domingo, 28 de novembro de 2021

«O tempo de todas as incertezas» de Álvaro Ribeiro

Álvaro Ribeiro (n.1946) assina este livro de 605 páginas no qual descreve o seu trajecto pessoal a partir da inspecção em Almeirim e da incorporação nas fileiras do Exército em 15-7-1968 nas Caldas da Rainha, passando por Vendas Novas, Tancos, Vila Nova de Gaia e Espinho antes da partida para Moçambique no navio «Vera Cruz».

O Ministro do Exército falava assim em 1961: «Vamos para combater, não contra seres humanos mas contra feras e selvagens. Vamos enfrentar terroristas que devem ser abatidos como animas selvagens.» O Episcopado Português tinha feito uma advertência antes do início das hostilidades em Angola: «Nesta hora em que o Ocidente parece ter perdido a consciência de si mesmo, Portugal é consciente da sua missão evangelizadora e civilizadora e sofre ao ver que ela não é compreendida nem apreciada e até se tenta contestar-lha.» Dito de outra maneira pode ler-se sobre os Portugueses na página 21: «quanto mais distraídos e analfabetos mais controlável era a situação por parte do regime.» Mais à frente a página 27 indica: «Embarcar para a guerra parecia que nada tinha de dramático, tal a regularidade dom que acontecia. Uns chegavam, outros partiam. Era assim o viver das pessoas que se moldavam aos acontecimentos como se não houvesse alternativas. Elas existiam mas não deixavam de ser também dramáticas e traumatizantes.»

Ao lado e em paralelo com o percurso pessoal, o autor integra os nomes dos oficiais, sargentos e praças com os quais se cruzou nas diversas fases (inspecção, recruta, especialidade, formação de batalhão, embarque, viagem, operações no mato, regresso) e torna deste modo este livro num depoimento no plural, uma espécie de cartografia colectiva onde todos os camaradas de armas cabem e se integram.

O livro termina com uma advertência do autor: «As consequências da guerra na sociedade portuguesa constituem um icebergue cuja verdadeira dimensão e carcterísticas ainda ninguém cuidou de avaliar. Entretanto ele flutua à deriva.»

(Editora: Rosmaninho, Capa: Fernando Veríssimo, Colecção: Documentos para a nossa História)

[Um livro por semana 676]

 

domingo, 7 de novembro de 2021

«Os dedos trans-lúcidos do escrevinhador» de Adalberto Alves

Adalberto Alves (n.1939) celebra 40 anos de vida literária com este livro de 94 páginas cujo título vem do poema da página 81: «Os dedos trans-lúcidos do escrevinhador /saberão do poema aquilo que o peixe/ sabe da água em que vai nadando? /ah, mas o peixe ignora tanto a água /como eu o ar transparente que respiro.» Um dos temas inevitáveis é o Balanço: «Não sei o que é mais doloroso/se o veleiro das palavras desgastadas/se o pulsar desgastante do silêncio…» Outro tema óbvio é o da Vida: «sobre o coração eu tenho um nome/com letras, pesponto do mistério/é nome que os homens difamaram / com perfídias geladas e sombrias / a cada batida certa e compassada /tal nome repetido num sussurro /mal posso ouvi-lo; não consigo encostar o meu ouvido ao peito /mas esse nome, eu sei, é VIDA.»

O poeta, ele mesmo, inscreve-se no poema («Fui a todas nunca me poupei /àquilo que a vida me ofereceu») tal como já se tinha inscrito n página 17 («alguém me perguntou quem és ? /respondi: não sei dizer ao certo») e na página 53: «”ao mundo uma carta escrevo” / a carta que ninguém leu /fala de pena e de enlevo/e essa carta sou eu.» A ironia também está presente no poema da página 28: «… uma gorda ratazana /e acabou num cano de esgoto/apesar de nunca se enganar/e raramente ter dúvidas.»

A única possível resposta à Morte é o Amor («Imaculado e santo seja o Amor») como se lê na página 19: «o alfabeto do Amor é bem curto/ mas serve p´ra dizer o que se queira».

Entre o precário da Vida e o frágil do Amor, só a Natureza continua: «a Natureza jamais pára: fervilha, fervilha e desemboca /cumprindo o plano estabelecido, /nem que seja como surda ou cega ou muda, /no alto dos ares ou no fundo dos mares.»

(Editora: Labirinto, Paginação: Marta Toscano, Prefácio: Ronaldo Cagiano, Capa: Daniel Gonçalves, Coordenação: Víctor Oliveira Mateus e Maria João Cabrita)           

[Um livro por semana 675]