão verde recebe mães com crianças, passeadores de cães, papagaios de papel, carrinhos de choque e jogatanas intermináveis de futebol –muda aos seis, acaba aos doze. Os circos, tal como as caravanas de ciganos, já são mais raros. Foi neste relvado sem fim à vista que nasceram alguns clubes de rugby e de futebol. Um deles, o Blackheath Football Club, fez parte dos pioneiros que, em 1863, na Freemason´s Tavern, criaram as leis do moderno futebol, tornando a sua prática independente do rugby. Cruzando em diagonal o Greenwich Royal Park, cedo chegamos à zona do mercado a funcionar em grande aos sábados e domingos. Muito perto das antigas cozinhas onde os velhos marinheiros, sem família e sem dinheiro, vinham às sopas reais, surgem as mais inesperadas lojas. De antiguidades, lhes chamamos em Portugal. São coisas ditas efémeras: mapas, cartazes, postais ilustrados, livros antigos, fotografias, discos LP e EP, pequenos móveis úteis às costureiras antigas, no tempo das libras se dividirem em xelins e em dinheiros. Nessa rua descubro o conceito activo e prático de fundo editorial: compram-se cinco livros por cinco libras, cada livro mais barato do que uma viagem de autocarro. Vejamos um conjunto: uma história breve do Jazz, um livro da Penguin sobre pássaros, uma biografia de Frank Sinatra, a vida do guarda-redes mais lendário do vizinho Charlton Athletic e um guia da Londres, bairro a bairro, de Barnet e Merton, de Ealing a Lewisham.  Mas apetece voltar atrás como se o efémero se pudesse suspender e transformar em permanente, algures numa estante. Não resisti e trouxe uma gravura mostrando Portugal como um leão e Espanha como uma mulher. Gravura antiga, percebe-se pelas bandeiras. Século XIX, sem dúvida. Há lojas de roupa em segunda mão, boa e barata, devidamente limpa e reclassificada que as pessoas já se habituaram a procurar uma vez por semana para ver as novidades. Os lucros dessas lojas revertem para apoio da investigação e da luta contra o cancro. Os ingleses de aqui ao pé da porta gostam de conservar os objectos do passado. Em Blackheath, Age Exchange é o nome desta loja especial na qual se reproduz o ambiente de um estabelecimento comercial dos anos 40, com balcão, balanças e moedas da época da II Guerra Mundial. Já passei férias em Southwark, na City (Barbican) e em Blackheath; faço sempre aproximações a Lisboa. A Southwark chamava Terreiro do Trigo, ao Barbican chamava Gulbenkian e a Blackheath chamo Restelo. No primeiro caso o rio ali mesmo à beira, no segundo os jardins e os prédios com o brutalismo dos anos 60 e 70, no terceiro caso as grandes avenidas com casas bonitas e árvores frondosas. Há uma comum curiosidade. Entre o Terreiro do Trigo e Santa Apolónia havia em temos o Cais dos Soldados. Tal como em Greewich havia o cais de onde partiam jovens marinheiros, soldados da Rainha, os mesmos que anos mais tarde, sem família e sem dinheiro, terão a sua sopa diária nos edifícios da Escola Naval. É dessa rua, do outro lado dessa rua de Greenwich que trago como memória de uma memória, a gravura onde Portugal é um leão e a Espanha uma mulher.