domingo, 30 de junho de 2019

«Jocasta» e «Dizimar» de Paulo da Costa Domingos



A título excepcional esta semana a rubrica «um livro da semana» refere-se a dois. Trata-se de juntar na mesma ficha de leitura dois livros de poemas de Paulo da Costa Domingos (n.1953); o primeiro de 15 páginas e o segundo de 18. Na intitulada «Nota marginal» de «Jocasta» lê-se: «Jocasta foi a autêntica figura subversora de uma ordem, não meramente no que é político, mas invertida, a rasgar pelo ataque radical à estrutura da família, enquanto átomo do corpo social.»  O poema «Jocasta» na página 7 abre com um sonho («Jocasta humedece um sonho») e conclui com um pesadelo: «Do menos não cortei orelhas / a pretos, posso mesmo dizer / como vim para suavizar / a ferida infecta do Mundo.» Um pouco à maneira de Vitor Matos e Sá (1927-1975) o Mundo é uma «companhia violenta» e o poema final («Funerária») é um balanço (embora provisório) de um trajecto entre a vida e a morte: «Sozinha: como eterna deusa, / onde há morte e não há morte / onde há quem adormeça, se bem que / do lado oposto do espelho a que / ninguém acode apesar de carpir / avonde, e onde impera o luto / depois da luta, depois do bote final; / sozinha: marcada pela devastação pessoal, num campo deserto / há muito da honra e do sentir / alto se ouve ainda o alfabeto / e, muda, a vegetação fecha-se.»
Em «Dizimar» o ponto de partida é um lugar («Este lugar existe, fica / onde as soluções novas / se assemelham ao deserto / dos antigos problemas.») mas não um lugar qualquer: «o Vale das Artes, o Jardim dos Poetas.» O Poeta que recusa o Jardim dos Poetas é um rebelde: «Um rebelde. Recusa-se / ao consumo: apenas / quer ser detentor dos meios de produção / chega de cinzeiros.»Sobre os efeitos da sua proclamação o Poeta não tem dúvidas: «Garantidamente cinquenta ou sessenta / tomarão conhecimento.» Depois de rejeitar a «senhora frígida» («Seu nome é Autoritária») que pode ser lida como junção de duas palavras (Autoridade e Tributária) o Poeta conclui: «Fatiga a luta e ainda / não chegou o pavor./ Certo. Teremos bebido / muito menos que mentiras / dizem os poeta durante / uma greve selvagem.»

(Jocasta – Editora Frenesi, Capa s/foto de Rui Baião, Dizimar – Editora Frenesi, Capa de Carlos Ferreiro)  
       
[Um livro por semana 622]

terça-feira, 18 de junho de 2019

«O sábio de Bandiagara – Esconjuros. Ebriedades e Ofícios» de Zetho Cunha Gonçalves



Zetho Cunha Gonçalves (n.1960) explica o ponto de partida deste livro de 92 páginas: «Este é um livro de versões, transversões e reconversões de poemas, provérbios, adivinhas, frases soltas e outros materiais potencialmente poéticos, vindos de outras línguas e civilizações – sobretudo africanas e latino-americanas – aqui transplantados para língua portuguesa.» Depois de lembrar Octavio Paz («Sabemos que os astecas recitavam, cantavam e dançavam os seus poemas») o autor, nascido no Huambo (ao tempo Nova Lisboa), regista as semelhanças entre os astecas e os povos de toda a África subsariana e os poemas que lidam com «as cosmogonias, os poemas rituais, os cantos de trabalho, de ninar, de celebração, de entronização e de óbito». Por isso mesmo pode concluir: «não há Poema digno desse nome que não advenha de uma tradição que em si mesmo cria e nela se transmuda inaugural, pela voz criada, impositiva e única, inconfundível, do seu Autor.»
Um dos poemas que melhor espelha a intertextualidade pode ser o da página 12: «Se queres saber quem sou / Se queres que te ensine aquilo que sei / Deixa de ser um pouco daquilo que és / E esquece tudo quanto sabes.»
Entre a Vida (breve) e a Morte (inevitável) só o Amor pode salvar: «Os tempestuosos quinze anos / Os vinte turbulentos / Os trinta sedentos / Os destrambelhados quarenta / Os erráticos cinquenta / Os avançados sessenta / Os serenos setenta / Os exaustos oitenta / Os anestesiados noventa / Os humildes cem anos!»
A vida pode ser uma viagem mas há sempre a adversativa como no poema da página 40: («Embora eu tenha chegado ao fim da viagem / Nunca senti que tivesse chegado») e a única certeza sobre a Vida está na mulher: «Em cada mulher começa o mundo /e o que dizeis tão serenamente /no tom dos graves sussurros /que recordo ter aprendido de minha mãe / os segredos da vossa indagação.»
Perante o desafio do Mundo, o verdadeiro artista, o que não é torpe, tem uma ética na sua prática: «O verdadeiro artista tudo retira do seu coração; / trablha com deleite, faz tudo com calma, com prudência / age como um tolteca, compõe coisas, trabalha habilmente, cria / transforma as coisas, aticula-as, faz com que se ajustem.»
Em conclusão podemos proclamar como o poema da página 81: «Retém o que acabaste de aprender / tu que aprecias sobremaneira o conhecimento /e sabes que o saber vale mais que o âmbar / muito mais que o coral e até mesmo mais que o ouro fino.»

(Editora: Maldoror, Capa e Grafismo: Luís Henriques, Paginação: Diogo Vaz Pinto, Revisão: Andreia Baleiras)

[Um livro por semana 621]

segunda-feira, 10 de junho de 2019

«O Bairro dos Jornais» de Paulo Martins



Titular da carteira profissional de jornalista nº 4149, eu estou no Bairro Alto desde 1977. O primeiro jornal onde escrevi foi o «Diário Popular» em 1978 na Rua Luz Soriano nº 67 e o segundo foi «A Bola» em 1979 na Travessa da Queimada nº 23. O meu primeiro livro («Iniciais») foi publicado em 1981 pela Moraes Editora na Rua de O Século nº 34, antiga redacção de «A Capital».
Nada neste livro de Paulo Martins (n.1962) me é, nem pode ser, indiferente. Desde logo a citação de Norberto de Araújo, ilustre jornalista: «Os jornais, a fogueira que arde e que queima – ilumina daqui a cidade e, nas suas faúlhas que desencontrados ventos nem sempre levam bem, aquece em redor.» Há nos jornais uma mistura de pessoal e de público: «Por isso os apelidos Coelho (Diário de Notícias), Silva Graça e Pereira da Rosa (O Século), Burnay e Bordalo Pinheiro (Jornal do Comércio) Vieira Pinto e Ruella Ramos (Diário de Lisboa), Balsemão (Diário Popular) percorrem as páginas que se seguem. As famílias perdem influência à medida que se consuma o assédio da Banca, entre final dos anos 1960 e o início da década seguinte».
Falar de jornais é falar de Censura: «Ferreira de Castro conta um episódio em torno de uma reportagem da sua autoria, nas minas de São Domingos, detidas por uma empresa inglesa, que foi integralmente suprimida pela Censura. Pereira da Rosa disse ter lido o texto duas vezes, não encontrando razões para o corte. Debalde se queixou pelo telefone ao general investido por essa altura em ministro. Percebeu que o director da mina envolvera no caso o embaixador britânico e argumentou que em situação inversa, nenhum representante diplomático ousaria ir ao Foreign Office pedir que o Governo inglês proibisse os jornais de Inglaterra de se ocuparem dum caso semelhante. De nada valeu.» Na página 264 pode ler-se sobre as relações entre patrão e empregado o seguinte: «Havia uma relação muito estreita entre o patrão e o jornalista, confirma Baptista-Bastos. Era também um certo paternalismo e uma certa conivência mas a gente sabia para quem trabalhava e falava diretamente com eles.»
Um aspecto curioso é que os redactores dos jornais desportivos não podiam ser sócios do Sindicato dos Jornalistas até 1972 restando-lhes a filiação no Sindicato dos Tipógrafos. Por isso em 1966 foi criado o CNID para permitir as acreditações do Campeonato do Mundo em Inglaterra. Outro aspecto curioso tem a ver com as palavras do assessor de Willy Brandt que afirmou em pleno tempo do «caso República»: «Se querem ganhar dinheiro nunca metam política na primeira página e não metam também notícias importantes, ponham mulheres e crime.» Por fim uma ideia que permanece, apesar dos anos que passaram: «Num país pequeno e analfabeto, era entre o Bairro Alto e o Chiado que se concentravam não apenas as redacções dos jornais mas também as sedes partidárias – quando não partilhavam o mesmo espaço.»

(Editora: Quetzal, Revisão: Carlos Pinheiro, Preparação: Diogo Morais Barbosa, Edição: Francisco José Viegas, Capa. Rui Rodrigues, Foto: Arquivo Municipal, Produção: Teresa Reis Gomes) 

[Um livro por semana 620]