domingo, 18 de dezembro de 2022

«Pensamentos sobre os valores num sentido extra-moral» de Nuno Ribeiro

 


Mais conhecido e reconhecido como especialista no estudo do espólio de Fernando Pessoa, Nuno Ribeiro é autor do recente (2019) volume «Pensamentos inconjuntos» e este livro de 92 páginas permite uma linha de continuidade; não se trata do estudioso mas do autor dum pensamento próprio. Fixemos 8 pensamentos como divulgação e convite à leitura.

A página 18 parte de uma ideia de Kant: «Agir contra as nossas inclinações, como queria Kant, talvez seja uma demonstração de vaidade perante nós próprios.» Já a página 10 tinha referido: «No teatro dos valores morais, o altruísmo tende a ser uma performance em que nos provamos a nós o quão bom podemos ser e em que nós próprios somos o público.» Na página 26 surge a advertência: «No baile de máscaras da convivência humana tende a haver um interminável combate entre a aspiração a realizarmos aquilo que desejamos e o desejo de louvor da parte dos outros.» A comunidade volta na página 28: «Quando várias pessoas se unem para nos censurar, isso significa que estamos a lesar “desejos comunitários”.» Ou dito de outra maneira: «A falta de apreço por parte dos outros é muitas vezes a origem dos nossos juízos de valor acerca do seu carácter.» A relação com o outro tem estratégias como na página 36: «A discrição e o comedimento são frequentemente estratégias para ocultarmos aos outros as nossas falhas.» Ou na 38: «Sermos discretos e comedidos é muitas vezes a máscara da incapacidade de agirmos exactamente como queremos.» Para concluir podemos ficar na página 69: «Muitas das nossas virtudes são máscaras das nossas cobardias.»

(Editora: Subterrânea – Colectivo Literário)

 [Um livro por semana 696]


terça-feira, 22 de novembro de 2022

«Alumbramentos» de Zetho Cunha Gonçalves

 


O título do livro remete para a citação inicial - «Este tempo não ama os alumbrados» do poeta brasileiro Murilo Mendes. Zetho Cunha Gonçalves (n.1960) sabe que o poeta não precisa de dicionários; o seu poema é, já em si, toda a gramática do Mundo.

Aqui embora pareça singular, o destinatário é múltiplo e vário: «Carrega os teus olhos com toda a força do teu Ser. Com a tua vontade inconteste, afronta o Sol e os seus astros menores: o erro, a hipocrisia, o amor, a delicadeza e a paixão serão os mesmos – com outros rostos. Quando uma porta se fecha, volta-lhe as costas – não é outro o secreto mistério dos pássaros, a depudorada leveza; imperturbável, feliz e cantante.» Porque a paixão e o poema são fenómenos da mesma ordem: «Vagarosa e de perfil, da pedra informe e súbita do mundo: magnificência – os astros em derredor, fulminados pelo desejo: rio selvática e delicadamente sôfrego, exacto. Absoluto e fatal, irradiante: paixão e poema – rutila ciência indomável» O terceiro poema mostra de modo hábil como a paixão e o poema se misturam. No início («Toda a paixão nasce unívoca») no espaço central («um nome estremece o mundo pelo corpo que devasta») e na conclusão: «E dasabam relâmpagos sobre os teus olhos – que são nocturnos e perscrutam.» Num tempo e num espaço onde a vida é precária e a morte inevitável, o poema pergunta: «Oh, meu amor – por que morrem os amantes?»

Vejamos o poema que pode ser a chave deste livro breve mas intenso: «É a voz da pedra na caligrafia do Tempo. Bate forte, bate fundo – o coração do mundo estremecendo alto, deslumbradamente vivo. Beijo cravado na idade – flor rodada, constelação. Fende a branca labareda o abrupto relâmpago pela raiz – a noite como um lençol embriagado e lúcido, acautelando os nossos corpos de estrela a estrela, jubilosamente iluminados e fatais.»

(Edição no 60º aniversário do Poeta, Disponível na Livraria Letra Livre, Calçada do Combro – Lisboa)

[Um livro por semana 695]


sexta-feira, 28 de outubro de 2022

«Meu reino por um cavalo» de António Ferra e Rui Castro

Este livro (recomendado pelo Plano Nacional de Leitura) integra 21 poemas e 21 desenhos nos quais António Ferra e Rui Castro elaboram uma homenagem e sugerem um convite à leitura da obra destes poetas, a saber: Reinaldo Ferreira, Mário de Sá-Carneiro, Miguel Torga, Natália Correia, Antero de Quental, Cesário Verde, Manuel da Fonseca, José Régio. Herberto Hélder, José Gomes Ferreira, António Gedeão, Eugénio de Andrade, Almeida Garrett, Sophia de Mello Breyner Andresen, Alexandre O´Neill, Emanuel Félix, Eugénio de Castro, Fernando Assis Pacheco, Vitorino Nemésio, Álvaro de Campos e Florbela Espanca. O título do volume nasce do final da peça «Ricardo III» de Shakespeare, poeta e dramaturgo inglês (1554-1616). O poema dedicado a Emanuel Félix integra um verso extraído do «Auto da Lusitânia» de Gil Vicente (século XVI). As páginas finais incluem 21 notas biográficas e bibliográficas dos autores aqui seleccionados, clarificando  António Ferra, entre outras particularidades, a diferença entre pseudónimo e heterónimo.

Como convite à leitura vejamos o poema de homenagem a Reinaldo Ferreira: «Dava tudo por um cavalo/ podia ser branco para voar/ de asas enormes para ir depressa/ para junto dos sonhos que vou sonhar// Dava tudo por uma cavalo/menos a pá se fosse padeiro/menos a pena se fosse poeta/menos a espada se fosse guerreiro//Dava tudo por uma cavalo/menos as cores se fosse pintor/menos os números se fosse engenheiro/menos a voz se fosse cantor// Dava tudo por uma cavalo/ menos o riso se fosse palhaço/ menos a máscara se fosse um actor/menos as mãos para dar um abraço//Se tivesse um segredo e quisesse guardá-lo/se eu fosse o rei da sabedoria/dava o meu reino por um cavalo/e depois guardava-o de noite e de dia»  

(Editora: Trinta por uma linha, Design e paginação: Anabela Dias, Colecção: Rimas traquinas)

[Um livro por semana 694]

 

quinta-feira, 20 de outubro de 2022

«Viagens sem bola» de Rui Miguel Tovar

Albert Camus, Nobel da Literatura em 1957, escreveu «tudo o que sei sobre a moral e as obrigações dos Homens é ao Futebol que o devo.» Este livro de Rui Miguel Tovar (n.1977) é a prova. O ponto de partida são as viagens para ver futebol e os títulos das trinta crónicas dão uma ideia: Banguecoque, Belo Horizonte, Berlim, Boston, Brasília, Bucareste, Buenos Aires, Cairo, Chernobyl, Corleone, Croácia, Donetsk, Lijiang, Londres, Los Angeles, Lviv, Montevideo, Nova Iorque, Pádua, Paris, São Petersburgo, Rio de Janeiro, Rosário, São Paulo, Teerão, Três Corações, Varsóvia, Veneza, Maldivas e Abu Dhabi. A rubrica «Hoje jogo eu» fez parte da minha educação sentimental como leitor de A BOLA. Num certo sentido este livro é um conjunto de textos à maneira do «Hoje jogo eu». Se o ponto de partida é «pelo mundo fora em busca do inesperado» como refere a capa, o ponto e chegada é um inventário da condição humana no sentido dado à expressão «sangue pisado». Só que nestas 171 páginas junta-se ao sangue pisado a arte, um talento de escrita não ao alcance de qualquer aspirante.

Vejamos alguns exemplos desta feliz mistura entre vida (sangue pisado) e estilo (arte): o humor na página 6 - «Do meu ponto de vista Spike Lee é uma velhinha.» e na página 113 «no rugby só se avança se se passar a bola para trás», o poder de síntese na página 15 «tuk-tuk é uma moto com atrelado» ou na 46 «Buenos Aires é a cidade mais rezingona do mundo.», na 31«Boston, cidade de MIT e Harvard, casa dos Celtics (basquetebol) Red Sox (basebol) e Bruins (hóquei no gelo)» ou ainda na 56 «Manuel José, a figura nacional do Cairo. Mais respeitado até que qualquer sinal vermelho». Sem esquecer os franceses a verem um jogo Arsenal-Leyton Orient e a falar «um inglês pior ainda que o do polícia francês do Àllo!Àllo!» Ou o Rio de Janeiro na página 125 «Nevoeiro de manhã, futebol à tarde, destruição à noite, o Rio não está assim tão maravilhoso.» Por fim uma ideia sobre Veneza na página 160: «Veneza a cidade do futuro? Quando muito, sem futuro. Veneza arrisca-se a ser apenas um parque temático de arte e cultura»

O amor está presente na paixão de Elza Soares e Garrincha («Meu Deus, como essa gente é boba, não sabe que vai viver por um tempo tão curto, para quê ficar agarrado a tanta coisa, não vai levar nada» terminando de forma abrupta: «Um homem como ele ser expulso do país é um absurdo» O cinema está muito presente na página 64: «quem não chora com a última cena do Cinema Paraíso, a reposição de todos os beijos censurados pelo padre da aldeia ao longo de anos e anos, aí já não há desculpa». Terminamos esta nota com a memória do Europeu 2016: «Aparece uma bola vinda sabe-se lá de onde, começam-se a marcar penáltis na baliza do Éder. É um festival. De remates, de golos, de cabeça no ar. Não há amanhã. Só hoje. E o hoje não vai acabar. É eterno.»

(Editora: Quetzal, Revisão: Carlos Jesus, Preparação: Diogo Morais Barbosa e Carlos Almeida, Prefácio e edição: Francisco José Viegas, Design de capa: Rui Rodrigues, Foto da capa: Sandro Bisaro, Produção: Teresa Reis Gomes, Foto do autor: Ágata Xavier)

[Um livro por semana 693]

 

quinta-feira, 29 de setembro de 2022

«Água inquieta – João José Cochofel»- org. José Manuel Mendes


Precoce em tudo na vida, João José Cochofel (1919-1982) nasceu prematuro (5 meses), emancipou-se cedo (13 anos) e estreou-se em livro aos 18 anos (1937). Sua avó (Maria Eugénia) dava-se com gente da «situação» (Albino dos Reis, Bissaia Barreto) enquanto sua mãe (Maria Albina) apoiava Revistas como «Altitude» (1939) e «Vértice» (1945) ou projectos editoriais como «Novo Cancioneiro» (1941) e tinha como seus amigos Joaquim Namorado, Fernando Namora, Afonso Duarte, Carlos de Oliveira, Álvaro Feijó, Vitorino Nemésio, Fernando Lopes-Graça, José Gomes Ferreira, Mário Dionísio, Eduardo Lourenço, Mário Soares e Maria Barroso entre outros. João José Cocohofel é lembrado nestas páginas como «activista cultural, poeta, musicólogo, crítico literário e musical, tradutor, cidadão empenhado e solidário e, acima de tudo, homem raro no seu tempo.»

A origem do título do volume está no poema da página 143: «Não sei como te chamas / locatária de um cacifo com sete filhos / nem tu / que perdeste os melhores anos /numa cela de Peniche ou de Caxias. /Doem e habitam /submersos a quantas braças tem o olvido /a água inquieta /dos meus versos.» José Manuel Mendes explica a razão de ser deste volume de 260 páginas que integra um conjunto de 22 fotografias e 2 caricaturas: «O livro abre com sonetos inéditos do meu amigo Alexandre Vargas, seguramente incluíveis entre os que compôs antes da morte, à luz do entusiasmo e da saudade do João José. Seguem-se, por ordem alfabética a colaboração de quem foi desafiado em nome do afecto, familiar ou não e dos estudos em torno da produção de João José Cochofel. Agradeço a generosidade e o empenho de cada um.»

De tantas «histórias» fica uma, exemplar e comovente: Fernando Namora, ainda estudante de Medicina, celebra o casamento mas pouco tempo depois de lhe nascer a filha, fica viúvo. Não tendo para onde ir nem quem lhe crie a bebé, é em casa de João José Cochofel que a criança é acolhida e criada, lá permanecendo até Fernando Namora se formar, altura em que vai buscá-la, o que provoca um grande choque na família que já se tinha afeiçoado à criança.

(Editora: Pequenos Livros, Caricaturas: Mário Dionísio e Fernando Namora, Direcção gráfica: José Antunes, Textos: Alexandre Vargas, António Carlos Cortez, António Pedro Pita, António Vilhena, Arquimedes da Silva Santos, Fernando Namora, Joaquim Namorado. José Carlos de Vasconcelos, José Carlos Seabra Pereira, José Manuel Mendes, Judite Cortesão, Luísa Duarte Santos, Mário Vieira de Carvalho, Octávio Quintela, Sofia Quintela, Apoio: Associação Portuguesa de Escritores)

[Um livro por semana 692]


quinta-feira, 15 de setembro de 2022

«Clara em castelo» de António Ferra


O mais recente livro de António Ferra integra 45 poemas pícaros no sentido não só de «astuto» e «malicioso» mas também aquele que «com arte e dissimulação logra o que deseja». Há nestes poemas uma dupla inscrição: o texto enquanto tal e o referente quotidiano como por exemplo «aceda ao portal das finanças», «estamos abertos ao sábado», «sala no primeiro andar» ou «cartão do cidadão ou BI».

O título do livro vem do poema 27: «O galope da zebra em tango argentino é dança no zoo/ (cagança poética), /com língua de velcro lambe a crina o bicho /de coice e martelo, /mestria de Braque em cubo incolor, /clara em castelo.»

Ao longo dos 45 poemas se percebe a já referida dupla inscrição (discurso poético - legenda trivial) pelo recurso a expressões como por exemplo «amparo de mãe» ou «URSS», figuras das letras e das artes, títulos de livros ou de peças de Teatro: Fernão Mendes Pinto, Braque, Debussy, Gargântua, O valente soldado Svejk, As vinhas da Ira, Beijo técnico.

A ironia atinge um ponto mais alto no verso que refere «a bicicleta de Bernardim» quando se sabe que de Bernardim é o rouxinol – o mesmo é dizer Coimbra.

Fiquemos com o poema 44 como legenda e despedida: «Querida Daisy, /nós por cá todos bem /a poetar na brevidade/de um orgasmo a solo/ o teu sardão morreu de sede/ a caminho do Algarve, /dá notícias, /teu Alfrede.»

(Editora: Douda Correria, Capa: Helena Sanmiguel Urbina, Composição: Joana Pires)

[Um livro por semana 691]


quinta-feira, 8 de setembro de 2022

Hospital de Abrantes: Urgência de cinco estrelas


Num tempo de «bota abaixo» em que é fácil dizer mal de tudo e de todos, vou contra a corrente para dizer bem da Urgência do Hospital de Abrantes. Vitimado por uma síncope no dia 25-7-22 na Praia Fluvial do Penedo Furado, bati com a cabeça nas pedras da zona das merendas. Transportado pelos impecáveis Bombeiros de Vila de Rei, fui sujeito no Hospital de Abrantes a uma Tomografia que felizmente não acusou derrame interno. A maneira competente e simpática como fui tratado durante o «episódio» leva-me a recordar a frase ouvida no ano de 1962 em Vila Franca de Xira sobre um rancho de raparigas da região de Abrantes a caminho da Lezíria: «São sérias, asseadas e danadas para trabalhar!». 

                                                                                                                                                JCF


segunda-feira, 15 de agosto de 2022

«Amor & Violência» de Cláudia Franco Souza


Tendo-se estreado em 2016 com «Nietzsche & Dostoiévki», Cláudia Souza é autora de quatro ensaios e seis livros de ficção para além de co-autora de dezanove edições do espólio de Fernando Pessoa, com trabalhos editados no Brasil, nos E.U.A. e em diversos países da Europa. Este livro de 49 páginas debruça-se sobre o primeiro amor («O primeiro amor é geralmente o mais violento de todos. O objecto amoroso é nada mais nada menos do que uma abreviatura do Universo») para concluir: «Como se aprende a amar? Como se aprende a conter a violência do amor? Da mesma maneira que se aprende a viver, vivendo com todos os seus descompassos, falhas e vazios. Mão se aprende, vamos vivendo… Não se aprende, vamos amando aos tropeços, com erros e acertos, com tristeza e alegria.»     

Quando «o amor erótico não encontra eco em seu objecto amoroso», conclui a autora «Rios de tinta, de criatividade, de labor artístico correram em todo o mundo ocidental por causa deste tio de desencontro. As mais belas poesias, cartas de amor, peças de teatro, filmes, pinturas, esculturas, foram realizadas graças ao imenso sentimento de amor. E assim será possivelmente até ao fim dos tempos.»

No seu articulado o estudo de Cláudia Souza revisita autores tão diversos como João Guimarães Rosa, Luís de Camões, Bocage, Carlos Drummond de Andrade, Irene Lisboa, Manuel de Barros, Chico Buarque, Paulo Leminski, Manuel Bandeira e David Mourão-Ferreira. Talvez porque a Poesia é uma resposta à solidão e ao desespero. E os seus alicerces são os mesmos do Amor. Cada leitor vai tirar a sua conclusão, provisória mas, mesmo assim, conclusão.

(Editor: Subterrânea – Colectivo Literário)

[Um livro por semana 690]

 

quinta-feira, 21 de julho de 2022

«O Fascínio da Quadra» de Manuel Barata


Manuel Barata (n.1952) publica regularmente desde 2003 («Quadras quase populares») sendo este o seu sétimo livro. Não surpreende que um dos poemas deste livro se intitule «Teoria da quadra» e conclua: «Uma quadra popular /não, não é arte menor;/engana-se quem achar/que é uma coisa sem valor. /Quando feita com talento /a quadra pode captar/a beleza dum momento/ perfeitamente invulgar.»

Os poemas do livro oscilam entre o «eu» e o «nós», entre o privado e o público, entre o particular e o geral. O poeta fala de si para falar dos outros e dos outros para falar de si. A quadra da página 28 recorda: «Na Beira Baixa nasci/numa paisagem tão dura! /Das muitas outras que vi, /quero esta despida e pura.» Na página 45 podemos ler sobre Salgueiro Maia: «Naquela manhã de Abril/ Maia, o nosso anti-herói/pôs fim a um regime vil/chaga velha que inda dói/ Valente e determinado/ e apoiado pelo povo/Maia, homem indomado/fez cair o Estado Novo.» E na página 47 sobre Yasser Arafat: «Nas ruínas da Mukataa/ - o seu quartel-general - /em campa muito pacata/jaz um mito universal. /Muitas vezes foi vencido/Mas nunca foi derrotado/Do seu povo era querido/pelo mundo respeitado./Era o homem do turbante /por Israel combatido /Físico insignificante? /Sim, mas forte e decidido. / Combatente de primeira /contudo sempre acossado /Era o mastro e a bandeira /da Nação-futuro-Estado.»

Mas a quadra pode ser também um lema de vida como na página 49: «Não queiras hoje acabar/um trabalho, uma obra./ Podes muito trabalhar/que o trabalho sempre sobra./Eu sei de fonte segura/que o trabalho não tem fim/Com pressa nada perdura;/ faz com calma…Vai por mim!/ Guarda algo para amanhã/faz com jeito, devagar/ ninguém faz depressa e bem /diz o saber popular.»

(Capa: Hugo Rios, Foto da contracapa: José Manuel Teixeira)

 [Um livro por semana 689]


quinta-feira, 30 de junho de 2022

«A inscrição dos dias – Cartas para Q.» de Pedro Martins

 


Pedro Martins (n.1949) trabalhou na Banca e na edição de livros tendo colaboração na Revista Alentejo e nos jornais Diário de Lisboa, O Ponto, Notícias da Amadora, Diário do Alentejo, Notícias do Sul e Voz do Povo (2ª série). O prefácio adverte o leitor («livro breve que não é ficção, não é história com maiúscula e não é jornalismo») cabendo ao autor na página 70 uma declaração: «Tenho vinte e três anos, estou na guerra e triste. E também não permitirei que ninguém diga que estes são os mais belos anos da minha vida.» Esta citação de Paul Nizan abre espaço para referência a muitos escritores que o autor convoca apesar das 93 páginas: José Rodrigues Miguéis, Aragon, Manuel da Fonseca, Manuel do Nascimento, Antunes da Silva, Carlos de Oliveira, Fernando Pessoa, Jorge Amado, Vargas Llosa, Gabriel García Márquez, Daniel Filipe, Maiakovski, Nicolás Guillén e José Bação Leal mas não só.

O livro parte de uma experiência pessoal: «A Segunda Repartição, a PIDE militar, quis mostrar serviço e violou a correspondência sem brio profissional nem competência. Podiam ter feito desaparecer a carta mas preferiram dizer que a vigilância continua. Rasgaram o envelope, leram a carta, analisaram o conteúdo, talvez o tenham considerado inofensivo ou, mesmo, piegas e deixaram as folhas no saco do correio de Empada.» Mas atinge um olhar sobre a situação geral do País: «Não dá para recuperar a honra perdida dessa instituição que, há muito, constitui o pilar principal desse fascismo rústico, beato, de falinhas mansas, voz esganiçada, amaricada até, que à tortura chama «safanões dados a tempo» e ao campo de concentração, da morte lenta, do Tarrafal, candidamente chama colónia penal, tão bem corporizado por essa figura sinistra que nos chegou de Santa Comba com passagem pelo seminário e Universidade de Coimbra, esse António, esse Oliveira, esse Salazar, esse filho-da-puta» Nesse tempo (1971-1973) havia duas verdades, a oficial e a verdadeira. Oficial: «Por acidente com arma de fogo quando se encontravam de serviço no HMBIS faleceram 02 militares de C. Caçadores.» Verdadeira: Mortos 2 soldados por um outro soldado português internado em Psiquiatria no Hospital Militar de Bissau». O livro «Poesias e Cartas» de José Bação Leal tem um espaço próprio: «Mataram-no em Moçambique, no Hospital de Nampula mas a mãe não o deixou morrer: foi bater à porta dos amigos do filho a quem ele tinha escrito. Juntou cartas aos poemas dele que tinha resgatado do cesto dos papéis para onde ele os atirara e pediu um prefácio a Urbano Tavares Rodrigues.»

(Editora: Parsifal, Prefácio: Francisco Belard. Capa: Pedro Gil. Paginação: Augusto Nunes)

José do Carmo Francisco      [Um livro por semana 688]

 

quarta-feira, 8 de junho de 2022

«As Batalhas do Caia» de Mário Cláudio

A partir do conto «A Catástrofe», de duas cartas a Ramalho Ortigão, de uma carta de Oliveira Martins e do poema «A Portugal» de Tomás Ribeiro, organiza Mário Cláudio (n.1941) em 153 páginas o romance que Eça de Queirós (1845-1900) planeou e anunciou mas não chegou a concluir. O próprio título sugere um plural que já tinha sido referido na página 55 («os sucessos do Caia») ou na 82 («As batalhas do Caia») mas que noutras páginas (46, 55 e 76) surge no singular como «A Batalha do Caia».Além do título, a ideia de publicar o livro é objecto de reflexão na página 37: «o livro é, por um lado, inoportuno, por outro, um ataque de folha em folha à vizinha Espanha e serve portanto apenas para criar irritação. Por isso era melhor talvez que não se publicasse.» O ponto de partida está na página 152: «a nossa Patriazinha a sofrer tratos de polé às mãos do inimigo tradicional, que assunto melhor, um verdadeiro achado, para espiolhar, se me apetecer?» A mesma Patriazinha pode ser «ditosa pátria» na página 12 ou na página 145 mas aqui na variante «ditosa Pátria».

Não temos em «As Batalhas do Caia» apenas o livro em projecto de Eça de Queirós que Mário Cláudio escreveu «escutando dentro de si a voz de José Maria» como refere a página 153. É Portugal enquanto memória colectiva que estas páginas revelam a partir do percurso particular do multifacetado homem que foi Eça de Queirós: Porto, Lisboa, Coimbra, Évora, Leiria são lugares onde, além de escritor ele foi jornalista e administrador de concelho. Cruzam a narrativa não só as peripécias de Eça de Queirós enquanto cônsul mas outras histórias como por exemplo os vagabundos de Paris que vendem o sangue nos Hospitais ao Instituto Pasteur para voltarem à taberna e a dormir no chão ou Policarpo, herói anónimo que em itálico conta as desventuras dum soldado que é sentinela à porta do Arsenal da Marinha em Lisboa e volta à sua terra: «E ao aparecerem os filhos, uns atrás dos outros, perceberá que está completando a casa que levantaram os avós».

Portugal será no fundo o protagonista deste romance como no aforismo da página 83 («Portugal é como o célebre pescador que desconhecia por completo o nome do próprio filho») ou da página 84 («Portugal é uma alforreca a que nos apetece chamar de medusa») ou na página 14: «Você diverte-me, José porque se diria detestar aquilo que ama em Inglaterra e amar aquilo que detesta em Portugal.» Ficamos por aqui dando razão à frase da página 82: «Não há armistício para as batalhas do Caia». Ou por outras palavras: «Quem leu, leu; quem não leu não sabe o que perdeu.»   

(Editora: Dom Quixote, Edição: Maria do Rosário Pedreira, Capa: Rui Garrido, Revisão: Madalena Escourido)

[Um livro por semana 687]

 

domingo, 15 de maio de 2022

«Pensamentos inconjuntos» de Nuno Ribeiro

Nuno Ribeiro é especialista no estudo do espólio de Fernando Pessoa, tendo publicado sob sua responsabilidade obras deste poeta e pensador na Europa, nos EUA e no Brasil. O seu trajecto nos estudos filosóficos começou em 2011 tendo continuado em 2016 e 2017 (cinco livros ao todo) e tal como refere Cláudia Souza no prefácio «os seus aforismos dialogam de alguma forma com a filosofia do primeiro romantismo alemão.» O autor segue a ideia da Revista Athenaeum («Um fragmento tem de ser como uma pequena obra de arte») e os seus aforismos dialogam com o pensamento de (entre outros) Pascal, Fernando Pessoa, Angelus Silesius, Shakespeare, Kant, Goethe, Beaudelaire, Ortega & Gasset e Miguel de Unamuno.   O ponto de partida está na página 17 («O problema da ciência é que não pensa; o problema da filosofia é que só pensa») continua na 18 («A ciência procura explicações para hipóteses que não justifica; a filosofia procura refutar as hipóteses da ciência por meio de explicações igualmente injustificadas») para concluir na 20: «Perante as hipóteses da ciência e as explicações da filosofia só nos resta dizer como Francisco Sanches e, presumivelmente antes dele, Arcesilau de Pitane: “nem mesmo sei se nada sei”» O precário das conclusões e explicações percebe-se na página 25: «Nada deve aumentar tanto o sentimento de sem-sentido de todas as nossas explicações como verificar que afirmamos num dia aquilo que podemos negar no outro.» Entre a Arte e a Filosofia fica a força do aforismo: «A diferença entre arte e filosofis reside nisto: a arte não exige a verdade daquilo que constrói, enquanto a filosofia exige a verdade mesmo quando desconstrói.» E fica a definição de fragmento: «O fragmento funciona como um simulacro: remete para uma totalidade que não sabemos sequer se existe ou se se pretende que exista.» Conclusão prematura mas possível: «Talvez a salvação esteja na aceitação e fruição possível daquilo que os deuses têm para nos dar, quer existam, quer não.»  

(Edição: Subterrânea – Colectivo Literário, Prefácio: Cláudia Souza)

 [Um livro por semana 686]


sábado, 30 de abril de 2022

«ente» de António Ferra

O mais recente livro de António Ferra (n.1947) parte do lamento do poeta (ele mesmo) «querem-me mais número de senha que gente» mas mesmo quando lhe dizem que «os poemas são inúteis» ele recomeça porque «um gajo tem de se preparar para a vida eterna».

 O mal-estar do Mundo surge reflectido pelo sujeito do poema: «Ao sábado não trabalho, levanto-me ao meio dia, vale-me o café tardio ao lado dos filósofos de bairro de niilismo em sacos de plástico.» Como solução há uma proposta: «O melhor é ouvir contar uma história / como a daquele trovador de bairro ao terceiro copo / a falar da trela da tia extensível / a passear o cão à noite / de vocabulário a condizer com os sapatos.»

Entre o Amor e a Morte o poema adverte: «basta uma faúlha, um
cigarro mal apagado, uma faísca de raiva logo ardem gritos abafados pelas sílabas do fim»

(Impressão: Gráfica 99, Composição: Pedro Serpa, Desenho: do autor)

[Um livro por semana 685]


quinta-feira, 21 de abril de 2022

«Poemas vadios» de Álamo Oliveira


Autor multifacetado (poesia, romance, conto, teatro, ensaio) Álamo Oliveira (n.1945) surge em novo livro de 3 sequências (Dispersos, Restos, Senil idade) e 69 páginas, cujo ponto de partida é uma reflexão sobre a Poesia e o Mundo: «o que há mais no mundo/são cemitérios de versos/ todos os dias aparecem /versos e mais versos /todos mortos enterrados em livros /no entanto a poesia é contentamento indizível /afecto com carácter de urgência /grito disparado na direcção da liberdade /silêncio em voo de espanto /por isso os versos morrem sempre que alguém os afoga no papel»

A reflexão é do Poeta, ele mesmo: «tremo de medo se a ilha tremer /sinto que a alma sai dentro de mim /cismo que o sismo tem mais que fazer / ai quem me dera ser tempo sem fim. /casas caídas são dores na rua /paira a tristeza sobre o seu olhar /tombam as telhas no colo da lua /a ilha chora nas águas do mar. /esse tremor é pior do que a guerra /é um punhado de pedras de dor / mas uma esperança do ventre da terra /sai a cantar muitos versos de amor.»

Na sequência de nove poemas que começam todos do mesmo modo («perdi a poesia») o da página 34 resiste («perder não é morrer») e o da página 46 faz a ligação ao Amor: «ninguém sabe que os seus olhos /são duas ilhas azuis /a flutuar na liberdade /das palavras e dos amores»

Na sequência final um dos poemas interroga («depois da morte para que serve o medo?») e o último afirma: «O poeta vai continuar a cultivar a veleidade /de que tudo seria mais triste /se não andasse a rimar o pavor da morte /com o sossego infinito do além»

(Editora: Companhia das Ilhas, Direcção: Carlos Alberto Machado, Assistência editorial: Sara Santos, Capa e foto: Rui Melo, Grafismo: Rui Belo)

 [Um livro por semana 684]


quinta-feira, 31 de março de 2022

«Pensamentos» de Giacomo Leopardi

Giacomo Leopardi (1798-1837) é um poeta italiano cujo trabalho teve traduções de nomes como Agostinho da Silva, Albano Martins, Margarida Periquito e Miguel Serras Pereira. Na linha de La Bruyére, Montaigne ou La Rochefoucauld, este volume de 165 páginas integra 111 pensamentos no que em termos simples podemos considerar «moralismo». Vejamos a página 11: «Digo que o mundo é uma liga de malandros contra os homens de bem, de vis contra os generosos.» Na mesma linha se pode ler na página 149: «O homem é quase sempre tão malvado quanto lhe convém.» E na mesma página esta ideia: «É curioso observar que quase todos os homens de muito valor são simples de maneiras e que quase sempre as maneiras simples são tomadas por um indício de pouco valor.»

Na página 91 se lê: «Diz La Bruyére uma grande verdade: que é mais fácil um livro medíocre ganhar fama em virtude de uma reputação já adquirida pelo autor do que um autor ganhar reputação por meio de um livro excelente.» E na página 19 «o costume do século é imprimir-se muito e nada se ler.» Sobre o temor da morte e o desejo de velhice lê-se na página 23: «A morte não é um mal porque liberta o homem de todos os males e juntamente com os bens lhe tira os desejos. A velhice é um mal supremo porque priva o homem de todos os prazeres deixando-lhe porém os apetites e trazendo consigo todas as dores.»

Sobre o quotidiano esta ideia: «Um dos graves erros em que incorrem diariamente os homens é o se acreditarem que os outros guardem segredo.» E outra sobre penas e honras: «Tal como as cadeias e as galés estão cheias de pessoas que se declaram absolutamente inocentes, também os cargos públicos e as honrarias de toda a espécie não são exercidas senão por pessoas chamadas para tal e mau grado obrigadas a fazê-lo.»

Sobre ler e escrever uma curiosa opinião: «hoje que todos escrevem e que não há nada mais difícil do que encontrar quem não seja autor, tornou-se um flagelo o vício de ler ou declamar aos outros as próprias composições.» Sobre a felicidade humana lê-se na página 55: «Os homens são infelizes por necessidade e resolutos a julgarem-se infelizes por acidente.» Sobre o tédio está na página 97: «O tédio é, de alguma forma, o mais sublime dos sentimentos.»

Fiquemos por aqui: «Quem nunca saiu de lugares pequenos onde reinam pequenas ambições e avareza vulgar com um ódio intenso de cada um contra cada qual, toma por fábula os grandes vícios bem como as virtudes sociais sólidas e sinceras. Julga a amizade coisa pertencente aos poemas e às histórias, não à vida. E engana-se.»

(Edições do Saguão, Tradução: Andrea Ragusa e Ana Cláudia Santos, Ensaio: Rolando Damiani, Capa: Desenho de Miguel Ferreira, Paginação e capa: Rui Miguel Ribeiro, Revisão: Mariana Pinto dos Santos e Rui Miguel Ribeiro)

 [Um livro por semana 683]

 

domingo, 13 de março de 2022

«A solidão é como o vento» de Graça Pires


Depois de «Espaço livre com barcos», «Uma claridade que cega» e «Fui quase todas as mulheres de Modigliani», Graça Pires volta a publicar na «Poética Edições» quase 30 anos depois do seu primeiro livro («Poemas») que recebeu o Prémio Revelação da Associação Portuguesa de Escritores. A partir de citações de Herberto Helder e Adonis, o livro de 61 páginas nasce do que podemos designar como poema-resumo: «Encontrou-o à entrada do deserto/absorto, como se conhecesse/todas as invocações do silêncio. /Lia-se nos olhos dele a atracção pelo vento/pelas areias, pelo espaço imenso, pela solidão.»

A solidão do título do livro pode surgir expressa no masculino («Sobre os seus ombros apenas a noite/sempre tão húmida, sempre tão humilhante») mas também no feminino: «Grávida da noite /soube desde logo/que o filho não iria pertencer-lhe. /Adoptaram-no./Antes de o entregar/ela lavou-o demoradamente/com as próprias lágrimas.»

Os poemas são registos qualificados daquilo a que chamamos «vida»: «A superstição é ignorância/diziam-lhe os amigos/ Ela enumerava os medos/que lhe habitavam os gestos:/espelhos quebrados/facas cruzadas, gatos pretos/ uma progressão de alarmes/abrigado na memória/pressentindo catástrofes e azares.» Ou ainda do que podemos chamar «amor»: «Rasgou o retrato em pedaços/Enviara-lho uma amiga/ do grupo do ginásio: ele ao lado deles. /Não gostou. /Ainda tinha no sangue /a vertigem solar /do corpo que amara.» Umas vezes o poema fecha-se no «eu»: «Não frequentou a escola/no tempo de criança que lhe coube. /O trabalho instalou-se desde sempre /na orfandade de suas mãos.»Outras vezes abre-se ao grupo, ao «nós»: «O jantar estava excelente/disseram seus amigos/voltando a encher os copos. /Um rumor de vindimas/propagou-se pela sala.»

Cada poema faz a crónica de uma solidão. Seja na página 42 («Elas retêm múltiplas memórias/que definem a vida que lhes coube.» ou seja n página 47: «Procurou a cicatriz dos dias, o risco da vida/e da morte, o choro dos filhos nas horas aflitas». Mas também a confusão entre Arte e Vida na página 50: «E quanta mágoa no olhar do avô /quando o neto lhe disse em arremesso:/mas isto não é um cavalo a sério, como eu queria.»

(Poética Edições)

 [Um livro por semana 682]

 

quinta-feira, 24 de fevereiro de 2022

«Herdeiro Universal» de José Correia Tavares


Este primeiro livro póstumo de José Correia Tavares (1938-2018) integra nas suas 96 páginas uma divisão com o título de «Cronista da Reino» mostrando que o autor perfila lado a lado (dito de modo simples) o «eu» e o «nós», tal como assinala Mário de Carvalho no prefácio: «junta nos seus versos o absurdo, a ternura, o espanto, a ironia e o sarcasmo». O título do volume está na página 21: «Facturando Bem e Mal/Erecto, só duas pernas/Sou herdeiro universal/Desde o tempo das cavernas».

O poeta apresenta-se em três quadras. Primeira - «Em todo e qualquer momento/Mas sempre de face nua/A mim é que represento/No grande palco da rua.» Segunda - «Por muito gostar de ti/Também pela poesia/Olhei coisas que não vi/Vi coisas que nem havia.» Terceira - «No fim de longa romagem/Por terras que nem sabia/Encontrei a personagem/Da minha biografia.»

Portugal está noutras três. Primeira - «Desde Beja até Marvão/Barros e areias sem nome/São estas terras de pão/Também aquelas da fome.» Segunda - «Ao leme perdeu o norte/Coisa com coisa não diz/Merecia melhor sorte/Este barco – meu país.» Terceira - «Versos que passo ao papel /Com nível, fio de prumo/Doces ou sabendo a fel/O meu país em resumo.»

Entre o Poeta e o País surge a Poesia em mais quadras. Primeira - «Nem sei se isto te magoa/Tanta obra publicada/Basta um livro do Pessoa/Para não valeres nada.» Segunda - «Autoria veneranda /Ou um estilo mais leve/só a palavra comanda /Não quem os livros escreve.» Terceira - «Se achasse não ser nada/O que faço em poesia/Adeus já noite fechada/Nunca mais ninguém me via.»

A cultura está representada em mais três quadras. Primeira - «Eu prefiro a alegria/mais pimba dos arraiais/À grande sensaboria/Destes serões culturais.» Segunda - «O ter dito bem de mim/Deixou-me desconfiado/Elogio dum Caim/Não é letra do meu fado.» Terceira - «É bem do povo miúdo/Minha seiva elaborada/Doutor só pelo canudo/Valeria pouco ou nada.»

Fica a chamada de atenção para um livro fascinante e singular no qual a Morte, as Artes e Letras, o Amor e até o Futebol surgem em quadras certeiras de um trabalho que continua: «Retiro do meu tear/Manta jamais concluída/O fio para enfiar/As contas que deito à vida.»

(Editora: adab Edições Húmus, Prefácio: Mário de Carvalho, Capa: Natércia Tavares, Apoio: Município de Gouveia)     

[Um livro por semana 681]

 

quinta-feira, 10 de fevereiro de 2022

«A Mãe» de Maximo Gorki

 


A Associação dos Jornalistas e Homens de Letras do Porto celebra os 100 anos da Revolução Socialista de Outubro e os 150 anos do nascimento de Maximo Gorki  (1868-1936) publicando «A Mãe», edição fac-símile da edição portuguesa (Bertrand) em 1907 com sobrecapas originais de Ana Biscaia, Augusto Baptista, Emerenciano Rodrigues, Inma Doval Porto, João Bicker, Júlia Pintão, Luís Mendonça e Roberto Machado.

«A Mãe» é um livro de 1906, um clássico, romance lido pelas mais variadas gerações nas mais diversas geografias. Pélagué parece ser uma mãe como as outras («as mães não desejam senão afagos») mas é algo mais; perante a prisão do filho, oferece-se para introduzir panfletos na fábrica: «Hão-de ver que mesmo com Pavel na cadeia, a sua mão os atinge!». O seu comportamento assenta na ideia central do Cristianismo: «creio em Jesus Cristo e nas suas palavras – Amar o próximo como a nós mesmos». Os motivos da prisão de Pavel estão na página 14: «Leio livros proibidos. Proíbem a sua leitura porque dizem a verdade da nossa vida, da vida do povo.» Mas não foram só os livros que o levaram à prisão, também os discursos e as ideias. Vejamos uma afirmação: «Somos nós que construímos as igrejas e as fábricas, que fundimos o dinheiro. Sempre e em toda a parte somos os primeiros no trabalho enquanto nos atiram para os últimos lugares da vida.» e uma conclusão: «não somos idiotas nem brutos, não queremos só comer mas também viver como é próprio dos homens.»

Num livro de 431 páginas o protagonismo não é apenas de Pélagué e Pavel. Vivem e falam neste romance entre outros André, Fedia, Natacha, Maria, Iegór, Sachenka, Rybine e Nicolao. Apenas uma voz difere do tom geral, Isaías, operário com mentalidade de patrão: «Se eu governasse mandava enforcar o teu filho para lhe ensinar a não desnortear o povo.»

Fiquemos com a página 129. «Onde estão os felizes?» Isto porque todos os livros poderiam te como título «Onde está a felicidade» mas Camilo Castelo Branco já o escreveu primeiro…

(Editora: AJHLP, tradução: S. Persky, Versão portuguesa: Augusto de Lacerda, edição original: Antiga Casa Bertrand 1907, Capa: Emerenciano Rodrigues)

[Um livro por semana 680]

 

segunda-feira, 24 de janeiro de 2022

«José Afonso ao vivo» de Adelino Gomes


Trata-se aqui de um belíssimo livro/disco de 84 páginas com dois CDs e um LP dos concertos de José Afonso em Coimbra (4-5-68) e Carreço (23-2-80). Adelino Gomes (n.1944) chamou-lhe «Uma fagulha colectiva» embora na página 3 se leia «Zeca Afonso inédito» e na capa se leia «José Afonso do vivo». O trabalho deste livro/disco confirma em pleno as palavras de Jacinto Baptista em 1978 no jornal «Diário Popular»: «O jornalista é o historiador do quotidiano». Na verdade Adelino Gomes estava no Cais da Rocha Conde de Óbidos em 9-9-67 e queria entrevistar José Afonso (1929-1987) para o programa PBX no RCP mas a primeira resposta é adversativa: «Porquê? Para quê? Deixei-me dessas coisas. Importantes, umas cantiguetas?» . Adelino Gomes não desiste e recorre a fotografias, recortes de jornais, cartazes, ofícios da GNR, ofícios da PIDE, cartas, bilhetes para espectáculos, convites, recados. Assim organiza uma reportagem, o mesmo é dizer, uma cartografia sentimental dum certo tempo português exacto e definido.

A primeira parte do livro vai de 9-9-67 (chegada da navio «Angola») a 28-12-68, data do espectáculo na Gruta das Lapas (Torres Novas) com intervenção directa do pároco Amílcar Fialho, natural de Santa Catarina. A segunda parte avança para 28-2-1980 com os pormenores do concerto realizado nesse dia às21h30m na Sociedade Instrução e Recreio de Carreço. O resto está no livro e nenhuma nota de leitura pode substituir. Fiquemos com as palavras finais de Adelino Gomes: «Falei com mais de uma centena e meia de pessoas. Pessoalmente, via telefone e inúmeras vezes por email. Apenas uma pequena parte verá o seu nome citado neste trabalho. Esse foi sempre, enquanto jornalista, um dos meus dramas.»      

Resumir um livro de 84 páginas em 23 linhas também pode ser visto como um drama mas como diz o lugar-comum de todos nós «não há-de ser nada» O importante é que o convite a ler o livro e a ouvir os CDs ou o LP seja aceite porque um caso destes só acontece uma vez na vida.

(Editora: Tradisom, Introdução, investigação e texto: Adelino Gomes, Nota do editor: José Moças. Posfácio: Ricardo Romano, Concerto de Coimbra: Jorge Rino, Concerto de Carreço: Manuel Mina, Design: Rodrigo Madeira, Revisão: Laura Alves, Apoios: Fundação INATEL, Municípios de Coimbra, Torre de Moncorvo, Santo Tirso, Setúbal, Viana do Castelo e Grândola)

[Um livro por semana 679]


quinta-feira, 13 de janeiro de 2022

«A mesa está posta» de Jorge Silva Melo


Depois de «Deixar a vida» (2002) e «Século passado» (2007) Jorge Silva Melo (n.1948) surge com este livro de 407 páginas que é de todo impossível sintetizar em 31 linhas. Crítico de cinema e de teatro, actor, argumentista, professor, tradutor, ensaísta, dramaturgo, realizador de cinema, JSM trabalhou como assistente de Peter Stein e Giorgio Strehler, sendo fundador do Teatro da Cornucópia e director do Grupo Artistas Unidos. Bastaria a «saga maldita» dos Artistas Unidos no «Espaço A Capital» para organizar um inventário de acções miseráveis, silêncios criminosos, alheamentos perversos, traições canalhas e mentiras tenebrosas: «Fomos para sítios que detestei como o Teatro Taborda onde nem sequer a chave tínhamos! Depois o Convento das Mónicas onde até nos cortaram a electricidade para nos obrigarem a sair…» A sua paixão pelo Teatro nasceu muito cedo: «Foi lá em cima, no Tivoli entrando pela porta das traseiras, que comecei a ver teatro. Foi por 1958-9, Era uma coisa cá comigo, como se fosse um segredo.» Das suas memórias se pode extrair uma ideia de Teatro: «Um segredo ente o palco e quem, deslumbrado, vê?» Ou sobre a Vida: «Mas não é isso a vida, histórias que vamos inventando nessa vida sempre mais pequena do que o nosso desejo?» Sobre Teatro o autor não pergunta mas declara: «O teatro que me interessa não tem nada, nada, nada mesmo nada a ver nem com a magia nem com as variedades.» E sobre o Cinema, mais adiante: «A minha formação é o cinema, estudei cinema, fiz cinco longas metragens e alguns documentários: em que é que escrever uma peça é diferente de escrever um argumento?» A propósito de «A Estalajadeira» de Carlo Goldoni surge uma ideia: «Sim gosto de ver uma senhora a passar a ferro, gosto do realismo, (…) ingénuo, analítico. E quando penso no teatro é raro não pensar logo em copos, pratos, louças, cadeiras, mesas. Sim, venho daí.» Enda Walsh está na página 159 («Andamos todos à volta do Christy») e Tchékhov na 279: «Querem heróis, heroínas, efeitos cénicos. Mas na vida as pessoas não andam aos tiros nem fazem declarações de amor a toda a hora nem a toda a hora se dizem coisas inteligentes.» Ao lado da vida fica a força da morte: «10 de Agosto, 2018. Sei do suicídio, no Porto, de um actor que não conheci, amigo de amigos. Rapaz ainda, 31 anos. Fiquei tão triste. Chamava-se António Alves Vieira. (Que querem?, sinto culpa por não o ter conhecido, gostava de ter estado com ele, de o ter visto, actor. Porque gostava de o ter honrado naquilo mesmo que fazia, o teatro que quis.) Penso nesse rapaz que não conheci.» Uma nota final para uma paixão antiga: «Volto sempre a Goldoni, nasceu ali um teatro, nasceu um mundo. Não terá sido Goldoni a inventar o sorriso, essa forma que ele tem de acariciar as fraquezas dos homens?» Um livro a não perder.

(Editora: Livros Cotovia, Organização: Leonor Buescu, Foto da capa: Jorge Gonçalves, Paginação: Joana Figueira, Apoios: Fundação Calouste Gulbenkian, Direcção Geral das Artes, Ministério da Cultura)

 [Um livro por semana 678]

 

quarta-feira, 5 de janeiro de 2022

«O pórtico da Glória» de Mário Cláudio

Depois de «A Quinta das Virtudes» e «Tocata para dois clarins», Mário Cláudio (n.1941) encerra neste livro o chamado «tríptico do sangue da tribo» - um conjunto de romances nos quais a ficção e a realidade se cruzam de modo feliz. Não se trata apenas da vida e da morte de um casal (Diego e Hermínia) nem da cartografia das indústrias organizadas por um natural de Béjar (Espanha) a viver no Porto (bisavô do narrador) mas também, em paralelo, o tempo da cidade tripeira entre os finais do século XIX e o início do século XX, o viver coletivo pois revela  o respirar da cidade, sua paisagem e seu povoamento. O título do volume surge com o sonho da página 70: «Saímos ambos da Igreja do Salvador de Matosinhos, tudo conforme ao que, na realidade, se dera e eis que de repente verifiquei que se abria diante de nós um certo pórtico, por onde eu nunca passei, a não ser em estampas e que é chamado da Glória e que confere acesso à Catedral de Santiago de Compostela.»

O ponto de partida para as 139 páginas é a biografia dos onze filhos que Diego e Hermínia trouxeram ao Mundo. A técnica de conjugar ficção e realidade surge expressa na página 17 («Mas é de clara vantagem para quem escreve, na atenção aos tais incidentes de negligência e dramatismo, com que o acto religioso se preencheu, acrescentar alguma coisa àquilo que quedou por inteiro inventado») e, mais à frente, na 21: «E eu faço com que desapareça agora o austero José e deixo Diogo sozinho, a vaguear por ali, tímido em excesso». Num outro passo se articula de novo esta dupla inscrição: «Chegou a altura de celebrar as núpcias da minha avó Joana II e não encontro caminho para a pena que a arrastará porque junto de nós é que se torna mais difusa a escrita, adulterada pela arbitrariedade das razões que a sustentam.» Um dos aspectos fascinantes deste cruzamento está numa fala da página 65: «…terá a criatura sangue cigano, pois que passa o tempo de terra em terra e nem sabemos donde provém e porque razões se radicou por cá e arrisca-se a mana a que lhe corte ele o pescoço com uma navalha ou a que faça um assado de porco doente que algum lavrador enterrou?». A sombra do grande escritor nascido em Lisboa surge na página 77: «Naquela pequena praça, vizinha dos cenários de mais de um crime hediondo, a que não era alheia a sombra do espectro de Camilo Castelo Branco, principiava assim um entrecho de sucessos e de fracassos, marcado por razoável dose de traições.»

Vencedor do Prémio PEN Clube Português de Narrativa e do Prémio Eça de Queiroz, surge agora em segunda edição. Um livro a não perder por duas grandes razões. Por um lado prova que a Literatura é sempre uma homenagem à Literatura. Por outro lado Mário Cláudio realiza entre memória e ficção um feliz artesanato nestas páginas, juntando de novo tudo o que a morte separou.          

(Editora: Publicações Dom Quixote, Edição: Maria do Rosário Pedreira, Revisão: Madalena Escourido, Capa: Rui Garrido, Retrato original: Fernando Lanhas)

[Um livro por semana 677]