A fotografia pode ter sido
tirada em 1945, talvez Setembro, mês do início das vindimas. Não se sabe nem
isso é agora muito importante. Uma mulher-menina e uma menina-mulher celebram a
festa das colheitas, o esplendor dos frutos, a apoteose da abundância. O lugar
tem um nome (Braçal) e lá mais para trás dos sorrisos há uma ribeira que no
Verão se torna caminho mas no Inverno leva água da Serra até ao Rio Ocresa.
Para a direita da fotografia, a ribeira que vem da Sarzedinha alcança a
Amoreira e o Casalinho nos Invernos de chuva, nevoeiro e tempestades. No tempo
da fotografia tudo é diferente. O calor e os dias maiores abrem o sorriso de quem
celebra a amizade num retrato, coisa rara nesse tempo de «seis por nove» a
preto e branco. A fotografia é uma teimosa negação do tempo e do seu desgaste
quotidiano. A mulher -menina do lado esquerdo saiu em 2003 dos palcos onde a
febre, a pressa e o furor de ter sempre a palavra obrigam a uma atenção
permanente. A menina-mulher do lado direito da fotografia permanece em 2017 embora
tenha mudado o timbre, o registo e a extensão da voz. Tudo se modifica todos os
dias de modo seguro, lento e inapelável. O sorriso em duplicado da mulher e da
menina resiste na fotografia e chega a 2017 com a frescura de 1945 quando toda
a esperança pessoal do Mundo tinha a sua própria legitimidade. Duzentos anos
depois do primeiro livro (1817) que sistematiza em termos clínicos a Doença de
Parkinson, ninguém quer sair da fotografia. O sorriso em duplicado povoa uma
paisagem de onde sai uma ribeira a caminho do Ocresa. Nada mais é preciso para
que o tempo seja inteiro, completo e feliz. A fotografia a tudo resiste – ao
tempo, ao desgaste, à erosão dos dias. Até hoje há uma luz teimosa a dizer
sempre que não. Ao esquecimento que organiza as suas emboscadas.
(Crónicas do Tejo 74 - fotografia de autor desconhecido)
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