domingo, 20 de dezembro de 2020

Escritos sobre Freud» de Fernando Pessoa

Organizado por Cláudia Souza e Nuno Ribeiro, autores da edição e do estudo introdutório do recente «A família Crosse» (Apenas Livros), este livro de 76 páginas integra múltiplos registos da leitura que Fernando Pessoa fez sobre Freud. Damos relevo apenas a alguns aspectos pois o espaço não permite mais. Primeiro uma observação sobre a crítica literária: «Grande parte da crítica moderna, desde que se intoxicou com freudismos (com ou sem Freud) é uma maneira de se tornarem inutilmente complicadas coisas por vezes simples, outras vezes já de si complicadas e que exigiam antes simplificação que outra complicação.» Depois o excerto dum poema de Álvaro de Campos datado de 17-8-1930: «A liberdade, sim, a liberdade! / A verdadeira liberdade! / Pensar sem desejos nem convicções. / Ser dono de si mesmo sem influência de romances! /Existir sem Freud nem aeroplanos, /Sem cabarets, nem na alma, nem velocidades, nem no cansaço!» Em terceiro lugar uma citação da carta a João Gaspar Simões de 11-12-1931: «Ora a meu ver (é sempre «a meu ver») o Freudismo é um sistema imperfeito, estreito e utilíssimo. É imperfeito se julgamos que nos vai dar a chave, que nenhum sistema nos pode dar, da complexidade indefinida da alma humana. É estreito se julgamos, por ele, que tudo se reduz à sexualidade pois nada se reduz a uma coisa só nem sequer na vida intra-atómica. É utilíssimo porque chamou a atenção dos psicólogos para três elementos importantíssimos na vida da alma e, portanto, na interpretação dela: o subconsciente, a sexualidade e a conversão de certos elementos psíquicos em outros por estorvo ou desvio dos originais» No fim uma citação na qual a ironia de Fernando Pessoa vem ao de cima: «A humanidade divide-se em três classes sociais verdadeiras: os criadores de arte, os apreciadores de arte e a plebe. Julgar que ter automóvel é ser feliz é o sinal distintivo do plebeu.» 

(Editora: Apenas Livros, Capa: Imagem do Espólio de Fernando Pessoa na BNP)

[Um livro por semana 657]

 

segunda-feira, 7 de dezembro de 2020

O fascismo ou «tirou a carta mas vai puxar terra para os pés»

Meu pai não tinha sandálias de vento. No ano de 1956 meu pai tinha uma bicicleta cor de cinza e eu sempre soube distinguir, na pequena descida da Várzea do Lameirão, o som inconfundível da sua roda pedaleira em descanso. Para os outros era apenas mais uma bicicleta; para mim era a bicicleta. Não havia outra. Foi nessa bicicleta que ele fez viagens repetidas até Santarém para tirar a carta de condução. Eram noventa quilómetros por semana, por estradas péssimas, debaixo de chuva, levando batatas e azeite de casa para comprar todos os dias o peixe mais barato no mercado de Santarém. Pedalou sacrifícios, suores, poupanças, vento agreste e o mais que natural desejo de fugir ao seu destino traçado de cavador. Ou como dizia o senhor padre Castelão na missa de Domingo anunciando futuros casamentos, «profissão jornaleiro». Porque viviam, fingiam que viviam, da jorna paga aos Domingos de manhã no largo maior da terra depois da missa e antes da ida à taberna. Quando meu pai voltou orgulhoso da sua carta de ligeiros, pesados e serviço público, o patrão resolveu contratar um motorista nascido numa aldeia perto da Alcobaça. Vingou-se assim do seu analfabetismo total: como não conseguiu tirar a carta de condução, pagou uma fortuna a uns aldrabões que o receberam num café das Caldas da Rainha. Saíram pelas traseiras e deixaram-no só, sem dinheiro e sem carta de condução. Foi assim, na trilogia Deus/Pátria/Autoridade, em Santa Catarina, uma pequena aldeia da Estremadura, que aprendi o sentido exacto e total da palavra fascismo. Afinal uma palavra ainda desconhecida para mim nesse já distante ano de 1956. Bastaram dez palavras assim pronunciadas: «Tirou a carta mas vai puxar terra para os pés».   

[Crónicas do Tejo 240]

(Fotografia da Colecção de JCF)


domingo, 22 de novembro de 2020

Saudação breve a Ana Carolina


Eu te saúdo oh! Ana Carolina, menina pequenina envolta em cor-de-rosa numa alcofa de ternura entre o olhar doce da tua mãe e a força do teu avô, entre o frio da tarde a anunciar hipóteses de chuva e a minha pressa em te conhecer. Tu não sabes mas minutos depois de te ter conhecido, eu comprei uma embalagem de beijinhos a fiz-me à estrada a caminho de Lisboa. Tu não sabes mas nessa tarde choveu muito. As terras por fim encharcadas fizeram deslizar essa água fértil para as valetas. Passei pelas Gaeiras, pela Ponte Seca, pela Sancheira Grande, pela Palhoça, pelos Carreiros e pelo Cercal, sempre debaixo de uma chuva que nos anunciava e nos trazia de facto a fertilidade. E tu dormias descansada nos braços do teu avô dando à tua mãe um pouco de descanso nas rotinas e nas tarefas diárias perante um recém-nascido. Tu não sabes ainda mas a fertilidade começa pela água e eu já não via chover assim desde 2003. Aquilo a que chamamos «vida» começa com um momento que se define como «o rebentar das águas». Pequena e indefesa, oh! Ana Carolina tu não sabes como gostei de te conhecer e de fazer esta viagem entre as Caldas da Rainha onde ficaste e Lisboa onde te escrevo esta saudação breve e emocionada. Vejo, naquela chuva que caiu poucos minutos depois de te conhecer, um anúncio de vida e de alegria contra a aridez hostil da seca do ano que passou. As valetas da estrada velha entre as Caldas e Lisboa ficaram cheias de água nessa tarde em que te vi pela primeira vez. E os meus olhos cansados ficaram com uma neblina de júbilo. Graças a ti oh! Ana Carolina e à tua alegria cor-de-rosa dentro de uma alcofa de ternura. Porque o teu rosto envolto em rosa foi uma presença efectiva no espelho do meu velho Citroen, cinzento e cansado. E cheirava a maçãs no pequeno habitáculo entre a pressão da chuva e o negro asfalto da estrada velha das Caldas até ao Cercal.      

[Crónicas do Tejo 239]

(Óleo de Gary Melchers)


quinta-feira, 5 de novembro de 2020

O cais dos soldados em Londres


Estamos em Blackheath. Na Morden Road passamos à porta da casa do compositor Charles Gounod que aqui viveu nos tempos da guerra entre a França e a Prússia. Vinha à tarde no comboio de Charing Cross e alugava uma carruagem à porta da estação dos comboios. Mais à frente, no planalto, ficamos a saber que a actual A2, um dos itinerários principais de Inglaterra foi, em tempos recuados, a estrada romana para Canterbury. Henrique VIII, entre pompa e circunstância, aqui recebeu Ana de Cléves como futura esposa, no ano de 1540. Por sua vez Wat Tyler juntou em 1381 uma assembleia de camponeses revoltados nesta mesma estrada. Hoje o coração desta imensidão verde recebe mães com crianças, passeadores de cães, papagaios de papel, carrinhos de choque e jogatanas intermináveis de futebol –muda aos seis, acaba aos doze. Os circos, tal como as caravanas de ciganos, já são mais raros. Foi neste relvado sem fim à vista que nasceram alguns clubes de rugby e de futebol. Um deles, o Blackheath Football Club, fez parte dos pioneiros que, em 1863, na Freemason´s Tavern, criaram as leis do moderno futebol, tornando a sua prática independente do rugby. Cruzando em diagonal o Greenwich Royal Park, cedo chegamos à zona do mercado a funcionar em grande aos sábados e domingos. Muito perto das antigas cozinhas onde os velhos marinheiros, sem família e sem dinheiro, vinham às sopas reais, surgem as mais inesperadas lojas. De antiguidades, lhes chamamos em Portugal. São coisas ditas efémeras: mapas, cartazes, postais ilustrados, livros antigos, fotografias, discos LP e EP, pequenos móveis úteis às costureiras antigas, no tempo das libras se dividirem em xelins e em dinheiros. Nessa rua descubro o conceito activo e prático de fundo editorial: compram-se cinco livros por cinco libras, cada livro mais barato do que uma viagem de autocarro. Vejamos um conjunto: uma história breve do Jazz, um livro da Penguin sobre pássaros, uma biografia de Frank Sinatra, a vida do guarda-redes mais lendário do vizinho Charlton Athletic e um guia da Londres, bairro a bairro, de Barnet e Merton, de Ealing a Lewisham.  Mas apetece voltar atrás como se o efémero se pudesse suspender e transformar em permanente, algures numa estante. Não resisti e trouxe uma gravura mostrando Portugal como um leão e Espanha como uma mulher. Gravura antiga, percebe-se pelas bandeiras. Século XIX, sem dúvida. Há lojas de roupa em segunda mão, boa e barata, devidamente limpa e reclassificada que as pessoas já se habituaram a procurar uma vez por semana para ver as novidades. Os lucros dessas lojas revertem para apoio da investigação e da luta contra o cancro. Os ingleses de aqui ao pé da porta gostam de conservar os objectos do passado. Em Blackheath, Age Exchange é o nome desta loja especial na qual se reproduz o ambiente de um estabelecimento comercial dos anos 40, com balcão, balanças e moedas da época da II Guerra Mundial. Já passei férias em Southwark, na City (Barbican) e em Blackheath; faço sempre aproximações a Lisboa. A Southwark chamava Terreiro do Trigo, ao Barbican chamava Gulbenkian e a Blackheath chamo Restelo. No primeiro caso o rio ali mesmo à beira, no segundo os jardins e os prédios com o brutalismo dos anos 60 e 70, no terceiro caso as grandes avenidas com casas bonitas e árvores frondosas. Há uma comum curiosidade. Entre o Terreiro do Trigo e Santa Apolónia havia em temos o Cais dos Soldados. Tal como em Greewich havia o cais de onde partiam jovens marinheiros, soldados da Rainha, os mesmos que anos mais tarde, sem família e sem dinheiro, terão a sua sopa diária nos edifícios da Escola Naval. É dessa rua, do outro lado dessa rua de Greenwich que trago como memória de uma memória, a gravura onde Portugal é um leão e a Espanha uma mulher.

     

sexta-feira, 23 de outubro de 2020

«Matéria avulsa» de Manuel Simões

O mais recente livro de Manuel Simões (n.1933) indica na capa um resumo («contos, crónicas e afins») e tem 131 páginas. Poeta, ensaísta, tradutor, Manuel Simões tem sido editor («Nova Realidade»), jornalista (Revista «Vértice»), professor no ensino secundário (Escola Veiga Beirão) e nas Universidades de Bari, Veneza e Florença, sendo fundador da Revista «Ressegna Iberística» em Veneza no ano de 1978. Os contos são cinco, as crónicas são onze e a marginália (afins) inclui dezoito textos sobre vários temas e autores: Futurismo, Guerra Colonial, Revistas «Vértice» e «Sol Nascente», Alberto Pimenta, Luís Filipe Barreto, Guilherme de Azevedo, Soror Violante do Céu, António José Saraiva, Giuseppe Tavani, Padre António Vieira, José Cardoso Pires, Infante D. Pedro (das sete partidas) , Franco Menegalli, Luís António Verney, Ana Hatherly e António Mega Ferreira.  

Como convite à leitura fica um excerto da crónica sobre a cidade de Veneza: «Veneza é uma cidade de contrastes. Parece-nos, à superfície, a mais cosmopolita das cidades histórias mas, conhecendo-a no seu respirar mais íntimo, revela-se no seu provincianismo inesperado, no seu mau gosta dos objectos propostos como «lembranças» que atraem o turista da classe média, sem capacidade para exercer uma «crítica do gosto». De qualquer modo não é a cidade ideal pata se viver: o clima é frio, húmido, com os longos dias (ou semanas) de nevoeiro intensíssimo de Outubro a Abril, quente e asfixiante no Verão; e há ainda os turistas que preenchem completamente as ruas e as praças («campi»), cada vez em maior número, o que não permite uma liberdade de movimentos. Estes são, porém, os turistas que a visitam mais demoradamente, porque a maior parte, a dos grupos de agências de viagens, dorme em Mestre por ser mais económico, é conduzida de autocarro até à entrada da cidade, metida nos «vaporetti» até S. Marcos, visita a praça, a basílica e às vezes o palácio, regressa a Mestre passado pelo Canal Grande e parte de novo para outro destino: Veneza está vista.»

(Editora: Colibri, Capa: Raquel Ferreira)

 [Um livro por semana 655]

 

quinta-feira, 15 de outubro de 2020

«Pretérito presente» de Maria Cecília Correia

Maria Cecília Correia (1919-1993) é uma autora reconhecida pelos seus livros infanto-juvenis  - como, por exemplo, «Histórias da minha rua» (Portugália Editora) vencedor do Prémio Maria Amália Vaz de Carvalho em 1954. A edição recente deste livro de 1976 é comemorativa do seu centenário de nascimento. O título («Pretérito Presente») é um achado pois (todos o sabemos) o passado está sempre presente e o futuro nunca o vivemos, apenas o podemos imaginar.

Trata-se de um livro de tripla inscrição (crónica, poesia, cartas) que logo na primeira crónica diz ao que vem: «Nasci no signo da Rosa. É talvez um signo único, mas um signo como outro qualquer. Em Novembro, no quarto da Mãe, havia uma rosa. Nada de especial, julgo. Não sei em que jarra, em que cómoda, em que mesa, mas ela estava lá quando eu nasci. Hoje existe hum velho embrulho, folhas secas, quase desfeitas e uma letrinha de tinta apagada que diz «flor que assistiu ao nascimento da pequenina Maria.» Como convite à leitura, citamos um poema na página 77, «Jardim sem ninguém»: «A sombra das pombas / que bebem no lago: / dois e dois são quatro. / O voo das asas que escondem o sol: um e um são dois. / O banco onde estou sentada sozinha: / Jardim sem ninguém.» Na página 93. excerto de uma carta a Maria Eulália de Macedo: «Estou apaixonada, Lala. Um estado de paixão constante mas difusa. Apaixonada por tudo. Ontem parei na pontezinha do ribeiro e arrumei à água duas flores brancas  que boiaram, seguiram, encalharam. Elas faziam sombra na água limpa; com a sua sombra reflectiam a luz. Tudo era puro.» Na página 109, um excerto da carta a Alice Gomes: «Também sei o que é perder casas. Até aos 11 anos perdi três. E a idade nada tem a ver com o que eu senti. Tinha oito anos quando se vendeu a casa dos meus Avós em Viseu. Compreendi que poderia esquecer-me dela e então todas as noites a «passava em revista», de alto a baixo. Escuso de te dizer que ainda hoje a tenho inteirinha.»        

(Edição: António Castilho, Capa e Paginação: António Castilho e Eleonor Castilho, Ilustração: António Castilho, Cronologia: Eleonor Castilho)

[Um livro por semana 654]

 

terça-feira, 6 de outubro de 2020

«A luz de Pequim» de Francisco José Viegas

Neste seu nono livro com o inspector Jaime Ramos em figura principal, Francisco José Viegas (n.1962) define o submundo da noite portuense como «uma guerra civil na cidade» e junta, como numa oração, dois Mundos: o dos Homens e o dos Deuses. Entre o precário da Vida e o inevitável de Morte, só o Amor resolve e abre uma luz sobre o Mundo. Tal como na Contabilidade, o escritor assina o Inventário e o leitor estabelece o Balanço que se divide em Activo, Passivo e Situação Líquida. Não por acaso o escritor argentino Jorge Luís Borges se refere a Moncorvo como a terra dos seus avós. Sempre que alguém invoca o seu nome em qualquer parte do Mundo, é Portugal que é lembrado e referido. Não esquecer: foi um apaixonado pela literatura policial. O livro parte de uma descrição de um crime em Moncorvo mas a sua geografia não se limita a Trás-os-Montes e chega a Pequim: as páginas375 e 395 referem de modo explícito «a luz da Pequim».

Jaime Ramos surge na página 15 como «um monumento classificado como velharia que mais tarde ou mis cedo seria removido o seu pedestal e substituído por um halograma» e na 27 como «um homem tolerado, uma sombra do que já fora, uma respiração ofegante que subia degraus numa casa deserta e que conhecia a penumbra da suspeita, uma desconfiança que as novas gerações usavam como método de gestão de recursos humanos» para na 98 ouvir alguém dizer: «Não fazes os relatórios a horas, confias no destino, não respondes aos pedidos de informação, és um empecilho, fazes o que te apetece» e termina na págian 247 a dizer: «Eu não trabalho em homicídio para mudar o mundo nem para fazer do mundo um lugar melhor. É mais para castigar os criminosos e cumprir uma função. Crime e castigo. Punição. Vingança.»

Não é possível resumir um livro de 396 páginas em meia dúzia de linhas mas fica o firme convite à leitura. Mesmo que na página 176 apeteça dizer em voz alta ao «artista» que fala de escritores e fascismo esta coisa elementar: em 1965 a PIDE destruiu a Sociedade Portuguesa de Escritores na Rua da Escola Politécnica por causa do Prémio atribuído ao escritor Luandino Vieira pelo livro «Luanda». Natural de Ourém e José Martins da Graça de seu nome. Mas isso é outra coisa e um livro de ficção vive dessas falas de gente desalinhada e distraída. Uma nota final para a página 395 onde o nome do Bairro em Pequim significa «voltado para o sol» mas Beto e Roberto da Ganga foram encontrados com o rosto voltado para o chão «de poeira e folhagem envelhecida.»

(Edição: Porto Editora, Capa: Manuel Pessoa, Foto: Getty Images)

 [Um livro por semana 653]

 

terça-feira, 29 de setembro de 2020

«Assim nasceu uma língua» de Fernando Venâncio

Fernando Venâncio (n.1944) organiza este livro de 311 páginas em quatro partes: «Antes do Português», «Portugal constrói uma língua», «O Galego e o Português» e «Sós e acompanhados». Sendo impossível resumir um livro desta dimensão em poucas linhas faço nesta ficha um convite à sua leitura que nada pode substituir. Trata-se de um livro sobre palavras e, tal como Ruy Belo escreveu em «País Possível» de 1973, «Sempre entre mim e ao que chama coisas há-de haver palavras». O ponto de partida é um texto da página 14: «As línguas são feitas de palavras e a maioria delas acham-se recolhidas em dicionários. São factos, esses, que nenhuma dúvida parecem admitir. Acontece que a palavra, a noção aqui em causa, suscita vários problemas. E o primeiro deles é a sua própria existência. As palavras existem? Existem, sim, mas é com uma existência precária, artificial, baseada num exercício de abstracção. A larga maioria dos habitantes do planeta teria dificuldade em responder à solicitação: «Diga uma palavra». Com efeito, aquilo que produzimos, ao falarmos, não são palavras mas cadeias de sons entendíveis por outrem. Cadeias que podem ser muito breves: «Aí!» ou «Pára!» Daí uma descoroçoante mas muito prática definição de palavra: «um conjunto de letras entre dois espaços em branco». Exacto: a palavra pertence por natureza ao terreno da escrita e só nele tem verdadeiramente sentido.»

Como não podia deixar de ser o chamado «Acordo Ortográfico de 1990» aparece logo na ficha técnica e numa nota na página 200: «não existem e nunca existirão, traduções luso-brasileiras, seja de Proust, de Dan Brown ou de instruções de máquina de lavar. Em matéria de tradução e de edição, o Brasil e Portugal têm cada um, a sua política e a sua indústria , inteiramente independentes . O célebre Acordo Ortográfico de 1990 foi, no mundo real, um devaneio inútil e dispendioso.» Já num artigo no jornal «Público» disponível na Internet Fernando Venâncio chamou ao «AO90» a fórmula do desastre.      

(Editora: Guerra e Paz, Revisão: Ana de Castro Salgado, Capa e paginação: Ilídio J.B. Vasco, Mapas e fotografia: Carlos Filipe Nogueira, Maria Alice Fernandes e Fernando Venâncio)

[Um livro por semana 652]

segunda-feira, 21 de setembro de 2020

Viagem à volta dos prefácios – Santo Fernando


Dezassete anos (1) depois da sua morte caiu sobre a obra de Santos Fernando (1927-1975) um silêncio tenebroso. É tão difícil encontrar nas livrarias os treze livros que publicou como encontrar nas revistas e jornais literários um texto de estudo e divulgação da sua obra. Esta pequena viagem à volta dos prefácios dos seus livros surge como um alerta a quem ainda não o descobriu e uma chamada de atenção a quem já conhece. Todos sabemos o significado da palavra «prefácio» (discurso preliminar, inserto no princípio de um livro) mas Santos Fernando utilizou o prefácio como instrumento privilegiado de comunicação com o leitor: neles se pode descobrir o perfil biográfico ao lado da nota sobre a sociologia da literatura, relações com a crítica, problemas da fortuna editorial e da precária posteridade. Sem esquecer um olhar sobre os disparates do Mundo. Sobre a biografia lê-se em Os Cotovelos de Vénus: «Dizem que nasci em Lisboa, na Travessa do Moinho de Vento à Lapa, no dia 22 de Janeiro de 1927, num quarto exíguo onde mal couberam as três balas disparadas da Cova da Moura, onde se cozinhava uma revolução» E em Areia nos Olhos: «A nossa rua é algo que, mais tarde ou mais cedo, começa a significar alguma coisa para nós. A sua calma secular, aureolada por uma tradição de suspiros de amantes, escondidos em arcas encouradas, vejo-a agora fugir em montões de terra e pedra, que estrondosas viaturas transportam num frenesim apocalíptico.» Sobre o ofício de escritor lê-se em Os Cotovelos de Vénus: «O escritor, parte integrante da vida da sua época, observador firme no meio social, bastas vezes insociável, não pode desempenhar o papel frio e frívolo que volta as costas à cena. A sua missão lógica é estudar a geração a que pertence, de molde a auxiliá-la, gritando-lhe os podres, caricaturando-a, amando-a, em suma.» Mais tarde, em As Uvas Estão Maduras: «A literatura é uma arte famélica numa época de simbioses, mitos e contrastes – opinião para a qual se pode fornecer o seguinte exemplo: naquele prédio há um agregado familiar que morre vítima da fome e uma família que rebenta de indigestão.» Finalmente em Sexo 20: «Não se escrevem já livros extensos. Livros longos e mulheres enormes, assustam e o homem deixou de ter tempo para leituras excessivas.» Sobre o problema da posteridade descobrimos em Areia nos olhos: «Convencionou-se deixar passar o préstito dos artistas para, após terceira badalada, se invocarem então as glórias do defunto, depois da crítica severa dos íntegros infalíveis os ter apunhalado em vida. E eu pergunto: será fundamental, imprescindível chegar ao estado de fertilizante, de repolho, de fóssil, para finalmente se nascer?». Ou em As Uvas Estão Maduras: «Explorado como uma mina de antracite resta ao escritor a imortalidade que, se um dia chega, é já muito depois da transladação dos ossos, dos poucos, ainda assim, que resistiram aos prodigiosos roedores.» Sobre a importância dos prefácios lemos em A Bolsa do Canguru: «Perguntar se alguém costuma escrever os prefácios dos seus livros ou dá-los a outros para que os façam não será o mesmo que inquirir duma pessoa se manda fazer os filhos ao estrangeiro?» Já em As Uvas estão Maduras escrevia: «Eu gosto dos prefácios rosados, redondos, rijos como os seios que despontam às jovens colegiais, quase sem darem por isso, entre as aulas de ginástica e de físico-química. O prefácio é o meu living room. Onde eu aguardo os amigos. Os que gostam de dois dedos de conversa.» Em Os Cotovelos de Vénus reafirmava: «Escrevo estas linhas porque estimo os prefácios que são para a literatura o que um beijo é para as grandes paixões. Mas um prefácio nunca transmitirá bacilos.» Em Seis Gramas de Paraíso advertia: «O Mundo é, às vezes, pequeno para os Homens que cresceram demasiado e – sobretudo – para os que incharam soprados pelo fole hiperóxido da toleima. Talvez que num Mundo hipotético mas bem intencionado, as falsas convicções de vaidade se vistam com o rigor da modéstia; os problemas da matemática diária se resolvam no quadro negro da branca equidade…» E em Areia nos Olhos denunciava o esplendor gritante da nossa época: «Noites de núpcias de alta roda, ventiladas pela revista mundana, até ao pormenor rendilhado da íntima cueca; espirros de magnate com repercussões de abalo telúrico; frases desmioladas de um médio-centro lançadas à venta do indígena como relevantes descobrimentos científicos…» Mas se é preciso defrontar o Mundo com Humor – o que é o Humor? Talvez aquilo que diz o prefácio de A Bolsa do Canguru: «Eça de Queirós afirmava que uma só gargalhada chegaria para abalar uma instituição mas isto só é adaptável à nossa época se a instituição estiver a cair de podre.» Ou mais adiante no mesmo prefácio: «O humorismo, muitas vezes, não é uma gargalhada mas um silêncio que se faz à sua volta. Beaudelaire era da opinião de que o riso é provocado por uma quebra de equilíbrio.» Como nota final estas duas frases amargas dum autor que teve um livro publicado no Círculo de Leitores em 1971 (Consolação número três) no qual afirmou: «Com quem eu me entendo ainda melhor é comigo mesmo. Quando não estou irreflectidamente ao pé de mim.» No prefácio de Sexo 20 advertia: «A cozinha é o cérebro dos povos; o coração a alcova. AS bibliotecas foram condenadas.» Anos antes em Os Cotovelos de Vénus tinha sido profético: «Morrem breve os que, escrevendo para viver, acabam por escrever do mal que vivem.»

OS LIVROS DE SANTOS FERNANDO

A, Ante, Após, Até (1957), Seis gramas de Paraíso (1959), A Bolsa do Canguru (1961), Areia nos Olhos (1963), Os cotovelos de Vénus (1963), Tempo de roubar (1964), As Uvas estão Maduras (1965), Consolação número três (1968), Os grilos não cantam ao Domingo (1969), A sopa dos ricos (1970, Absurdíssimo (1972), A árvores dos sexos (1974) e Sexo 20 (1975)

Nota: O texto é de 1993 (Revista Ler nº 22) e entretanto foi publicado (Editora Sulfúria) o livro «Sexo 20»

quinta-feira, 10 de setembro de 2020

«periferias da luz» de António Ferra



António Ferra retoma neste seu «periferias da luz» os recentes «Já próximo dos Anjos» e «Bluff» num caminho de narrativa em prosa poética. Há na página 63, no capítulo «Luzes periféricas», um verso de Luís de Camões citado em itálico («que para mim bastava amor somente») que pode ser lido como a «chave» deste conjunto de doze sequências poéticas. Esta forma lembra muito Vitorino Nemésio quando lamentava a sorrir «Já não se faz poesia descritiva e é pena». De facto esta poesia de António Ferra «descreve» um mal social não só na paisagem como no povoamento. Temos, por exemplo, o «cheiro a urina», temos um «contentor sem tampa» e um «cartaz de junta de freguesia com instruções de sobrevivência». Mas temos também o lado humano quando um vagabundo a quem deram bons conselhos adverte e reage: «Puta que pariu o Arménio, sabujo de merda, / chulo de gel e sapato bicudo, sabe lá o que é a vida.» Conclusão provisória: temos uma vida breve e uma morte inevitável, só o Amor nos pode resgatar o peso do absurdo.  
O ponto de partida do livro é uma viagem: «deixo-me conduzir pelo carro entre ruas repetidas, / portas fechadas no silêncio da uma da manhã, / as cadeiras de um café, empilhadas, presas por uma / corrente igual à que me prende neste bairro / fora de horas.»
Mas este bairro é um lugar de abandono: «Deixaram-me aqui ou fui eu que os deixei? / Para onde foram, para o estrangeiro, emigraram, cortaram-lhes os telefones, as orelhas, os tomates, numa rixa de café? (…) Para onde foram todos?» Ao mesmo tempo também é um espaço de pensar «o sentido da vida e as recordações da infância» e para concluir «O gato parece dizer-me que ainda sou o poeta das noites suburbanas até à manhã seguinte.»
Tudo afinal se pode resumir a uma palavra – crueldade: «A crueldade começa e não se sabe onde vai parar, /uma pessoa pode ser ainda mais cruel do que é, / arreia-se num chavalo sem saber porquê / e depois dá-se-lhe mais porrada e ele continua a sangrar, / o pessoal não sabe onde parar /isso é que é crueldade.»

(Editora: Eufeme /Capa: Sérgio Ninguém, Revisão: Jorge M. Telhas)

 [Um livro por semana 651]

quarta-feira, 2 de setembro de 2020

«Mata – Retratos à la Minuta» de Manuel Barata



Manuel Barata (n.1952) junta neste livro de 100 páginas 46 retratos de pessoas naturais da freguesia da Mata ou a ela ligadas. Na página 7 do livro explico num texto de 6-12-2018, de modo resumido, o que sinto pelo livro: «Habituado por quarenta anos de jornalismo dito cultural a resumir, sintetizar e simplificar, vejo neste livro uma autobiografia na terceira pessoa do plural. Parece contraditório mas não é. Porque, contando as histórias dos outros, o autor conta-se a si próprio, integra-se e passa a fazer parte de um todo. O mesmo é dizer uma aldeia só com uma estrada para ir e para vir, os seus conflitos, palavras, sacrifícios, alegrias, ócios e negócios, vida e morte. Em ponto grande. Que é o ponto da paixão. Manuel Barata junta no seu trabalho a herança de dois mestres da nossa Literatura: Camilo e Eça. Do primeiro aquela certeza de que a poesia não tem presente – ou é sonho de futuro ou saudade do passado. Do segundo outra ideia, a de que as ocupações humanas tendem a explorara o Homem mas contar histórias é outra coisa - entretém o Homem o que, quase sempre, equivale a consolá-lo». Dito de outra maneira: uma viagem pelo Mundo da Mata (Castelo Branco) na segunda metade do século XX, uma viagem também ao lado de dentro da alma, uma aldeia em radiografia sentimental.

(Edição: RVJ Editores Lda, Design: André Antunes, Foto: Irene Felizardo)

[Um livro por semana 650]

terça-feira, 25 de agosto de 2020

Há sempre coisas que ficam por dizer



Uma crónica é um contrato entre o jornalista, o director do Jornal e os leitores. Os termos podem não ser reduzidos a escrito mas, como nos velhos tempos, vale sempre o aperto de mão e a palavra de honra. O jornalista dá o seu melhor, o director do Jornal concede-lhe um espaço que vale ouro e os leitores dão ao texto a melhor atenção possível. Ao chegar à crónica nº 200 dei por mim a reler algumas delas - desde logo porque queria fazer uma escolha para a edição de um futuro livro no qual se reúnem cinquenta. Na crónica nº 165 publicada em 10 de Maio de 2019 gostaria de ter acrescentado «A tua voz tem o registo da mais alta Poesia, instável mas feliz ponto de encontro entre a saudade e o sonho, entre o passado e o futuro, entre a sombra e a luz. Porque, tal como numa liturgia urbana, há no ouro das alfaias da tua voz um tempo de celebrar, de convocar, juntar e harmonizar de novo tudo aquilo que, no nosso coração, a morte acabou por separar.»Continuo a pensar que o Jornalismo é uma disciplina da Literatura porque o Jornalista é o Historiador de todos os dias. Agora no momento em que escrevo faltam poucos dias para que Cristiano Ronaldo celebre 35 anos mas tudo teria sido diferente se no dia 24 de Outubro de 1999 um grupo de Homens (árbitro, enfermeiro, delegado) não tivesse dado o melhor de si para o salvar de uma taquicardia grave no decurso de um jogo de Iniciados Casa Pia-Sporting. E o jornalista que relatou com fidelidade e pormenor a situação fui eu porque eu estava lá nessa manhã de Domingo. O Jornal «Sporting» foi o único que referiu o problema mas compreende-se: o jogador ainda não era famoso nem em Portugal nem na Europa nem no Mundo. E porque há sempre coisas que ficam por dizer é que desde 1978 ainda não parei de escrever nos jornais. E espero continuar.    

[Crónicas do Tejo 225] 

(Fotografia de Vinicius Carriço)   

domingo, 16 de agosto de 2020

«O Estendal e Outros Contos» de Jaime Rocha



Jaime Rocha (n.1949), poeta, ficcionista e dramaturgo, estreou-se na Poesia com «Melânquico» (1970), na Ficção com «Tonho e as almas» (1984) e no Teatro com «Deuscão» (1988). O conto «O Estendal» que abre o volume de 67 páginas e 9 narrativas oscila entre um registo naturalista («a guerra continuava, os massacres não tinham fim») as termina num tom de surpresa, de insólito e de irreal: «o estendal estava cheio de crianças ainda recém-nascidas. Todas juntas, umas ao lado das outras, muito quietas, penduradas com molas, a secar». Em «O último parente de Justino» a narrativa volta a arrancar num tom muito próximo do real («A última vez que Justino foi visto, avançava em passo lento pela alameda do cemitério, encostado à fila esquerda dos ciprestes onde se localizavam os jazigos mais antigos.») mas conclui de modo insólito: «No dia do funeral do sobrinho, Justino subiu a alameda estreita do cemitério à frente do féretro. Antes que os coveiros descessem a urna, atirou-se ele inesperadamente para dentro da cova.» Em «A mulher que aprendeu a chorar» o ponto de partida volta a se rum olhar lúcido e realista sobre o Mundo («Há uma depressão na terra que atinge as colheitas, os animais. O ar tornou-se irrespirável e já não é possível arranjar tempo suficiente para se passar um serão tranquilo em casa. Os vizinhos destroem as paredes com berbequins, deitam abaixo cozinhas inteiras.») mas a história é povoada por gente insólita, uma mistura entre ficção e realidade, cinema e quotidiano: «A mulher do filme morreu de facto? Claro que não. O mesmo aconteceu com o seu amado. Matou-o mas ele não morreu. Pense é que ele se ausentou para o estrangeiro, abandonou-a..É a coisa mais banal do mundo.» Em «A gaiola do senhor Flor» o princípio da narrativa é «Foi no dia em que o senhor Flor apareceu com uma gaiola na mão que os amigos chegaram à conclusão de que ele tinha endoidecido de vez.» e termina com a porta da gaiola aberta: «A minha mulher disse-me que, para presa, basta ela. Não quer o pássaro aqui dentro.» Fica uma ideia e um convite à leitura deste livro de contos onde de modo hábil e límpido se cruzam os mundos do real e do imaginário.

(Editora: Relógio d´Água, Capa e Foto: Carlos César Vasconcelos, Revisão. Anabela Prates Carvalho)
                        
[Um livro por semana 649]

sábado, 1 de agosto de 2020

«Estalagem» de Henrique Manuel Bento Fialho



O mais recente livro de poemas de Henrique Manuel Bento Fialho (n.1974) integra 36 poemas dos quais 28 são de 12 versos, 5 de 16, 1 de 15, 1 de 13 e 1 de 8 versos. O ponto de partida é: «Olho à minha volta e penso em tudo / quanto fui acumulando ao longo dos / anos», o mesmo é dizer um inventário. O ponto de chegada pode ser a morte: «A morte / talvez chegue para nos unir, quem pode sabê-lo?» Pelo meio fica a vida que pode ser a descrição de uma ceia em grupo: «Dezasseis pessoas sentadas à mesa / num restaurante de Óbidos tecem / palavras com agulhas da memória./ Falam da vida enquanto levam à boca / porções de animais mortos». Pode ser em Paris como na página 39: «enquanto o magnata italiano / entra no restaurante acompanhado dos cães /(logo seguido da consorte siliconolizada)» O título do livro apela para a ideia de deambulação, viagem, percurso: «Ofensa é passar a vida feito estátua.»
Um dos pontos fortes destes poemas é a ironia, por exemplo na página 20: «É improvável que alguma vez venha / a ser dos melhores. / Às vezes sonho com medalhas, imagino-me no pódio a receber o aplauso de multidões.» Sendo a Vida efémera e a Morte inevitável, só o Amor nos salva e a Poesia pode ser uma forma de Amor: «Prefiro o canto transparente, solto / na folha absoluta deste vazio.» No poema da página 15, de modo hábil, o autor junta um episódio do quotidiano («A menina  do primeiro andar chora diabolicamente») para se aproximar ao acto da escrita: «Estará convencida de que chorando / transmitirá aos outros dores que são apenas dela».  Estamos perante uma poesia com algumas referências culturais mas sempre com voz própria: passa por José Malhoa, Susanne Valadon, Camões, Fernando Pessoa, Albert Camus, Patrick Kavanagh, James Joyce ou Micah P. Hinson e Jacques Brel – que um poema pode ser também uma canção: «A luz das manhãs no Inverno é uma / canção triste sobre o fim do amor.»

(Editora: Medula, Capa, composição e paginação: Manuel A. Domingos)

 [Um livro por semana 648]

quarta-feira, 22 de julho de 2020

O Tejo e o Mar da Palha em José Rodrigues Miguéis



O livro organizado por Luísa Ducla Soares e editado pela Câmara Municipal de Lisboa intitula-se «Lisboa de José Rodrigues Miguéis» e reúne em 111 páginas citações de diversos livros deste autor português (1901-1980). Sobre o Rio Tejo podemos ler: «Lá ao fundo, o Tejo reluzia como uma colcha de áqua-marina bordada a prata» e, mais à frente, no mesmo «O milagre segundo Salomé», surge: «No Tejo lavado e reluzente, alguns destróiers balouçam languidamente, vaporzitos espertos abrem no ar as sereias estrídulas, um cruzador inglês, todo branco como um iate, vira com a maré em torno da âncora.» E em «A Escola do Paraíso» pode ler-se: (…)«o menino olha os telhados de veludo, o céu sereno, o rio coberto de palhetas de prata cintilantes: são peixinhos que saltam, andam a brincar, brilham à lua (…)» Em «Idealista no Mundo Real» José Rodrigues Miguéis escreveu: «O grito de uma sereia no Tejo rasgou o véu azul da manhã. Baltazar virou-se para as janelas e, com a face apoiada na mão esquerda, ficou a olhá-las. As andorinhas cortavam o ar, explorando os beirais familiares. Adivinhava-se o primeiro espreguiçamento da Primavera no ar quase tépido e, ao fundo, para lá do casario apinhado, a toalha do rio desdobrada ao sol. Nos telhados forrados de musgo, líquenes e gramíneas, enxugava a humidade dos chuveiros de véspera.» Não se fica pela paisagem e pelo povoamento o autor de «O idealista no Mundo Real quando escreve: «A Universidade é uma fábrica de manequins e de burocratas. Porque é que um labrego que sai das unhas negras da Escola há-de ser necessariamente um superior? Quantos génios tivemos nós que nunca por lá passaram – o Herculano, o Oliveira Martins, o Camilo, o Ramalho, o Gomes Leal, o Lúcio de Azevedo – e  os que o foram apesar dela!»     

[Crónicas do Tejo 223]

(Fotografia de Luís Eme)

quarta-feira, 15 de julho de 2020

«Pavese no café Ceuta» de Francisco Duarte Mangas



Reunião de 16 narrativas em 184 páginas, deste recente trabalho de Francisco Duarte Mangas se poderá afirmar um conhecido lugar-comum – «toda a Literatura é uma homenagem à Literatura.» Depois de «Diário de Link», «Geografia do Medo» e «Jacarandá» o autor, logo na primeira narrativa, apresenta um retrato da paixão dos livros: («miram o homenzinho a alojar livros como se os metesse dentro dele.») ao lado de uma lucidez magoada («Se um homem das belas letras, à nossa frente, indispõe – que dizer de um magote, como ratinhos em busca de jorna nas remotas searas do Sul?») passando por Eça de Queirós («respeitoso como se olhasse a bandeira e ouvisse o hino») ao lado da amizade: «Se a doutora Luísa Dacosta perguntar por mim, diga-lhe, por favor, fui a Granada.» Em «Lenha verde» pode ler-se uma frase que resume tudo: «Eu escrevo lendo os outros». Ou dito de outra maneira: «Não se vende o que se ama. Em vez de filhos criei heterónimos – impedidos de herdar qualquer legado.» Em «Clandestinos» o ponto de partida é o anúncio de jornal: «Travesti Cláudia, curta temporada. Activa/Passiva. Peito XXL. Meiguinha. Sem pressas.» mas Gabriela sai do livro de Jorge Amado e procura saber algo mais de Gisberta antes de ela ser «fétida melancolia, brinquedo de moleque…» Em «Pavese no café Ceuta» o equívoco é do autor de «O ofício de viver» : «Li todos os livros do poeta que aqui julgava encontrar» mas o poeta português que o italiano procura está no café Progresso e não no café Ceuta.
Herdeiro de Leitão de Andrade, Camilo Castelo Branco e Carlos de Oliveira com as suas Miscelâneas, Narcóticos e Aprendizes de Feiticeiro, Francisco Duarte Mangas avança uma feliz definição da paixão dos livros que está na origem deste livro: «Tenho o vício absurdo de guardador da palavra escrita.» Tal como antes tinha na página 85 referido a Poesia: «A poesia, se não for o lugar onde o desejo ousa fitar a morte nos olhos, é a mais fútil das ocupações.»

(Edição: Teodolito, Editor: Carlos da Veiga Ferreira)

[Um livro por semana 647]

sábado, 4 de julho de 2020

Vítor Lambert – só agora percebi o peso específico da sua amizade



Somos feitos do que somos até aos sete anos, o resto são apenas remendos. Quis o Destino que o meu neto António seguisse agora (em 2017) as pisadas da minha filha Marta (em 1987) e frequentasse com uma diferença de trinta anos o mesmo Jardim Infantil – a Adeco, ali em Lisboa, ao Príncipe Real. Mas dizer Destino não é pensar no Acaso pois nada acontece por acaso na Vida; foi o Victor Lambert que ao longo do tempo foi mantendo a ligação entre nós e nunca deixou de me enviar as convocatórias para as Assembleias Gerais da Adeco. Sem mais e com a devida vénia transcrevo o texto da «Folha Informativa» nº 20 da Associação Conquistas da Revolução: «A ACR perdeu, em 15 de Fevereiro de 2018, um dos seus sócios fundadores e até à data membro da Direcção da nossa Associação. Além do trabalho que prestou na Direcção e nas iniciativas da nossa Associação, colaborou nos livros «Vasco, nome de Abril» e «Conquistas da Revolução». O funeral, com honras militares, realizou-se no dia 17 de Fevereiro no cemitério dos Olivais. Na altura o presidente da Direcção da ACR proferiu uma intervenção sublinhando: «Honraste a Marinha e os Marinheiros. Vamos sentir a tua falta, nunca estarás só. Sei que caminhas ao nosso lado, nunca deixando de ser um de nós. Até sempre companheiro!» Associaram-se nas despedidas Maria João Gonçalves que leu uma intervenção em nome de um conjunto de amigas, relatando as vivências comuns que ao longo dos anos partilharam, sublinhando as qualidades morais e cívicas de Vítor Lambert e o «Cabo» Geraldo Lourenço, na qualidade de praça mais antiga dos saneados do 25 de Novembro, proferindo u m improviso em que relembrou os tempos da fundação da CDAP e do Clube de Praças da Armada, elogiando a personalidade e a perseverança de Vítor Lambert.» (fim de citação)

[Crónicas do Tejo 124]

terça-feira, 30 de junho de 2020

Dissertação para a voz de Maria Flor Pedroso



Quase nada sei das origens da tua voz, seu timbre e sua altura, seu calor e sua extensão, seu peso e seu rigor. Chamo-lhe calorosa pois sinto nela o calor que sacode o dia, aquece o pão, ferve o leite e convida ao pequeno almoço com ovos e bacon. Quando ouço a tua voz sinto nela o rumor ritmado das ondas de todas as praias e as melodias de todas as orquestras. Melodia, harmonia, contraponto – o que quer que seja musical nas manhãs de Rádio. Porque toda a minha infância cabe numa telefonia Schaub Lorenz. O senhor Messias, o Compadre Alentejano, o Teatro das Comédias, o romance da hora do almoço, o telefone toca do Matos Maia. E também os discos pedidos dos doentinhos dos sanatórios – Serviço 6, Sala 2, Cama 4. Sem esquecer os anúncios: «Candeeiros bem bonitos / modernos, originais / compre-os na Rádio Vitória / não se preocupe mais.» A tua voz é clarim, bandeira, estandarte.  Primeiro avisa, depois convoca, de seguida vem guiar os ouvintes como numa antiga romaria entre o sol que brilha e o pó que não assenta. Havia a Rádio Graça, a Rádio Peninsular, o Clube Radiofónico de Portugal e a Rádio Voz de Lisboa. A Voz de Lisboa era essa mistura feliz do vagar dos eléctricos e da pressa na espuma dos rebocadores, o vagar do sinaleiro e a pressa das fragatas do outro lado do Tejo. Vivi no Montijo entre 1957 e 1961; por isso ser fragateiro era um dos meus destinos possíveis. Aos Domingos à tarde os eléctricos levavam bandeiras de estádios: Luz, Restelo, Tapadinha, Lumiar. À noite saía nos jornais o resumo da jornada com a classificação e os melhores marcadores. Os ardinas voavam nas Escadinhas do Duque. Era a voz de Lisboa. Quase nada sei das origens da tua voz. Sei que nela passa o coração do Mundo. As sombras e as luzes, as sementeiras e as colheitas, a terra e o mar. Tudo cabe na tua voz que não termina e que continua. 
      
[Crónicas do Tejo 117]

quarta-feira, 24 de junho de 2020

«Resposta a Italo Calvino» de Carlos Nogueira



Nota prévia – Este livro recebeu o Prémio Jacinto do Prado Coelho (Associação Portuguesa de Críticos Literários) atribuído por um júri que integrava Ana Mafalda Leite, Liberto Cruz e Miguel Real. O galardão distinguiu em anos anteriores ensaístas como Eduardo Lourenço, Óscar Lopes, Vítor Manuel Aguiar e Silva, Carlos Reis, Helena Buescu, Clara Rocha ou Maria Alzira Seixo. Num livro publicado em 1999 Jorge Luís Borges escreveu sobre a importância do autor de «Os Possessos»: «Como a descoberta do amor, como a descoberta do mar, a descoberta de Dostoievki marca uma data memorável na nossa vida.» O ponto de partida deste volume está na página 14: «Publico este livro porque quero partilhar as minhas experiências de leitura de alguns textos de literatura dirigida às crianças e aos jovens (e aos adultos que são sempre também destinatários privilegiados desta literatura).» E continua: «Faço-o na expectativa de que o contacto com algumas partes da minha «Resposta a Italo Calvino» suscite em alguns leitores a vontade de ler ou reler os Grimm, Johanna Spyri, J.M. Barrie, Shel Silverstein, Sophia de Mello Breyner Andresen, José Saramago, Manuel António Pina, entre outros.»
A expressão «escrever é lavrar» remete para «O aprendiz de feiticeiro» de Carlos de Oliveira na morte do poeta Afonso Duarte: «Escrever é lavrar e lavrar numa terra de camponeses e escritores abandonados quer dizer sacrifício, penitência, alma de ferro.»
Resumir um livro de 422 páginas em 20 linhas de A4 é impossível mas fica o convite à leitura destes «clássicos da Literatura» organizado em 15 capítulos desde Gil Vicente a Alexandre O´Neill e com um índice onomástico muito útil no seu final. Depois de «São feitas de palavras as palavras» de 2017 aqui está um convite irrecusável de Carlos Nogueira para reler os clássicos.

(Editora: Livraria Lello Porto, Design: Cátia Vidinhas)

[Um livro por semana 646]

quinta-feira, 18 de junho de 2020

«O que eu ouvi na barrica das maçãs – crónicas» de Mário de Carvalho



Mário de Carvalho (n.1944) estreou-se em 1981 com «Contos da Sétima Esfera» e neste seu livro de 254 páginas junta crónicas publicadas entre 1987 e 1996 no «Jornal de Letras» e no «Público». As crónicas são divididas em quatro secções (Divagando, Intervindo, Oficiando e Rememorando) correspondendo a várias facetas do autor: ficcionista, cidadão, comunicador e memorialista. O título é uma homenagem à Literatura e vem do livro «A ilha do tesouro» de Robert Louis Stevenson. Francisco Belard refere no Prefácio «Mário de Carvalho e eu somos da mesma geração, o que explica várias afinidades (…) as afinidades emergem em muitas destas crónicas ou noutras intervenções públicas que teve e tem, a par dos livros.» Uma das crónicas indica 35 espécies de escritores desde o solene, o ansioso e o paranóico até ao erudito, ao obscuro e ao possesso mas sem esquecer o cronista: «Perora sobre tudo, numa olímpica omnisciência. Está convencido que tem muita graça e de que influi profundamente nos destinos do país. Imagina os governantes a lê-lo e a dizerem às mulheres (ou aos maridos): «Tem graça! Olha que este rapaz tem carradas de razão, vou passar a fazer como ele diz». Às vezes é feroz , faz ameaças: «Ah, sim? Então eu desanco-o na minha crónica!» No entanto fica um pouco perplexo se os amigos exclamam jovialmente: «Lá li a tua coisa no Diário Popular; aquela dos rinocerontes, muito gira – quando ele tinha escrito umas considerações hábeis sobre os chalés suíços para o Diário de Notícias.» O autor disserta sobre a crónica em si na página 42: «O leitor conta com uma opinião de actualidade, fluente, cívica, arguta e isenta de complicações.» Sobre Fernando Pessoa surge uma tese: «Na verdade quem morreu em 30 de Novembro de 1935 no Hospital de São Luís dos Franceses não foi Fernando Pessoa mas um vagabundo galego, muito esquálido, contratado para o efeito, que se chamava Paco Ximenez Albarrace. Quanto ao verdadeiro Fernando Pessoa, tinha-se esgueirado de noite, à capucha, disfarçado de freira carmelita para só voltar a ser visto mais tarde, na guerra de Espanha.» O acto de escrever («Não me recordo de uma única indignidade removida por um par de versos») tem as suas ambições e os seus limites: «Na parte que me toca estou convencido de que o que leva alguém a escrever é esta possibilidade de mentir à vontade sem agravo dos bons costumes nem do ordenamento jurídico.» Uma ideia para Portugal está na página 64: «Entre o torrãozinho de açúcar e a choldra lá tem que se mover o cidadão sensato e com noção das proporções.» Ou na página 83: «Somos muito vulneráveis. Não temos reservas nem defesas. Não há nichos, não há abrigos, não há resistências, não há territórios como outros têm.»  Noutra crónica lembra Joaquim Velez, João Camilo e Diniz Miranda na  prisão para concluir «ao lado do portugalinho dos sacanas a ferver de mercenários, oportunistas, videirinhos e minúsculos troca-tintas, também existe gente da têmpera daqueles em que falei.» Mário de Carvalho adverte a sorrir: «Terrível palavra é um «ego». Lido na natural direitura, apenas lhe falece um «c» para não ser «cego» e faz uma previsão em 1993 que se confirma em 2019: «…pode criar-se o clima propício a que um belo dia, meia dúzia de tipos (talvez mesmo quatro) em qualquer cervejaria de qualquer cidade de província…»

(Editora: Porto Editora, Prefácio: Francisco Belard)

[Um livro por semana 630]

terça-feira, 9 de junho de 2020

Saudação breve a Ana Carolina


Eu te saúdo oh! Ana Carolina, menina pequenina envolta em cor-de-rosa numa alcofa de ternura entre o olhar doce da tua mãe e a força do teu avô, entre o frio da tarde a anunciar hipóteses de chuva e a minha pressa em te conhecer. Tu não sabes mas minutos depois de te ter conhecido, eu comprei uma embalagem de beijinhos a fiz-me à estrada a caminho de Lisboa. Tu não sabes mas nessa tarde choveu muito. As terras por fim encharcadas fizeram deslizar essa água fértil para as valetas. Passei pelas Gaeiras, pela Ponte Seca, pela Sancheira Grande, pela Palhoça, pelos Carreiros e pelo Cercal, sempre debaixo de uma chuva que nos anunciava e nos trazia de facto a fertilidade. E tu dormias descansada nos braços do teu avô dando à tua mãe um pouco de descanso nas rotinas e nas tarefas diárias perante um recém-nascido. Tu não sabes ainda mas a fertilidade começa pela água e eu já não via chover assim desde 2003. Aquilo a que chamamos «vida» começa com um momento que se define como «o rebentar das águas». Pequena e indefesa, oh! Ana Carolina tu não sabes como gostei de te conhecer e de fazer esta viagem entre as Caldas da Rainha onde ficaste e Lisboa onde te escrevo esta saudação breve e emocionada. Vejo, naquela chuva que caiu poucos minutos depois de te conhecer, um anúncio de vida e de alegrai contra a aridez hostil da seca do ano que passou. As valetas da estrada velha entre as Caldas e Lisboa ficaram cheias de água nessa tarde em que te vi pela primeira vez. E os meus olhos cansados ficaram com uma neblina de júbilo. Graças a ti oh! Ana Carolina e à tua alegria cor-de-rosa dentro de uma alcofa de ternura. Porque o teu rosto envolto em rosa foi uma presença efectiva no espelho do meu velho Citroen, cinzento e cansado. E cheirava a maçãs no pequeno habitáculo entre a pressão da chuva e o negro asfalto da estrada velha das Caldas até ao Cercal.      

[Crónicas do Tejo 239]

(Óleo de Gary Melchers)

quinta-feira, 21 de maio de 2020

«Aves migratórias» de Gabriela Ruivo Trindade



Gabriela Ruivo Trindade (n.1970) venceu o Prémio LeYa em 2013 com «Uma outra voz», seguindo-se o conto infantil «A vaca Leitora» de 2016. «Aves migratórias», livro de 63 páginas, é a sua estreia no campo da Poesia e é constituído por seis andamentos: Aves migratórias, Animais marinhos, Orfandade, Sem rosto nem fim, Silêncio e Transpiração.
A invocação de Sebastião da Gama («Pelo sonho é que vamos,/comovidos e mudos») lembra a semelhança entre a viagem e a oração: ligar dois pontos diferentes ou dois mundos separados. Vejamos o poema da página 17 que abre o livro: «o meu coração migrou para outro peito /parece contente / no vazio que deixou cabem lezírias /horas brancas / neblinas» e vejamos o poema da página 63 que fecha o livro: «Era uma mulher de palavra. As palavras nasciam-lhe nos braços e derramavam-se pelas mãos abertas. Fugiam-lhe entre os dedos. Era uma mulher de palavra e ficava sem palavras. A voz perdia-se nos labirintos dos argumentos e emudecia nos becos sem luz das trocas azedas de palavras; palavras gastas à bruta e à pressa, mal nascidas, cuspidas, vomitadas, violadas; a ela, uma mulher de palavra, a voz atraiçoada. Quando cantava abria o peito aos pássaros e esquecia as palavras.»
Embora agradeça aos Poetas da sua vida («A minha vénia e o meu muito obrigada») como José Gomes Ferreira, Manuel da Fonseca e Sebastião da Gama (entre outros) os filhos da autora entram no livro com dois epigramas: «Nunca fica de noite dentro da cabeça de alguém» (David, 7 anos) e «O fogo apaga a água: é quando o sol faz a água ir para as nuvens» (Diogo, 4 anos). Sem esquecer a advertência antes da leitura: «O amor é o mais perto que podemos estar do infinito.» 
 
(Editora: On y va, Capa: Sónia Queimado-Lima, Grafismo: João paulo Fidalgo, Foto: Emanuel Ferreira)

 [Um livro por semana 644]

quarta-feira, 15 de abril de 2020

Baptista-Bastos - Das capuchas, das piçarras e dos calhabardais



Esta crónica é dedicada a Cecília Milheiro e Manuel Sequeira. A primeira porque diz sempre «bem haja» e faz do balcão da Farmácia na Estrada de Benfica um altar de paz onde as angústias de quem leva na mão uma receita se dissipam devagar; o segundo porque sendo taxista e autor de um Blog («o fogareiro») viaja pelas ruas de Lisboa como quem corre pelos calhabardais dos Montes da Senhora que são seis: Aldeia Cimeira, Monte de Cima, Monte do Meio, Monte de Baixo, Monte do Trigo e Monte do Barbo. A crónica de Baptista-Bastos surge no livro «As palavras dos outros» (Editorial Futura) e começa com estas palavras: «Escrevo no balcão da casa das piçarras negras, no último dos meus dias beirões. O vento da tarde arrasta consigo odores de urze velha e de pinhos novos – e percebo, de repente, que estou a despedir-me. Dobro os olhos para leste, onde a serra de Moradal se rasga num desfiladeiro logo baptizado de Ocreza e a ideia de ficar impõe-se-me de tal força que a ideia de partir vira num sentimento penoso. Pelas taipas de janela da loja, ao lado, saem os fumos do meu jantar da tarde; a miúda Martinha está a observar-me, em silêncio, do terreiro coberto de mato; Chico Canhoto veio com as bestas dos campos de arroteio e ofereceu-me uma saudação fraterna e sorridente; ontem, no largo junto à fonte, vi bandos de raparigas tristes, sem rapazes, na mesma hora em que Carminda, viúva de um vivo que reside temporariamente em Lisboa, depunha flores pobres na campa rasa do filho Armando, morto de tétano, com 2 anos – e, ao fazer o balanço das minhas recordações, percebo, de repente, que estou a despedir-me. Despeço-me destas terras poderosas, verdes como esmeraldas, destas terras cerdosas de cardos, de fetos, de raízes, de xistos – não fecundadas pelo braço jovem que está longe.»         
         
[Crónicas do Tejo 154]

sexta-feira, 3 de abril de 2020

«Antologia Poética» de Frei Agostinho da Cruz



Organizada por Ruy Ventura (n.1973) este livro de 290 páginas reúne epigramas, epitáfios, odes, sonetos, elegias, éclogas, cartas e outros poemas bem como uma introdução, um glossário e uma bibliografia selecionada. Frei Agostinho da Cruz (1540-1619) era irmão do poeta Diogo Bernardes (1530-1596) e dele escreve Teixeira de Pascoaes em «Os Poetas Lusíadas»: «Camões é o poeta que eu mais admiro. Frei Agostinho da Cruz é o poeta que eu mais amo: o poeta mais sincero e lusíada que Deus abençoou.» Na Introdução o organizador adverte: «trata-se de um veículo que pretende pôr à disposição de um público abrangente uma selecção representativa da obra do frade que viveu numa época conturbada de Portugal e do mundo, com vários pontos cuja semelhança com o nosso tempo qualquer olhar atento descobrirá. Este livro está desprovido de aparatos críticos que uma obra com outra índole, nunca poderia dispensar. Por essa razão, se apresenta apenas um rol selecto de alguma bibliografia de e sobre Frei Agostinho da Cruz, à qual o leitor poderá recorrer, caso esse percurso seja do seu interesse, aí encontrando uma multiplicidade de leituras e a indicação de outros livros e artigos onde terá a oportunidade de beber águas distintas.»
Este livro pode ser lido também como um diário íntimo de alguém que organiza o seu discurso poético num duplo triângulo (Natureza-Palavra-Deus ou Mundo-Poesia-Amor). Nascido em Ponte da Barca, terá vivido em Guimarães e Vila Viçosa; veja-se o poema da página 21: «Nasci e renasci na casa em dia/De Santa Cruz, da Cruz o nome tenho.» Mas viveu também em Sintra, na Serra da Arrábida e em Vale Figueira (Santarém): «Nestes campos do Tejo onde cheguei /Achei graça, bom rosto e gasalhado / Que noutros meus amigos não achei. / E tanto me senti mais obrigado /Quanto mais fraco e enfermo me senti /Sem nunca me sentir desamparado.»  No poema da página 107 se percebe melhor essa pessoal cartografia: «Na ribeira do Lima fui nascido /Na do Mondego e Tejo fui criado / E na serra em que vivo envelhecido / Onde esperando estou o desejado / Fim dos meus longos anos mais vizinho /Quanto de cada vez mais alongado.»

(Editora: Licorne, Contracapa: Nuno Matos Duarte, Retrato do autor: João Salvador Martins, Apoios: Diocese de Setúbal, Fundação Oriente, Câmara Municipal de Ponta da Barca, União das Freguesias de Azeitão - São Lourenço e São Simão)   

[Um livro por semana 643]

domingo, 22 de março de 2020

«A Família Crosse» de Fernando Pessoa



Para quem possa julgar que o processo literário pessoano se fixa apenas nas obras de Alberto Caeiro, Ricardo Reis e Álvaro de Campos, este livro de Nuno Ribeiro e Cláudia Souza vem demonstrar que a família Crosse (A.A. Crosse, Charles Crosse, S.S. Crosse, J.J. Crosse, Thomas Crosse, I.I. Crosse) tem um lugar especial na obra pessoana. Claro que em Fernando Pessoa nada é simples nem óbvio nem fácil de perceber. Numa carta a Ofélia Queiroz em 29-4-1920 Fernando Pessoa refere apenas o «sr. Crosse»; vejamos: «O sr. Crosse mandou antes de ontem uma resposta a concurso, e ontem outra, e hoje vai ainda outra. As duas primeiras são de concursos pequenos, e não há esperança neles. A que vai hoje é de um concurso vulgar, de 250 libras. Uma que deve ir por estes dias é que é de mil libra, ou, antes, para o concurso de mil libras que fecha em 13 de Maio próximo. Há, portanto, tempo.»
O mesmo Fernando Pessoa através de Thomas Crosse assina um curioso texto intitulado «A semelhança entre o espanhol e o português»: «O inglês é mais complexo e conciso do que o espanhol e o português. Por outro lado, o português tem possibilidades de gamas de significado que são inimagináveis mesmo no inglês. Os portugueses têm, por exemplo, um infinito pessoal. Assim a frase que em inglês não pode ser apresentada em menos palavras do que «I tis enough that we exist» ou «that we be» pode ser dita em português apenas em duas palavras - «Basta sermos». O espólio de Fernando Pessoa na BNP conserva uma charada enviada para um jornal inglês assinada por Thomas Crosse. 
Depois de «António Botto: projecto de um livro» (Nuno Ribeiro) e de «Escritos sobre o Tédio», «Poemas à noite», «Poemas ao vinho» e «Rua dos Douradores de Bernardo Soares» (Nuno Ribeiro e Cláudia Souza) este recente trabalho da dupla vem dar o devido relevo a uma colecção de estudos pessoanos que embora intitulada «Fernando Pessoa em porMENOR» nada tem de menor (antes pelo contrário) e já vai no sexto volume.  
   
(Editora: Apenas Livros, Edição/Introdução: Nuno Ribeiro e Cláudia Souza, Capa: Susana Resende)

[Um livro por semana 642]

domingo, 15 de março de 2020

«Bluff» de António Ferra



O mais recente livro de António Ferra (n.1947) parte da palavra «bluff» no sentido de «burla, engano, logro» do jogo de cartas conhecido por póquer, praticado por quatro elementos com um baralho de 52 cartas. Jogando habilmente com a narrativa e com as falas do quotidiano, o autor começa cada texto usando a ironia como por exemplo «Graziela precisava de uma certidão de emagrecimento, documento imprescindível para voos low cost.» e termina com «Já não faço nada on line, é tudo bluff, desde que nasceu a minha filha deixei-me disso, nem mesmo sexo virtual, tenho medo de engravidar outra vez.»
O ponto de partida é a memória da infância («Eu era ainda muito criança, entrava sorrateiro na cavalariça, tremia naquele esconderijo, em lusco fusco e taquicardia.») mas o ponto de chegada é um «descampado periférico» onde Graziela se queixa «Não, não, é só esta desumanidade que se entranha no corpo.»     
Na homenagem à literatura que toda a literatura, afinal é, julgamos descortinar o louvor dos textos líricos de Daniel Filipe ou Nuno Bragança no diálogo da fuga dos amantes: «- Trazes os documentos? – Estão aqui na mala. – Tudo? – O resto vai na PEN».

(Editora: Douda Correria, Capa: Inês Mateus)

 [Um livro por semana 641]