sexta-feira, 23 de outubro de 2020

«Matéria avulsa» de Manuel Simões

O mais recente livro de Manuel Simões (n.1933) indica na capa um resumo («contos, crónicas e afins») e tem 131 páginas. Poeta, ensaísta, tradutor, Manuel Simões tem sido editor («Nova Realidade»), jornalista (Revista «Vértice»), professor no ensino secundário (Escola Veiga Beirão) e nas Universidades de Bari, Veneza e Florença, sendo fundador da Revista «Ressegna Iberística» em Veneza no ano de 1978. Os contos são cinco, as crónicas são onze e a marginália (afins) inclui dezoito textos sobre vários temas e autores: Futurismo, Guerra Colonial, Revistas «Vértice» e «Sol Nascente», Alberto Pimenta, Luís Filipe Barreto, Guilherme de Azevedo, Soror Violante do Céu, António José Saraiva, Giuseppe Tavani, Padre António Vieira, José Cardoso Pires, Infante D. Pedro (das sete partidas) , Franco Menegalli, Luís António Verney, Ana Hatherly e António Mega Ferreira.  

Como convite à leitura fica um excerto da crónica sobre a cidade de Veneza: «Veneza é uma cidade de contrastes. Parece-nos, à superfície, a mais cosmopolita das cidades histórias mas, conhecendo-a no seu respirar mais íntimo, revela-se no seu provincianismo inesperado, no seu mau gosta dos objectos propostos como «lembranças» que atraem o turista da classe média, sem capacidade para exercer uma «crítica do gosto». De qualquer modo não é a cidade ideal pata se viver: o clima é frio, húmido, com os longos dias (ou semanas) de nevoeiro intensíssimo de Outubro a Abril, quente e asfixiante no Verão; e há ainda os turistas que preenchem completamente as ruas e as praças («campi»), cada vez em maior número, o que não permite uma liberdade de movimentos. Estes são, porém, os turistas que a visitam mais demoradamente, porque a maior parte, a dos grupos de agências de viagens, dorme em Mestre por ser mais económico, é conduzida de autocarro até à entrada da cidade, metida nos «vaporetti» até S. Marcos, visita a praça, a basílica e às vezes o palácio, regressa a Mestre passado pelo Canal Grande e parte de novo para outro destino: Veneza está vista.»

(Editora: Colibri, Capa: Raquel Ferreira)

 [Um livro por semana 655]

 

quinta-feira, 15 de outubro de 2020

«Pretérito presente» de Maria Cecília Correia

Maria Cecília Correia (1919-1993) é uma autora reconhecida pelos seus livros infanto-juvenis  - como, por exemplo, «Histórias da minha rua» (Portugália Editora) vencedor do Prémio Maria Amália Vaz de Carvalho em 1954. A edição recente deste livro de 1976 é comemorativa do seu centenário de nascimento. O título («Pretérito Presente») é um achado pois (todos o sabemos) o passado está sempre presente e o futuro nunca o vivemos, apenas o podemos imaginar.

Trata-se de um livro de tripla inscrição (crónica, poesia, cartas) que logo na primeira crónica diz ao que vem: «Nasci no signo da Rosa. É talvez um signo único, mas um signo como outro qualquer. Em Novembro, no quarto da Mãe, havia uma rosa. Nada de especial, julgo. Não sei em que jarra, em que cómoda, em que mesa, mas ela estava lá quando eu nasci. Hoje existe hum velho embrulho, folhas secas, quase desfeitas e uma letrinha de tinta apagada que diz «flor que assistiu ao nascimento da pequenina Maria.» Como convite à leitura, citamos um poema na página 77, «Jardim sem ninguém»: «A sombra das pombas / que bebem no lago: / dois e dois são quatro. / O voo das asas que escondem o sol: um e um são dois. / O banco onde estou sentada sozinha: / Jardim sem ninguém.» Na página 93. excerto de uma carta a Maria Eulália de Macedo: «Estou apaixonada, Lala. Um estado de paixão constante mas difusa. Apaixonada por tudo. Ontem parei na pontezinha do ribeiro e arrumei à água duas flores brancas  que boiaram, seguiram, encalharam. Elas faziam sombra na água limpa; com a sua sombra reflectiam a luz. Tudo era puro.» Na página 109, um excerto da carta a Alice Gomes: «Também sei o que é perder casas. Até aos 11 anos perdi três. E a idade nada tem a ver com o que eu senti. Tinha oito anos quando se vendeu a casa dos meus Avós em Viseu. Compreendi que poderia esquecer-me dela e então todas as noites a «passava em revista», de alto a baixo. Escuso de te dizer que ainda hoje a tenho inteirinha.»        

(Edição: António Castilho, Capa e Paginação: António Castilho e Eleonor Castilho, Ilustração: António Castilho, Cronologia: Eleonor Castilho)

[Um livro por semana 654]

 

terça-feira, 6 de outubro de 2020

«A luz de Pequim» de Francisco José Viegas

Neste seu nono livro com o inspector Jaime Ramos em figura principal, Francisco José Viegas (n.1962) define o submundo da noite portuense como «uma guerra civil na cidade» e junta, como numa oração, dois Mundos: o dos Homens e o dos Deuses. Entre o precário da Vida e o inevitável de Morte, só o Amor resolve e abre uma luz sobre o Mundo. Tal como na Contabilidade, o escritor assina o Inventário e o leitor estabelece o Balanço que se divide em Activo, Passivo e Situação Líquida. Não por acaso o escritor argentino Jorge Luís Borges se refere a Moncorvo como a terra dos seus avós. Sempre que alguém invoca o seu nome em qualquer parte do Mundo, é Portugal que é lembrado e referido. Não esquecer: foi um apaixonado pela literatura policial. O livro parte de uma descrição de um crime em Moncorvo mas a sua geografia não se limita a Trás-os-Montes e chega a Pequim: as páginas375 e 395 referem de modo explícito «a luz da Pequim».

Jaime Ramos surge na página 15 como «um monumento classificado como velharia que mais tarde ou mis cedo seria removido o seu pedestal e substituído por um halograma» e na 27 como «um homem tolerado, uma sombra do que já fora, uma respiração ofegante que subia degraus numa casa deserta e que conhecia a penumbra da suspeita, uma desconfiança que as novas gerações usavam como método de gestão de recursos humanos» para na 98 ouvir alguém dizer: «Não fazes os relatórios a horas, confias no destino, não respondes aos pedidos de informação, és um empecilho, fazes o que te apetece» e termina na págian 247 a dizer: «Eu não trabalho em homicídio para mudar o mundo nem para fazer do mundo um lugar melhor. É mais para castigar os criminosos e cumprir uma função. Crime e castigo. Punição. Vingança.»

Não é possível resumir um livro de 396 páginas em meia dúzia de linhas mas fica o firme convite à leitura. Mesmo que na página 176 apeteça dizer em voz alta ao «artista» que fala de escritores e fascismo esta coisa elementar: em 1965 a PIDE destruiu a Sociedade Portuguesa de Escritores na Rua da Escola Politécnica por causa do Prémio atribuído ao escritor Luandino Vieira pelo livro «Luanda». Natural de Ourém e José Martins da Graça de seu nome. Mas isso é outra coisa e um livro de ficção vive dessas falas de gente desalinhada e distraída. Uma nota final para a página 395 onde o nome do Bairro em Pequim significa «voltado para o sol» mas Beto e Roberto da Ganga foram encontrados com o rosto voltado para o chão «de poeira e folhagem envelhecida.»

(Edição: Porto Editora, Capa: Manuel Pessoa, Foto: Getty Images)

 [Um livro por semana 653]