terça-feira, 25 de agosto de 2020

Há sempre coisas que ficam por dizer



Uma crónica é um contrato entre o jornalista, o director do Jornal e os leitores. Os termos podem não ser reduzidos a escrito mas, como nos velhos tempos, vale sempre o aperto de mão e a palavra de honra. O jornalista dá o seu melhor, o director do Jornal concede-lhe um espaço que vale ouro e os leitores dão ao texto a melhor atenção possível. Ao chegar à crónica nº 200 dei por mim a reler algumas delas - desde logo porque queria fazer uma escolha para a edição de um futuro livro no qual se reúnem cinquenta. Na crónica nº 165 publicada em 10 de Maio de 2019 gostaria de ter acrescentado «A tua voz tem o registo da mais alta Poesia, instável mas feliz ponto de encontro entre a saudade e o sonho, entre o passado e o futuro, entre a sombra e a luz. Porque, tal como numa liturgia urbana, há no ouro das alfaias da tua voz um tempo de celebrar, de convocar, juntar e harmonizar de novo tudo aquilo que, no nosso coração, a morte acabou por separar.»Continuo a pensar que o Jornalismo é uma disciplina da Literatura porque o Jornalista é o Historiador de todos os dias. Agora no momento em que escrevo faltam poucos dias para que Cristiano Ronaldo celebre 35 anos mas tudo teria sido diferente se no dia 24 de Outubro de 1999 um grupo de Homens (árbitro, enfermeiro, delegado) não tivesse dado o melhor de si para o salvar de uma taquicardia grave no decurso de um jogo de Iniciados Casa Pia-Sporting. E o jornalista que relatou com fidelidade e pormenor a situação fui eu porque eu estava lá nessa manhã de Domingo. O Jornal «Sporting» foi o único que referiu o problema mas compreende-se: o jogador ainda não era famoso nem em Portugal nem na Europa nem no Mundo. E porque há sempre coisas que ficam por dizer é que desde 1978 ainda não parei de escrever nos jornais. E espero continuar.    

[Crónicas do Tejo 225] 

(Fotografia de Vinicius Carriço)   

domingo, 16 de agosto de 2020

«O Estendal e Outros Contos» de Jaime Rocha



Jaime Rocha (n.1949), poeta, ficcionista e dramaturgo, estreou-se na Poesia com «Melânquico» (1970), na Ficção com «Tonho e as almas» (1984) e no Teatro com «Deuscão» (1988). O conto «O Estendal» que abre o volume de 67 páginas e 9 narrativas oscila entre um registo naturalista («a guerra continuava, os massacres não tinham fim») as termina num tom de surpresa, de insólito e de irreal: «o estendal estava cheio de crianças ainda recém-nascidas. Todas juntas, umas ao lado das outras, muito quietas, penduradas com molas, a secar». Em «O último parente de Justino» a narrativa volta a arrancar num tom muito próximo do real («A última vez que Justino foi visto, avançava em passo lento pela alameda do cemitério, encostado à fila esquerda dos ciprestes onde se localizavam os jazigos mais antigos.») mas conclui de modo insólito: «No dia do funeral do sobrinho, Justino subiu a alameda estreita do cemitério à frente do féretro. Antes que os coveiros descessem a urna, atirou-se ele inesperadamente para dentro da cova.» Em «A mulher que aprendeu a chorar» o ponto de partida volta a se rum olhar lúcido e realista sobre o Mundo («Há uma depressão na terra que atinge as colheitas, os animais. O ar tornou-se irrespirável e já não é possível arranjar tempo suficiente para se passar um serão tranquilo em casa. Os vizinhos destroem as paredes com berbequins, deitam abaixo cozinhas inteiras.») mas a história é povoada por gente insólita, uma mistura entre ficção e realidade, cinema e quotidiano: «A mulher do filme morreu de facto? Claro que não. O mesmo aconteceu com o seu amado. Matou-o mas ele não morreu. Pense é que ele se ausentou para o estrangeiro, abandonou-a..É a coisa mais banal do mundo.» Em «A gaiola do senhor Flor» o princípio da narrativa é «Foi no dia em que o senhor Flor apareceu com uma gaiola na mão que os amigos chegaram à conclusão de que ele tinha endoidecido de vez.» e termina com a porta da gaiola aberta: «A minha mulher disse-me que, para presa, basta ela. Não quer o pássaro aqui dentro.» Fica uma ideia e um convite à leitura deste livro de contos onde de modo hábil e límpido se cruzam os mundos do real e do imaginário.

(Editora: Relógio d´Água, Capa e Foto: Carlos César Vasconcelos, Revisão. Anabela Prates Carvalho)
                        
[Um livro por semana 649]

sábado, 1 de agosto de 2020

«Estalagem» de Henrique Manuel Bento Fialho



O mais recente livro de poemas de Henrique Manuel Bento Fialho (n.1974) integra 36 poemas dos quais 28 são de 12 versos, 5 de 16, 1 de 15, 1 de 13 e 1 de 8 versos. O ponto de partida é: «Olho à minha volta e penso em tudo / quanto fui acumulando ao longo dos / anos», o mesmo é dizer um inventário. O ponto de chegada pode ser a morte: «A morte / talvez chegue para nos unir, quem pode sabê-lo?» Pelo meio fica a vida que pode ser a descrição de uma ceia em grupo: «Dezasseis pessoas sentadas à mesa / num restaurante de Óbidos tecem / palavras com agulhas da memória./ Falam da vida enquanto levam à boca / porções de animais mortos». Pode ser em Paris como na página 39: «enquanto o magnata italiano / entra no restaurante acompanhado dos cães /(logo seguido da consorte siliconolizada)» O título do livro apela para a ideia de deambulação, viagem, percurso: «Ofensa é passar a vida feito estátua.»
Um dos pontos fortes destes poemas é a ironia, por exemplo na página 20: «É improvável que alguma vez venha / a ser dos melhores. / Às vezes sonho com medalhas, imagino-me no pódio a receber o aplauso de multidões.» Sendo a Vida efémera e a Morte inevitável, só o Amor nos salva e a Poesia pode ser uma forma de Amor: «Prefiro o canto transparente, solto / na folha absoluta deste vazio.» No poema da página 15, de modo hábil, o autor junta um episódio do quotidiano («A menina  do primeiro andar chora diabolicamente») para se aproximar ao acto da escrita: «Estará convencida de que chorando / transmitirá aos outros dores que são apenas dela».  Estamos perante uma poesia com algumas referências culturais mas sempre com voz própria: passa por José Malhoa, Susanne Valadon, Camões, Fernando Pessoa, Albert Camus, Patrick Kavanagh, James Joyce ou Micah P. Hinson e Jacques Brel – que um poema pode ser também uma canção: «A luz das manhãs no Inverno é uma / canção triste sobre o fim do amor.»

(Editora: Medula, Capa, composição e paginação: Manuel A. Domingos)

 [Um livro por semana 648]