quarta-feira, 15 de abril de 2020

Baptista-Bastos - Das capuchas, das piçarras e dos calhabardais



Esta crónica é dedicada a Cecília Milheiro e Manuel Sequeira. A primeira porque diz sempre «bem haja» e faz do balcão da Farmácia na Estrada de Benfica um altar de paz onde as angústias de quem leva na mão uma receita se dissipam devagar; o segundo porque sendo taxista e autor de um Blog («o fogareiro») viaja pelas ruas de Lisboa como quem corre pelos calhabardais dos Montes da Senhora que são seis: Aldeia Cimeira, Monte de Cima, Monte do Meio, Monte de Baixo, Monte do Trigo e Monte do Barbo. A crónica de Baptista-Bastos surge no livro «As palavras dos outros» (Editorial Futura) e começa com estas palavras: «Escrevo no balcão da casa das piçarras negras, no último dos meus dias beirões. O vento da tarde arrasta consigo odores de urze velha e de pinhos novos – e percebo, de repente, que estou a despedir-me. Dobro os olhos para leste, onde a serra de Moradal se rasga num desfiladeiro logo baptizado de Ocreza e a ideia de ficar impõe-se-me de tal força que a ideia de partir vira num sentimento penoso. Pelas taipas de janela da loja, ao lado, saem os fumos do meu jantar da tarde; a miúda Martinha está a observar-me, em silêncio, do terreiro coberto de mato; Chico Canhoto veio com as bestas dos campos de arroteio e ofereceu-me uma saudação fraterna e sorridente; ontem, no largo junto à fonte, vi bandos de raparigas tristes, sem rapazes, na mesma hora em que Carminda, viúva de um vivo que reside temporariamente em Lisboa, depunha flores pobres na campa rasa do filho Armando, morto de tétano, com 2 anos – e, ao fazer o balanço das minhas recordações, percebo, de repente, que estou a despedir-me. Despeço-me destas terras poderosas, verdes como esmeraldas, destas terras cerdosas de cardos, de fetos, de raízes, de xistos – não fecundadas pelo braço jovem que está longe.»         
         
[Crónicas do Tejo 154]

sexta-feira, 3 de abril de 2020

«Antologia Poética» de Frei Agostinho da Cruz



Organizada por Ruy Ventura (n.1973) este livro de 290 páginas reúne epigramas, epitáfios, odes, sonetos, elegias, éclogas, cartas e outros poemas bem como uma introdução, um glossário e uma bibliografia selecionada. Frei Agostinho da Cruz (1540-1619) era irmão do poeta Diogo Bernardes (1530-1596) e dele escreve Teixeira de Pascoaes em «Os Poetas Lusíadas»: «Camões é o poeta que eu mais admiro. Frei Agostinho da Cruz é o poeta que eu mais amo: o poeta mais sincero e lusíada que Deus abençoou.» Na Introdução o organizador adverte: «trata-se de um veículo que pretende pôr à disposição de um público abrangente uma selecção representativa da obra do frade que viveu numa época conturbada de Portugal e do mundo, com vários pontos cuja semelhança com o nosso tempo qualquer olhar atento descobrirá. Este livro está desprovido de aparatos críticos que uma obra com outra índole, nunca poderia dispensar. Por essa razão, se apresenta apenas um rol selecto de alguma bibliografia de e sobre Frei Agostinho da Cruz, à qual o leitor poderá recorrer, caso esse percurso seja do seu interesse, aí encontrando uma multiplicidade de leituras e a indicação de outros livros e artigos onde terá a oportunidade de beber águas distintas.»
Este livro pode ser lido também como um diário íntimo de alguém que organiza o seu discurso poético num duplo triângulo (Natureza-Palavra-Deus ou Mundo-Poesia-Amor). Nascido em Ponte da Barca, terá vivido em Guimarães e Vila Viçosa; veja-se o poema da página 21: «Nasci e renasci na casa em dia/De Santa Cruz, da Cruz o nome tenho.» Mas viveu também em Sintra, na Serra da Arrábida e em Vale Figueira (Santarém): «Nestes campos do Tejo onde cheguei /Achei graça, bom rosto e gasalhado / Que noutros meus amigos não achei. / E tanto me senti mais obrigado /Quanto mais fraco e enfermo me senti /Sem nunca me sentir desamparado.»  No poema da página 107 se percebe melhor essa pessoal cartografia: «Na ribeira do Lima fui nascido /Na do Mondego e Tejo fui criado / E na serra em que vivo envelhecido / Onde esperando estou o desejado / Fim dos meus longos anos mais vizinho /Quanto de cada vez mais alongado.»

(Editora: Licorne, Contracapa: Nuno Matos Duarte, Retrato do autor: João Salvador Martins, Apoios: Diocese de Setúbal, Fundação Oriente, Câmara Municipal de Ponta da Barca, União das Freguesias de Azeitão - São Lourenço e São Simão)   

[Um livro por semana 643]