quinta-feira, 23 de setembro de 2021

«A PIDE e os seus informadores – O caso de Inácio» de Paulo Marques da Silva

Paulo Marques da Silva (n.1966) depois de «Fernando Namora por entre os dedos da PIDE» (2009), «Condeixa – paisagem, memória e história» (2010), «Deniz Jacinto entre duas paixões – o Teatro e a Liberdade» e «Pois não te resta ainda o Mundo?» (2015) sendo dois livros em co-autoria, surge com este «A PIDE e os seus informadores – O caso de Inácio» (2019) que faz a cartografia tenebrosa dum tempo (anos 30 a 60 do século passado) e de um lugar (Coimbra e seus arredores) inventariando as suas instituições e os elementos que não estavam com o Estado Novo. O ponto de partida é a página 63: «Todos os Organismos Oficiais estão cheios desta gente, tais como: Correios, Hospitais da Universidade, Governo Civil, Câmara Municipal, Polícia Judiciária, Polícia de Segurança Pública, Tribunais, Grémios e Regimentos. As ligações são a toda a hora e momento, a sua acção estende-se por toda a parte e hoje o Estado Novo é arrasado, alto e bom som, em todos os pontos da cidade sem o mais pequeno rebuço. Os jornais da cidade são todos dirigidos por elementos avançados já referenciados e os correspondentes dos jornais de Lisboa e Porto na mesma. Todos os Cafés da cidade são pontos de reunião de elementos avançados que, abertamente, ali fazem o seu trabalho.»

O delírio de Inácio vai ao ponto de chamar «reviralhista» a Afonso Duarte e «comunista» a Joaquim Veríssimo Serrão: «… dentro da Universidade e em grupos desafectos foi bastantes vezes notada a propaganda que o SERRÂO fazia, sendo notória a sua acção avançada» O uso de certas palavras (seita, perlenga) denota não só agressividade mas também ignorância: «O alferes Rosa Neto tinha em seu poder vária papelada e até jornais da Seara Nova». Noutro passo refere o Ateneu de Coimbra: «São maus e rancorosos. É um agrupamento que, num caso de conflito interno, vem imediatamente para a rua, constituindo brigadas de choque.» Para além de propor o encerramento de Clubes e Associações, Inácio critica a pouca firmeza das autoridades: «Como é sabido não se efectuaram prisões por causa dos desmandos efectuados e agora os homens do MUD e comunistas andam a apregoar que se o não fizeram é derivante da fraqueza do Governo que se vê num beco sem saída e até sem prestígio. O tempo do papão e do Tarrafal já passou, dizem.» O Clube fechado em Pereira do Campo vai renascer sob o patrocínio da FNAT: «O estudante Luís Mexia, sobrinho do Dr. Mário de Figueiredo, que eles colocaram à frente, é um pateta mor, sem personalidade alguma. É comido e levado com facilidade por tal «malta» que o tem ali apenas como rótulo. É com estas habilidades que o comunismo vai alastrando e aparece em todos os sectores.»      

(Editora: Palimage, Foto da Capa: Maria João Reis Torgal, Colecção: Raiz do Tempo, Apresentação: Luís Reis Torgal)

 [Um livro por semana 673]


quarta-feira, 8 de setembro de 2021

Dissertação para uma fotografia a preto e branco na eira

Há um homem a sorrir que pega na joeira e, com toda a perícia, faz saltar o feijão e a sua palha para que o vento os separe no ar e assim o regresso à joeira seja apenas dos feijões depois de a palha ter sido levada pela brisa. Esse gesto tem sido repetido ao longo do tempo mas as mais recentes gerações já não o dominam sem sequer o lembram; basta neste caso uma fotografia a preto e branco tirada por uma jovem arquitecta portuguesa nascida em Lisboa no ano de 1978. O protagonista da fotografia nasceu em 1927 e é o avô paterno da autora deste retrato em movimento a aproveitar a brisa do Oceano Atlântico que vem do lado de São Martinho do Porto para limpar a palha do feijão em Santa Catarina. Os tempos modernos alteraram essa gramática de sementeira e colheita, esse calendário da terra entre a chuva do Inverno e o sol do Verão, essa regularidade muito antiga e, afinal, de todos os anos; hoje o feijão aparece nas prateleiras das grandes superfícies em latas com origem na China ou na Tailândia. Passa-se com o feijão o mesmo que acontece com os caracóis: descobriram alguns que os mais baratos são os de Marrocos e, por isso, dão mais lucro a quem os cozinha com cebola e orégãos para os vender em pratinhos nas esplanadas ou à beira do mar. O sabor perdeu-se mas o lucro aumentou em termos exponenciais. Apanhados ao romper do dia nas searas e nos canaviais à beira das linhas de água, os velhos caracóis da minha juventude tinham um travo genuíno que se perdeu para sempre com a chegada de toda esta modernidade comercial. Não há nada a fazer contra isso. Basta o pranto e a lamentação desta crónica povoada de nostalgia e de palavras.       

[Crónicas do Tejo 294]