quinta-feira, 25 de fevereiro de 2021

Lugar de Ser ou 70 anos em 20 linhas

 


A vida é um mistério, não um negócio. Nasci a 13-2-51 em Santa Catarina (Caldas da Rainha) em casa dos meus avós maternos e os meus pais só casaram no Verão – a casa não estava pronta. Fui pinto balseiro. Tive uma infância feliz: o dinheiro era escasso mas sobejava ternura e não havia preço para os beijos ou para as lágrimas. Saltei do carro de bois em 1956 na aldeia para o eléctrico de Lisboa em 1966 e para o avião em 1976 quando fui a Londres. Tirei o Curso Geral do Comércio porque o tempo exigia: «Os filhos dos motoristas não vão para o Liceu». Na véspera do dia em que comecei a trabalhar morreram 25 rapazes na Serra de Sintra. O meu destino sempre esteve ligado aos outros; nunca me quis separar e fingir que podia fazer tudo sozinho. Vivi na minha terra, no Montijo, em Vila Franca de Xira e em Lisboa. Casei em 1977, os meus filhos nasceram em 1978, 1981 e 1985. Há cem anos entre o meu avô materno e o neto mais velho. O meu primeiro livro (1971) foi produzido a stêncil, o segundo 1981 foi composto a chumbo, os posteriores já foram a computador. Meu pai começa a trabalhar com 7 anos, eu com 15 e os meus filhos com 25. Há um progresso mas sem esquecer as palavras de Raúl Brandão: «Ser diferente dos outros é já uma desgraça; ser superior aos outros é uma desgraça muito maior». Em 2005 acabei de pagar a hipoteca de uma casa com janelas para o Tejo. Há destinos simétricos: eu tenho duas irmãs e o meu filho tem duas irmãs. A vida é um mistério, nunca um negócio. Fui delegado sindical de 1972 e 1996, tenho uma reforma pequena mas posso sorrir: todos os dias morre gente que chamava Marcha do Benfica ao Hino da Eurovisão.

[Crónicas do Tejo 274]

(Óleo de Wislow Homer)


terça-feira, 2 de fevereiro de 2021

«Morrer é não ter nada nas mãos» de Nuno Costa Santos

Nuno Costa Santos (n.1974) junta neste livro de 39 páginas poemas com origem na Rádio, no Teatro e nas Revistas de Poesia. Autor diversificado (romance, crónica, aforismo, poesia) Nuno Costa Santos retira o título do volume da página 39: «Vem de mãos vazias /como todo o homem antes da morte. /Morrer é não ter nada nas mãos.» A morte está de novo presente na página 33: «Morreu o meu tio-avô emigrado no Canadá há muitas décadas. /Trabalhou em fábricas e morou numa rua /que se tornou o seu novo país. /Recebemos um telefonema de Mississauga à/ hora do almoço de uma quinta-feira. /Estava ao pé da minha avó quando /atendeu a chamada da tia Lurdes. /”Antes de morrer chamou pela mãe” ouvi a/ minha avó repetir o que ouviu do outro lado. /Todo o homem chama pela mãe na hora da /morte. Mesmo que à vezes não se ouça.» Oscilam estes poemas entre a Morte e a Vida: «Das maiores experiências de solidão: /chegar ao aeroporto e não ser recebido por ninguém.»

Entre a solidão e a alegria, o poema pode ser também um sorriso: «É hoje difícil estar calado /Estar calado é morrer /O desejo é ser amado /Tenho um comentário a fazer /Em cada esquina, um assunto /em cada link, um viral /Seja ele uma sande de presunto /ou o excelso mapa astral.» Mas numa sociedade competitiva o lugar da Poesia é sempre secundário: «Não há lugar para estacionar o poema/ Sucumbiu ao rodoviário sistema /É em Lisboa mas podia ser em Manila / O poema vai ficar em segunda fila.»

Para este autor o fundamental é a Vida: «Fundamental é termos quem nosso coloque a mão na / testa quando vomitamos, de olhos fechados. /Tudo o resto é uma ida à Loja do Cidadão.» Fundamental é também a Poesia: «Se a poesia não diz a vida é um exercício que se dissolve, uma bola de sabão que rebenta no ar, um dito vago para dizer nos saraus e impressionar pelo jogo vazio de palavras. /É um berloque poético. /Não quero isso.»

(Edição: Companhia das Ilhas – Sara Santos, Carlos Alberto Machado, Imagem: Jorge Aguiar Oliveira, Capa: Rui Belo, Colaboração: Sara Leal)

[Um livro por semana 661]