sábado, 30 de novembro de 2019

«Pequeno roteiro cego» de Levi Condinho



A antologia da poesia de Levi Condinho (n.1941) organizada por António Cabrita e Miguel Martins tem 98 páginas e integra poemas de cinco livros publicados entre 1966 e 2001 e dos 48 poemas divulgados no Jornal «A voz de Alcobaça» entre 1993 e 1997 por José Alberto Vasco. A opinião de Herberto Helder («o seu livro é intenso e livre – qualidades que considero as melhores num ser humano e, particularmente, num poeta») sobre «Para que alguns me possam amar» (1977) pode aplicar-se a toda a obra deste poeta nascido no Bárrio (Alcobaça), facto inscrito num poema: «No princípio de Julho de 1950 foi a Missa Nova / do Padre João de Sousa – missa campal / camponeses ajoelhados no feno seco terra batida / alecrim incenso bandeirinhas de papel searas vinhas / o mar e o Sítio da Nazaré ao longe – à tarde toquei pífaro diante do microfone.»   
Veja-se o poema de abertura: «escrevo estas coisas /para que alguns me possam amar / todos aqueles que sejam humildes / e vistam roupas simples e claras /manchadas mesmo de vinho café ou /nódoas de peixe frito /escrevo estas coisas /para quem nunca teve casa junto ao mar /mas sabe que o mar é uma delícia /como o sol.» A música está sempre presente como no poema da página 27: «Se perguntarem por mim /diz-lhes que me procurem /nas cordas de qualquer violoncelo /ou então nas chaves de um oboé /diz-lhes mais / que se enganaram a meu respeito /e não pensem que lhes farei a vontade /porque a minha vida foi música desde o ventre materno».
O ponto de partida pode ser o poema da página 37 («Juro uma vingança grave sobre / toda esta falta de viver») e o ponto de chegada pode ser a página 27: «se perguntarem por mim /diz-lhes que havia um barco à minha espera /e que finalmente resolvi entrar nele /sem lágrimas». No meio o poeta tem uma procura que não termina («Busco o teu perfil nos torvelinhos de uma cidade frenética») mesmo quando parece: «vamos procurar as árvores dessas ruas e escrever nelas o nosso encantamento / para que o mundo saiba que a redenção dos astros / passou pelos nossos lábios numa noite em que assaltámos /as portas de Deus.»

(Editora: Abysmo, Prefácio: António Cabrita, Capa: Luísa Barreto)

[Um livro por semana 633]

quinta-feira, 21 de novembro de 2019

«As longas noites de Caxias» de Ana Cristina Silva



Este livro de Ana Cristina Silva é dedicado a «todos os resistentes antifascistas» e adverte: «Esta obra baseia-se em factos verídicos. No entanto, nomes e situações foram ficcionados.» O livro de estreia da autora é «Mariana, todas as cartas» de 2002 e o seu anterior romance é «Salvação» de 2018. O título deste recente trabalho surge nas páginas 127, 149 e 200 mas o primeiro é o ponto de partida: «Nas longas noites de Caxias, nunca as detidas viram um sorriso no rosto de Maria Helena.» Por um lado está Leninha, do outro Laura Branco, a agressora e a agredida. Não apenas pelos actos mas também pelas palavras porcas: «És uma cabra e não és uma vaca porque não tens físico para isso!» Laura respondeu: «Mas tens tu.» A narrativa não se limita ao duelo entre a agente da PIDE e a detida em Caxias. As memórias de infância de Laura são o retrato dum certo tempo português: «As suas amigas eram filhas dos homens que se alugavam à jorna na praça da vila (…) Outros havia em piores condições. Trabalhadores que não eram escolhidos pelos feitores (…) e que se juntavam nas tabernas. Homens desgarrados que cantavam o orgulho de ser alentejano por ruas tortas, pedindo com mágoa uma moeda para os filhos.» Do lado de Maria Helena há vitórias e derrotas: «Chamava-se Maria Augusta, era camponesa do Couço e denunciou os camaradas. Uma outra camponesa, de nome Maria Custódia, oriunda da mesma terra, não proferiu qualquer palavra.» A hostilidade perversa de Maria Helena para com as mulheres tinha raízes na infância: «No dia em que Salazar foi a Setúbal e beijou Maria Helena na testa o seu pai deu uma tareia na mulher.(…)Envergonhava-se da mãe, fraca e débil, sempre a suspirar pelos cantos. (…) Desde a primeira classe que as colegas de Maria Helena suspeitavam que ela tinha instintos ruins.» O filho de Maria Helena era um rapazinho cobarde mas era adepto do Benfica como a mãe. Essa relação surge na organização da narrativa como exemplar. O Clube tem uma visão revisionista da História do Desporto em Portugal: mente sobre a data da fundação, mente sobre os títulos de campeão, mente sobre a idade dos jogadores, inventa mentiras delirantes como a de em 1907 um grupo de sete jogadores ter saído do SLB para fundar o SCP. Os jogadores em causa saíram do Grupo Sport Lisboa e apenas procuravam um estádio onde pudessem tomar banho depois dos jogos. O SCP tinha sido fundado em 1906, depois de tentativas em 1902 (Belas) e 1904 (Campo Grande). O julgamento de Leninha foi o previsível: a maior parte do discurso era palavreado patriótico no qual mergulhava para se justificar a si própria. O discurso deslocado da realidade surge em 1977 mas o resultado é suave: «Seis meses de cadeia.» Laura conclui: seria um processo lento, requereria todo o seu esforço para não se deixar enredar nas imagens do passado.» A vida de Maria Helena cabe em duas linhas («um matrimónio despedaçado, um filho que só lhe dava preocupações, uns pais cada vez mais velhos e agora um amante que a abandonava») mas no fim afirma «nunca me arrependi de nada. Os tempos da PIDE foram os mais felizes da minha vida.»

(Editora: Planeta Manuscrito, Revisão: Fernanda Fonseca, Capa: Patrícia Silva sobre imagem de Hayden Verry, Foto; Fernando Dinis)

[Um livro por semana 632]

sábado, 16 de novembro de 2019

Nagashima



Minoru Nagashima (n.1945) é um artista plástico japonês que vive em Portugal desde que veio para a EXPO98 e ficou apaixonado pela cidade em geral e pela zona do Príncipe Real em particular. As obras são 15 em exposição até ao dia 30 de Novembro de terça a sábado das 15 às 21 horas na Rua Nova da Piedade 66 - entre a Rua de São Bento e a Praça da Flores.

sexta-feira, 8 de novembro de 2019

«Um muro no meio do caminho» de Julieta Monginho



O livro abre com uma frase de Celeste Pedro («cada um de nós pode fazer tão pouco ao menos que esse pouco seja feito») e outra da «Odisseia» de Homero traduzida por Frederico Lourenço: «Desatrela os cavalos dos estrangeiros e trá-los para que comam.» Julieta Monginho (n.1958) estreou-se em 1996 com «Juízo Perfeito»,  venceu  o Grande Prémio de Romance e Novela A.P.E./D.G.L.B. 2008 com «A terceira mãe» e neste livro de 243 páginas junta 10 histórias afluentes, trabalhadas em ficção a partir do voluntariado na ilha grega de Chios no Verão de 2016.
O ponto de partida é: «conhecer essas vidas em fuga, ajudá-las a seguir o caminho aberto por direito, pois se não acreditasse no poder do direito como reduto do pensamento humanista moldado por centenas de anos vividos e sofridos, me perderia definitivamente no espectáculo do mundo.» As voluntárias sabem que três palavras as acompanham («vontade, sorriso, impotência») além das palavras de Eleni: «Aquela gente não pode ficar à mercê do frio e das autoridades de Vial. Já estão a instalar gente à beira-mar, em Souda, junto à muralha. Não há quem lhes dê de comer. Nós vamos dar-lhes de comer.» É neste vasto anfiteatro que surge o trabalho do escritor, o historiador do quotidiano: «Observar o que é vivido com um microscópio numa mão, um telescópio na outra. Estar dentro e fora. Escavar, escavar, escavar, como se a pele fosse a alma e às vezes é.» O primeiro olhar é para as mulheres: «A sua imensa tarefa – a de chorar? Quantas vezes por mil se multiplica o seu desgosto? É no corpo delas que começa a dor. São elas a parir e a ver partir os seus meninos – os soldados, os mortos. São elas que escondem a vergonha, limpam e ordenam, calam e renunciam.» Num certo sentido pode dizer-se que as mulheres estão mais visíveis entre o muro e o mundo. O muro tem um destino («É o destino de todos os muros: serem derrubados, depois de fazerem muitas vítimas.») e o mundo tem muitas perguntas: «O que seria do mundo sem as armas? O que seria a raiva, sem a possibilidade de eliminar o semelhante? Se o dinheiro desaparecesse por magia , o que fariam os homens à cobiça? Se as terras se unissem num único lugar, o que fariam os homens às disputas? Se os espelhos desaparecessem, o que fariam os homens à vaidade?» Um aspecto curioso tem a ver com a fixação na Alemanha como destino: Uma advogada uruguaia sublinhou que toda a gente quer ir para a Alemanha, a autora refere «Alemanha, a terra prometida. Exibida no mundo inteiro como a capital da Europa», um refugiado desabafa: «ficamos aqui só uns dias, depois continuamos até à Alemanha.» Uma nota final para a história de Asmahn e a escolha do nome de um bebé: «Vai chamar-se Nymir, como o avô, o pai do Ahmad. O nome do meu pai fica para o segundo.». A mesma Asmahn que chora ao dizer: «O Ahmad proibiu-me as fotografias. Tem de as apagar do telemóvel, suplico-lhe.» As fotografias não passaram de um pretexto. A escolha do nome do bebé não permite dúvidas.

(Editora: Porto Editora, Capa: Joana Tordo, Foto: Filipe Monginho)

 [Um livro por semana 631]