terça-feira, 30 de junho de 2020

Dissertação para a voz de Maria Flor Pedroso



Quase nada sei das origens da tua voz, seu timbre e sua altura, seu calor e sua extensão, seu peso e seu rigor. Chamo-lhe calorosa pois sinto nela o calor que sacode o dia, aquece o pão, ferve o leite e convida ao pequeno almoço com ovos e bacon. Quando ouço a tua voz sinto nela o rumor ritmado das ondas de todas as praias e as melodias de todas as orquestras. Melodia, harmonia, contraponto – o que quer que seja musical nas manhãs de Rádio. Porque toda a minha infância cabe numa telefonia Schaub Lorenz. O senhor Messias, o Compadre Alentejano, o Teatro das Comédias, o romance da hora do almoço, o telefone toca do Matos Maia. E também os discos pedidos dos doentinhos dos sanatórios – Serviço 6, Sala 2, Cama 4. Sem esquecer os anúncios: «Candeeiros bem bonitos / modernos, originais / compre-os na Rádio Vitória / não se preocupe mais.» A tua voz é clarim, bandeira, estandarte.  Primeiro avisa, depois convoca, de seguida vem guiar os ouvintes como numa antiga romaria entre o sol que brilha e o pó que não assenta. Havia a Rádio Graça, a Rádio Peninsular, o Clube Radiofónico de Portugal e a Rádio Voz de Lisboa. A Voz de Lisboa era essa mistura feliz do vagar dos eléctricos e da pressa na espuma dos rebocadores, o vagar do sinaleiro e a pressa das fragatas do outro lado do Tejo. Vivi no Montijo entre 1957 e 1961; por isso ser fragateiro era um dos meus destinos possíveis. Aos Domingos à tarde os eléctricos levavam bandeiras de estádios: Luz, Restelo, Tapadinha, Lumiar. À noite saía nos jornais o resumo da jornada com a classificação e os melhores marcadores. Os ardinas voavam nas Escadinhas do Duque. Era a voz de Lisboa. Quase nada sei das origens da tua voz. Sei que nela passa o coração do Mundo. As sombras e as luzes, as sementeiras e as colheitas, a terra e o mar. Tudo cabe na tua voz que não termina e que continua. 
      
[Crónicas do Tejo 117]

quarta-feira, 24 de junho de 2020

«Resposta a Italo Calvino» de Carlos Nogueira



Nota prévia – Este livro recebeu o Prémio Jacinto do Prado Coelho (Associação Portuguesa de Críticos Literários) atribuído por um júri que integrava Ana Mafalda Leite, Liberto Cruz e Miguel Real. O galardão distinguiu em anos anteriores ensaístas como Eduardo Lourenço, Óscar Lopes, Vítor Manuel Aguiar e Silva, Carlos Reis, Helena Buescu, Clara Rocha ou Maria Alzira Seixo. Num livro publicado em 1999 Jorge Luís Borges escreveu sobre a importância do autor de «Os Possessos»: «Como a descoberta do amor, como a descoberta do mar, a descoberta de Dostoievki marca uma data memorável na nossa vida.» O ponto de partida deste volume está na página 14: «Publico este livro porque quero partilhar as minhas experiências de leitura de alguns textos de literatura dirigida às crianças e aos jovens (e aos adultos que são sempre também destinatários privilegiados desta literatura).» E continua: «Faço-o na expectativa de que o contacto com algumas partes da minha «Resposta a Italo Calvino» suscite em alguns leitores a vontade de ler ou reler os Grimm, Johanna Spyri, J.M. Barrie, Shel Silverstein, Sophia de Mello Breyner Andresen, José Saramago, Manuel António Pina, entre outros.»
A expressão «escrever é lavrar» remete para «O aprendiz de feiticeiro» de Carlos de Oliveira na morte do poeta Afonso Duarte: «Escrever é lavrar e lavrar numa terra de camponeses e escritores abandonados quer dizer sacrifício, penitência, alma de ferro.»
Resumir um livro de 422 páginas em 20 linhas de A4 é impossível mas fica o convite à leitura destes «clássicos da Literatura» organizado em 15 capítulos desde Gil Vicente a Alexandre O´Neill e com um índice onomástico muito útil no seu final. Depois de «São feitas de palavras as palavras» de 2017 aqui está um convite irrecusável de Carlos Nogueira para reler os clássicos.

(Editora: Livraria Lello Porto, Design: Cátia Vidinhas)

[Um livro por semana 646]

quinta-feira, 18 de junho de 2020

«O que eu ouvi na barrica das maçãs – crónicas» de Mário de Carvalho



Mário de Carvalho (n.1944) estreou-se em 1981 com «Contos da Sétima Esfera» e neste seu livro de 254 páginas junta crónicas publicadas entre 1987 e 1996 no «Jornal de Letras» e no «Público». As crónicas são divididas em quatro secções (Divagando, Intervindo, Oficiando e Rememorando) correspondendo a várias facetas do autor: ficcionista, cidadão, comunicador e memorialista. O título é uma homenagem à Literatura e vem do livro «A ilha do tesouro» de Robert Louis Stevenson. Francisco Belard refere no Prefácio «Mário de Carvalho e eu somos da mesma geração, o que explica várias afinidades (…) as afinidades emergem em muitas destas crónicas ou noutras intervenções públicas que teve e tem, a par dos livros.» Uma das crónicas indica 35 espécies de escritores desde o solene, o ansioso e o paranóico até ao erudito, ao obscuro e ao possesso mas sem esquecer o cronista: «Perora sobre tudo, numa olímpica omnisciência. Está convencido que tem muita graça e de que influi profundamente nos destinos do país. Imagina os governantes a lê-lo e a dizerem às mulheres (ou aos maridos): «Tem graça! Olha que este rapaz tem carradas de razão, vou passar a fazer como ele diz». Às vezes é feroz , faz ameaças: «Ah, sim? Então eu desanco-o na minha crónica!» No entanto fica um pouco perplexo se os amigos exclamam jovialmente: «Lá li a tua coisa no Diário Popular; aquela dos rinocerontes, muito gira – quando ele tinha escrito umas considerações hábeis sobre os chalés suíços para o Diário de Notícias.» O autor disserta sobre a crónica em si na página 42: «O leitor conta com uma opinião de actualidade, fluente, cívica, arguta e isenta de complicações.» Sobre Fernando Pessoa surge uma tese: «Na verdade quem morreu em 30 de Novembro de 1935 no Hospital de São Luís dos Franceses não foi Fernando Pessoa mas um vagabundo galego, muito esquálido, contratado para o efeito, que se chamava Paco Ximenez Albarrace. Quanto ao verdadeiro Fernando Pessoa, tinha-se esgueirado de noite, à capucha, disfarçado de freira carmelita para só voltar a ser visto mais tarde, na guerra de Espanha.» O acto de escrever («Não me recordo de uma única indignidade removida por um par de versos») tem as suas ambições e os seus limites: «Na parte que me toca estou convencido de que o que leva alguém a escrever é esta possibilidade de mentir à vontade sem agravo dos bons costumes nem do ordenamento jurídico.» Uma ideia para Portugal está na página 64: «Entre o torrãozinho de açúcar e a choldra lá tem que se mover o cidadão sensato e com noção das proporções.» Ou na página 83: «Somos muito vulneráveis. Não temos reservas nem defesas. Não há nichos, não há abrigos, não há resistências, não há territórios como outros têm.»  Noutra crónica lembra Joaquim Velez, João Camilo e Diniz Miranda na  prisão para concluir «ao lado do portugalinho dos sacanas a ferver de mercenários, oportunistas, videirinhos e minúsculos troca-tintas, também existe gente da têmpera daqueles em que falei.» Mário de Carvalho adverte a sorrir: «Terrível palavra é um «ego». Lido na natural direitura, apenas lhe falece um «c» para não ser «cego» e faz uma previsão em 1993 que se confirma em 2019: «…pode criar-se o clima propício a que um belo dia, meia dúzia de tipos (talvez mesmo quatro) em qualquer cervejaria de qualquer cidade de província…»

(Editora: Porto Editora, Prefácio: Francisco Belard)

[Um livro por semana 630]

terça-feira, 9 de junho de 2020

Saudação breve a Ana Carolina


Eu te saúdo oh! Ana Carolina, menina pequenina envolta em cor-de-rosa numa alcofa de ternura entre o olhar doce da tua mãe e a força do teu avô, entre o frio da tarde a anunciar hipóteses de chuva e a minha pressa em te conhecer. Tu não sabes mas minutos depois de te ter conhecido, eu comprei uma embalagem de beijinhos a fiz-me à estrada a caminho de Lisboa. Tu não sabes mas nessa tarde choveu muito. As terras por fim encharcadas fizeram deslizar essa água fértil para as valetas. Passei pelas Gaeiras, pela Ponte Seca, pela Sancheira Grande, pela Palhoça, pelos Carreiros e pelo Cercal, sempre debaixo de uma chuva que nos anunciava e nos trazia de facto a fertilidade. E tu dormias descansada nos braços do teu avô dando à tua mãe um pouco de descanso nas rotinas e nas tarefas diárias perante um recém-nascido. Tu não sabes ainda mas a fertilidade começa pela água e eu já não via chover assim desde 2003. Aquilo a que chamamos «vida» começa com um momento que se define como «o rebentar das águas». Pequena e indefesa, oh! Ana Carolina tu não sabes como gostei de te conhecer e de fazer esta viagem entre as Caldas da Rainha onde ficaste e Lisboa onde te escrevo esta saudação breve e emocionada. Vejo, naquela chuva que caiu poucos minutos depois de te conhecer, um anúncio de vida e de alegrai contra a aridez hostil da seca do ano que passou. As valetas da estrada velha entre as Caldas e Lisboa ficaram cheias de água nessa tarde em que te vi pela primeira vez. E os meus olhos cansados ficaram com uma neblina de júbilo. Graças a ti oh! Ana Carolina e à tua alegria cor-de-rosa dentro de uma alcofa de ternura. Porque o teu rosto envolto em rosa foi uma presença efectiva no espelho do meu velho Citroen, cinzento e cansado. E cheirava a maçãs no pequeno habitáculo entre a pressão da chuva e o negro asfalto da estrada velha das Caldas até ao Cercal.      

[Crónicas do Tejo 239]

(Óleo de Gary Melchers)