domingo, 13 de março de 2022

«A solidão é como o vento» de Graça Pires


Depois de «Espaço livre com barcos», «Uma claridade que cega» e «Fui quase todas as mulheres de Modigliani», Graça Pires volta a publicar na «Poética Edições» quase 30 anos depois do seu primeiro livro («Poemas») que recebeu o Prémio Revelação da Associação Portuguesa de Escritores. A partir de citações de Herberto Helder e Adonis, o livro de 61 páginas nasce do que podemos designar como poema-resumo: «Encontrou-o à entrada do deserto/absorto, como se conhecesse/todas as invocações do silêncio. /Lia-se nos olhos dele a atracção pelo vento/pelas areias, pelo espaço imenso, pela solidão.»

A solidão do título do livro pode surgir expressa no masculino («Sobre os seus ombros apenas a noite/sempre tão húmida, sempre tão humilhante») mas também no feminino: «Grávida da noite /soube desde logo/que o filho não iria pertencer-lhe. /Adoptaram-no./Antes de o entregar/ela lavou-o demoradamente/com as próprias lágrimas.»

Os poemas são registos qualificados daquilo a que chamamos «vida»: «A superstição é ignorância/diziam-lhe os amigos/ Ela enumerava os medos/que lhe habitavam os gestos:/espelhos quebrados/facas cruzadas, gatos pretos/ uma progressão de alarmes/abrigado na memória/pressentindo catástrofes e azares.» Ou ainda do que podemos chamar «amor»: «Rasgou o retrato em pedaços/Enviara-lho uma amiga/ do grupo do ginásio: ele ao lado deles. /Não gostou. /Ainda tinha no sangue /a vertigem solar /do corpo que amara.» Umas vezes o poema fecha-se no «eu»: «Não frequentou a escola/no tempo de criança que lhe coube. /O trabalho instalou-se desde sempre /na orfandade de suas mãos.»Outras vezes abre-se ao grupo, ao «nós»: «O jantar estava excelente/disseram seus amigos/voltando a encher os copos. /Um rumor de vindimas/propagou-se pela sala.»

Cada poema faz a crónica de uma solidão. Seja na página 42 («Elas retêm múltiplas memórias/que definem a vida que lhes coube.» ou seja n página 47: «Procurou a cicatriz dos dias, o risco da vida/e da morte, o choro dos filhos nas horas aflitas». Mas também a confusão entre Arte e Vida na página 50: «E quanta mágoa no olhar do avô /quando o neto lhe disse em arremesso:/mas isto não é um cavalo a sério, como eu queria.»

(Poética Edições)

 [Um livro por semana 682]

 

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