quinta-feira, 30 de janeiro de 2020

«Que fazer contigo, pá?» de Carlos Vale Ferraz



O subtítulo («O regresso do herói de uma viagem sem epopeia») dá uma ideia da tessitura narrativa deste livro de Carlos Vale Ferraz (n.1946) e do seu herói Simão Dutra («emigrante, solteiro») que afirma «já não me revejo como Rúben, o libertador. Estou a aprender a ser o Simão Dutra que em tempos foi Rúben!» . Neste romance de 168 páginas cruzam-se algumas histórias pessoais e a História mais geral de Portugal. Rúben é um herói do «25 de Abril» e um derrotado do «25 de Novembro» mas descende de D. António, Prior do Crato. Não é de estranhar que a narrativa sobreponha duas datas – 17 de Agosto de 1583 e 25 de Abril de 1974. De um lado o Portugal de sempre: «As nossas celebrações são à meia-luz, falamos a meia voz, trabalhamos a meio gás, atravessamos as serras pela meia encosta, bebemos vinho palhete, mistura de branco e tinto, a nossa grande matança é a do porco.» Do outro lado o travão aos actos revolucionários: «A hierarquia, a burocracia e a cobardia são os principais inimigos das revoluções!»   
Como qualquer boa história não chega a conclusões que são sempre provisórias mas podemos adiantar duas: Primeira: «Fui revolucionário mas temos o direito a mudar, a esquecer, a desaparecer!». Segunda: «O que permanece de nós é, no melhor dos casos, um cartuxo de papel com cascas secas.» A página 23 justifica o subtítulo de livro: «…Simão, carregando a sua antiepopeia  numa sacola ao ombro.» A página 85 aproxima a ficção (Bar Arlequim, Natália Ferreira) da realidade (Botequim, Natália Correia). Pitões das Júnias é o lugar onde Rúben, o herói revolucionário vive sem ruído na companhia do frade António enquanto «o vermelho desmaia num desbotado cor-de-rosa» e é o lugar para o qual o eremita convoca o protagonista: «Espero por si em Pitões das Júnias» - são as últimas palavras do livro. Não por acaso a norte do Rio Douro existem centenas de sinos: «Quando ouvires os sinos da tua freguesia tocar a rebate, vem para a rua com as armas que tiveres: caçadeiras, pistolas, picaretas, enxadas ou gadanhas!»

(Editora: Porto Editora, Capa: Manuel Pessoa, Imagem: Henri Bureau/Sygma/Getty Images)

[Um livro por semana 639]

domingo, 19 de janeiro de 2020

«Habeas Corpus» de Carlos Querido



Carlos Querido (n.1956) regressa ao micro-conto depois do anterior «Insanus»  de 2017. O título do conjunto de 33 contos é tirado do texto da página 93 cuja origem vem da velha lei britânica «habeas corpus ad subjiciendum» que dá a garantia de liberdade do indivíduo perante a possibilidade de uma detenção arbitrária. Em termos simples permite agudar julgamento em liberdade. No micro-conto em causa, o conflito surge entre a família do protagonista (Zé Manel) e os amigos «das farras, do futebol e dos poemas». Enquanto os primeiros desejam um enterramento convencional, os segundos fazem uma cremação e para isso levam o corpo e no seu lugar deixam sacos de areia. De um lado o tio padre comandando as operações; do outro os amigos que realiza, a cremação entre whisky e poemas de Ruy Belo e Garcia Montero.   
Num dos micro-contos (página 31) pode ler-se «Tão insondáveis como o universo só os enigmas da alma» e é mesmo de enigmas da alma que trata este livro com várias referências a poemas da Garcia Montero, Ruy Belo, Inês Lourenço ou Ricardo Reis (Fernando Pessoa) além de outras figuras das artes e das letras como Carl Jung, Beethoven, Mozart, Agata Christie ou Gustave Flaubert. Essa ligação à Poesia surge na página 13 de modo mais explícito em «O poema do búzio»: «Vem isto a propósito dum poema sobre um búzio que num dia incerto ofereci a uma rapariga que venho a descobrir que era minha mãe.»
Completa este belo volume de 136 páginas um conjunto de dez fotos de Sal Nunkachov.

(Editora: Abysmo, Capa: Sal Nunkachov, Revisão: Noémia Machado)

 [Um livro por semana 638]

sexta-feira, 10 de janeiro de 2020

«Deuses menores e espíritos do lugar» de Aurélio Lopes


Aurélio Lopes (n.1954) estreou-se nas publicações desta área temática em 1995 com «Religião Popular no Ribatejo». Este recente livro de 183 páginas está organizado em quatro capítulos: O Santo e a Imagem, o Santo e o Lugar, o Santo e a Festa e o Santo e a Promessa.
Na página 139 cita-se um texto de Lourenço Fontes em 1992: «Não é diretamente Deus quem o povo procura; vai ao santo. Nem é o padroeiro, é o taumaturgo; nem é a igreja paroquial, é a capela, a ermida, o santuário; onde é mais fácil a religião popular. Onde, até, não há um padre a controlar, a proibir ou vigiar a fé.»
No final a página 183 o autor resume: «São os santos, hoje como ontem, símbolos e protetores de povos e lugares. Corporizados na sua «imagem», nesta se projetam enquanto foco energético e devocional; numa simbiose, algo indistinta, entre representação e representado. «Imagens» que o povo encara como se dos próprios santos se tratasse. Santos/«Imagens»; optando por aquela comunidade e só por aquela. Em inequívocas e taumatúrgicas opções de pertença. Expressos em lendários míticos que descrevem as sempre milagrosas aparições e remontam (ou fazem remontar) à génese da igreja e da povoação. À semelhança de princípios totémicos servem, assim, de pais e antepassados das populações. Intermediários por definição. Focos de poder por vocação. Nos quais as comunidades se revêem e compreendem. E aos quais apelam e prometem em situações de vulnerabilidade individual e colectiva. Santos que embora vistos em termos populares como dotados de um poder intrínseco, não deixam de ser, em termos conceptuais, intermediários entre a Terra e o Céu.»

(Editora: Apenas Livros, Revisão: Luís Filipe Coelho)

[Um livro por semana 637]