quinta-feira, 30 de junho de 2022

«A inscrição dos dias – Cartas para Q.» de Pedro Martins

 


Pedro Martins (n.1949) trabalhou na Banca e na edição de livros tendo colaboração na Revista Alentejo e nos jornais Diário de Lisboa, O Ponto, Notícias da Amadora, Diário do Alentejo, Notícias do Sul e Voz do Povo (2ª série). O prefácio adverte o leitor («livro breve que não é ficção, não é história com maiúscula e não é jornalismo») cabendo ao autor na página 70 uma declaração: «Tenho vinte e três anos, estou na guerra e triste. E também não permitirei que ninguém diga que estes são os mais belos anos da minha vida.» Esta citação de Paul Nizan abre espaço para referência a muitos escritores que o autor convoca apesar das 93 páginas: José Rodrigues Miguéis, Aragon, Manuel da Fonseca, Manuel do Nascimento, Antunes da Silva, Carlos de Oliveira, Fernando Pessoa, Jorge Amado, Vargas Llosa, Gabriel García Márquez, Daniel Filipe, Maiakovski, Nicolás Guillén e José Bação Leal mas não só.

O livro parte de uma experiência pessoal: «A Segunda Repartição, a PIDE militar, quis mostrar serviço e violou a correspondência sem brio profissional nem competência. Podiam ter feito desaparecer a carta mas preferiram dizer que a vigilância continua. Rasgaram o envelope, leram a carta, analisaram o conteúdo, talvez o tenham considerado inofensivo ou, mesmo, piegas e deixaram as folhas no saco do correio de Empada.» Mas atinge um olhar sobre a situação geral do País: «Não dá para recuperar a honra perdida dessa instituição que, há muito, constitui o pilar principal desse fascismo rústico, beato, de falinhas mansas, voz esganiçada, amaricada até, que à tortura chama «safanões dados a tempo» e ao campo de concentração, da morte lenta, do Tarrafal, candidamente chama colónia penal, tão bem corporizado por essa figura sinistra que nos chegou de Santa Comba com passagem pelo seminário e Universidade de Coimbra, esse António, esse Oliveira, esse Salazar, esse filho-da-puta» Nesse tempo (1971-1973) havia duas verdades, a oficial e a verdadeira. Oficial: «Por acidente com arma de fogo quando se encontravam de serviço no HMBIS faleceram 02 militares de C. Caçadores.» Verdadeira: Mortos 2 soldados por um outro soldado português internado em Psiquiatria no Hospital Militar de Bissau». O livro «Poesias e Cartas» de José Bação Leal tem um espaço próprio: «Mataram-no em Moçambique, no Hospital de Nampula mas a mãe não o deixou morrer: foi bater à porta dos amigos do filho a quem ele tinha escrito. Juntou cartas aos poemas dele que tinha resgatado do cesto dos papéis para onde ele os atirara e pediu um prefácio a Urbano Tavares Rodrigues.»

(Editora: Parsifal, Prefácio: Francisco Belard. Capa: Pedro Gil. Paginação: Augusto Nunes)

José do Carmo Francisco      [Um livro por semana 688]

 

quarta-feira, 8 de junho de 2022

«As Batalhas do Caia» de Mário Cláudio

A partir do conto «A Catástrofe», de duas cartas a Ramalho Ortigão, de uma carta de Oliveira Martins e do poema «A Portugal» de Tomás Ribeiro, organiza Mário Cláudio (n.1941) em 153 páginas o romance que Eça de Queirós (1845-1900) planeou e anunciou mas não chegou a concluir. O próprio título sugere um plural que já tinha sido referido na página 55 («os sucessos do Caia») ou na 82 («As batalhas do Caia») mas que noutras páginas (46, 55 e 76) surge no singular como «A Batalha do Caia».Além do título, a ideia de publicar o livro é objecto de reflexão na página 37: «o livro é, por um lado, inoportuno, por outro, um ataque de folha em folha à vizinha Espanha e serve portanto apenas para criar irritação. Por isso era melhor talvez que não se publicasse.» O ponto de partida está na página 152: «a nossa Patriazinha a sofrer tratos de polé às mãos do inimigo tradicional, que assunto melhor, um verdadeiro achado, para espiolhar, se me apetecer?» A mesma Patriazinha pode ser «ditosa pátria» na página 12 ou na página 145 mas aqui na variante «ditosa Pátria».

Não temos em «As Batalhas do Caia» apenas o livro em projecto de Eça de Queirós que Mário Cláudio escreveu «escutando dentro de si a voz de José Maria» como refere a página 153. É Portugal enquanto memória colectiva que estas páginas revelam a partir do percurso particular do multifacetado homem que foi Eça de Queirós: Porto, Lisboa, Coimbra, Évora, Leiria são lugares onde, além de escritor ele foi jornalista e administrador de concelho. Cruzam a narrativa não só as peripécias de Eça de Queirós enquanto cônsul mas outras histórias como por exemplo os vagabundos de Paris que vendem o sangue nos Hospitais ao Instituto Pasteur para voltarem à taberna e a dormir no chão ou Policarpo, herói anónimo que em itálico conta as desventuras dum soldado que é sentinela à porta do Arsenal da Marinha em Lisboa e volta à sua terra: «E ao aparecerem os filhos, uns atrás dos outros, perceberá que está completando a casa que levantaram os avós».

Portugal será no fundo o protagonista deste romance como no aforismo da página 83 («Portugal é como o célebre pescador que desconhecia por completo o nome do próprio filho») ou da página 84 («Portugal é uma alforreca a que nos apetece chamar de medusa») ou na página 14: «Você diverte-me, José porque se diria detestar aquilo que ama em Inglaterra e amar aquilo que detesta em Portugal.» Ficamos por aqui dando razão à frase da página 82: «Não há armistício para as batalhas do Caia». Ou por outras palavras: «Quem leu, leu; quem não leu não sabe o que perdeu.»   

(Editora: Dom Quixote, Edição: Maria do Rosário Pedreira, Capa: Rui Garrido, Revisão: Madalena Escourido)

[Um livro por semana 687]