quinta-feira, 20 de outubro de 2022

«Viagens sem bola» de Rui Miguel Tovar

Albert Camus, Nobel da Literatura em 1957, escreveu «tudo o que sei sobre a moral e as obrigações dos Homens é ao Futebol que o devo.» Este livro de Rui Miguel Tovar (n.1977) é a prova. O ponto de partida são as viagens para ver futebol e os títulos das trinta crónicas dão uma ideia: Banguecoque, Belo Horizonte, Berlim, Boston, Brasília, Bucareste, Buenos Aires, Cairo, Chernobyl, Corleone, Croácia, Donetsk, Lijiang, Londres, Los Angeles, Lviv, Montevideo, Nova Iorque, Pádua, Paris, São Petersburgo, Rio de Janeiro, Rosário, São Paulo, Teerão, Três Corações, Varsóvia, Veneza, Maldivas e Abu Dhabi. A rubrica «Hoje jogo eu» fez parte da minha educação sentimental como leitor de A BOLA. Num certo sentido este livro é um conjunto de textos à maneira do «Hoje jogo eu». Se o ponto de partida é «pelo mundo fora em busca do inesperado» como refere a capa, o ponto e chegada é um inventário da condição humana no sentido dado à expressão «sangue pisado». Só que nestas 171 páginas junta-se ao sangue pisado a arte, um talento de escrita não ao alcance de qualquer aspirante.

Vejamos alguns exemplos desta feliz mistura entre vida (sangue pisado) e estilo (arte): o humor na página 6 - «Do meu ponto de vista Spike Lee é uma velhinha.» e na página 113 «no rugby só se avança se se passar a bola para trás», o poder de síntese na página 15 «tuk-tuk é uma moto com atrelado» ou na 46 «Buenos Aires é a cidade mais rezingona do mundo.», na 31«Boston, cidade de MIT e Harvard, casa dos Celtics (basquetebol) Red Sox (basebol) e Bruins (hóquei no gelo)» ou ainda na 56 «Manuel José, a figura nacional do Cairo. Mais respeitado até que qualquer sinal vermelho». Sem esquecer os franceses a verem um jogo Arsenal-Leyton Orient e a falar «um inglês pior ainda que o do polícia francês do Àllo!Àllo!» Ou o Rio de Janeiro na página 125 «Nevoeiro de manhã, futebol à tarde, destruição à noite, o Rio não está assim tão maravilhoso.» Por fim uma ideia sobre Veneza na página 160: «Veneza a cidade do futuro? Quando muito, sem futuro. Veneza arrisca-se a ser apenas um parque temático de arte e cultura»

O amor está presente na paixão de Elza Soares e Garrincha («Meu Deus, como essa gente é boba, não sabe que vai viver por um tempo tão curto, para quê ficar agarrado a tanta coisa, não vai levar nada» terminando de forma abrupta: «Um homem como ele ser expulso do país é um absurdo» O cinema está muito presente na página 64: «quem não chora com a última cena do Cinema Paraíso, a reposição de todos os beijos censurados pelo padre da aldeia ao longo de anos e anos, aí já não há desculpa». Terminamos esta nota com a memória do Europeu 2016: «Aparece uma bola vinda sabe-se lá de onde, começam-se a marcar penáltis na baliza do Éder. É um festival. De remates, de golos, de cabeça no ar. Não há amanhã. Só hoje. E o hoje não vai acabar. É eterno.»

(Editora: Quetzal, Revisão: Carlos Jesus, Preparação: Diogo Morais Barbosa e Carlos Almeida, Prefácio e edição: Francisco José Viegas, Design de capa: Rui Rodrigues, Foto da capa: Sandro Bisaro, Produção: Teresa Reis Gomes, Foto do autor: Ágata Xavier)

[Um livro por semana 693]

 

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