domingo, 22 de março de 2020

«A Família Crosse» de Fernando Pessoa



Para quem possa julgar que o processo literário pessoano se fixa apenas nas obras de Alberto Caeiro, Ricardo Reis e Álvaro de Campos, este livro de Nuno Ribeiro e Cláudia Souza vem demonstrar que a família Crosse (A.A. Crosse, Charles Crosse, S.S. Crosse, J.J. Crosse, Thomas Crosse, I.I. Crosse) tem um lugar especial na obra pessoana. Claro que em Fernando Pessoa nada é simples nem óbvio nem fácil de perceber. Numa carta a Ofélia Queiroz em 29-4-1920 Fernando Pessoa refere apenas o «sr. Crosse»; vejamos: «O sr. Crosse mandou antes de ontem uma resposta a concurso, e ontem outra, e hoje vai ainda outra. As duas primeiras são de concursos pequenos, e não há esperança neles. A que vai hoje é de um concurso vulgar, de 250 libras. Uma que deve ir por estes dias é que é de mil libra, ou, antes, para o concurso de mil libras que fecha em 13 de Maio próximo. Há, portanto, tempo.»
O mesmo Fernando Pessoa através de Thomas Crosse assina um curioso texto intitulado «A semelhança entre o espanhol e o português»: «O inglês é mais complexo e conciso do que o espanhol e o português. Por outro lado, o português tem possibilidades de gamas de significado que são inimagináveis mesmo no inglês. Os portugueses têm, por exemplo, um infinito pessoal. Assim a frase que em inglês não pode ser apresentada em menos palavras do que «I tis enough that we exist» ou «that we be» pode ser dita em português apenas em duas palavras - «Basta sermos». O espólio de Fernando Pessoa na BNP conserva uma charada enviada para um jornal inglês assinada por Thomas Crosse. 
Depois de «António Botto: projecto de um livro» (Nuno Ribeiro) e de «Escritos sobre o Tédio», «Poemas à noite», «Poemas ao vinho» e «Rua dos Douradores de Bernardo Soares» (Nuno Ribeiro e Cláudia Souza) este recente trabalho da dupla vem dar o devido relevo a uma colecção de estudos pessoanos que embora intitulada «Fernando Pessoa em porMENOR» nada tem de menor (antes pelo contrário) e já vai no sexto volume.  
   
(Editora: Apenas Livros, Edição/Introdução: Nuno Ribeiro e Cláudia Souza, Capa: Susana Resende)

[Um livro por semana 642]

domingo, 15 de março de 2020

«Bluff» de António Ferra



O mais recente livro de António Ferra (n.1947) parte da palavra «bluff» no sentido de «burla, engano, logro» do jogo de cartas conhecido por póquer, praticado por quatro elementos com um baralho de 52 cartas. Jogando habilmente com a narrativa e com as falas do quotidiano, o autor começa cada texto usando a ironia como por exemplo «Graziela precisava de uma certidão de emagrecimento, documento imprescindível para voos low cost.» e termina com «Já não faço nada on line, é tudo bluff, desde que nasceu a minha filha deixei-me disso, nem mesmo sexo virtual, tenho medo de engravidar outra vez.»
O ponto de partida é a memória da infância («Eu era ainda muito criança, entrava sorrateiro na cavalariça, tremia naquele esconderijo, em lusco fusco e taquicardia.») mas o ponto de chegada é um «descampado periférico» onde Graziela se queixa «Não, não, é só esta desumanidade que se entranha no corpo.»     
Na homenagem à literatura que toda a literatura, afinal é, julgamos descortinar o louvor dos textos líricos de Daniel Filipe ou Nuno Bragança no diálogo da fuga dos amantes: «- Trazes os documentos? – Estão aqui na mala. – Tudo? – O resto vai na PEN».

(Editora: Douda Correria, Capa: Inês Mateus)

 [Um livro por semana 641]

quarta-feira, 4 de março de 2020

O rumor do Mundo em Bernardo Matias



Nasci em Santa Catarina numa casa de músicos. A casa já não existe mas as memórias não se perdem. Minha avó tinha a alcunha de «Flauta» e meu avô tocava trompete; começou com um cornetim de 1923 que hoje em 2020 ainda guardo à entrada de casa. A família Catarinense estava na Filarmónica: meu avô José Almeida, meus tios Álvaro e Armindo, meu tio Joaquim Freire, meu primo Luís Freire, meus primos direitos Reinaldo e Luís Almeida. INICIAIS, o meu primeiro livro individual, foi escrito há 40 anos e publicado há 39. Integra sete poemas dedicados a compositores e intérpretes: Vivaldi, Handel, Keith Jarret, Maria Farandouri, Mikis Theodorakis, Paul Williams e Sandy Denny. Isto vem a propósito do novo CD de Bernardo Matias (n.1996) oferecido pelo primo Luís Almeida junto ao cemitério de Santa Catarina. Pode parecer insólito mas não é: tanto a Música como a Poesia procuram juntar de novo tudo o que a morte separou. Neste caso do CD de Bernardo Matias basta pensar que Isaac Albéniz (1860-1909) vive de novo numa das faixas (Astúrias) do presente trabalho que integra onze temas. O CD junta ao som do saxofone, o piano de João Lucena e Vale na interpretação das peças de Daniel Bernardes, Sérgio Azevedo, Pedro Francisco, Nuno Roque, Daniel Schvetz, Francisco Chaves e Albéniz num arranjo do próprio Bernardo Matias. Não sou crítico musical mas vejo nesta viagem de peças musicais um rumor do Mundo, o mesmo Mundo que vivi de 1951 a 1957 quando se ouvia o comboio de São Martinho do Porto durante as vagarosas sementeiras desse tempo. Ou o oceano a bater nas rochas do lado de lá da baía amena. Os pioneiros de 1428 que se desligaram do Dom Abade de Cister e fizeram uma igreja nova na nossa terra devem estar orgulhosos de Bernardo Matias. Eu sou um obscuro publicista e também estou.       

[Crónicas do Tejo 221]