domingo, 9 de abril de 2017

Por detrás dos sorrisos uma ribeira afluente do Ocresa



A fotografia pode ter sido tirada em 1945, talvez Setembro, mês do início das vindimas. Não se sabe nem isso é agora muito importante. Uma mulher-menina e uma menina-mulher celebram a festa das colheitas, o esplendor dos frutos, a apoteose da abundância. O lugar tem um nome (Braçal) e lá mais para trás dos sorrisos há uma ribeira que no Verão se torna caminho mas no Inverno leva água da Serra até ao Rio Ocresa. Para a direita da fotografia, a ribeira que vem da Sarzedinha alcança a Amoreira e o Casalinho nos Invernos de chuva, nevoeiro e tempestades. No tempo da fotografia tudo é diferente. O calor e os dias maiores abrem o sorriso de quem celebra a amizade num retrato, coisa rara nesse tempo de «seis por nove» a preto e branco. A fotografia é uma teimosa negação do tempo e do seu desgaste quotidiano. A mulher -menina do lado esquerdo saiu em 2003 dos palcos onde a febre, a pressa e o furor de ter sempre a palavra obrigam a uma atenção permanente. A menina-mulher do lado direito da fotografia permanece em 2017 embora tenha mudado o timbre, o registo e a extensão da voz. Tudo se modifica todos os dias de modo seguro, lento e inapelável. O sorriso em duplicado da mulher e da menina resiste na fotografia e chega a 2017 com a frescura de 1945 quando toda a esperança pessoal do Mundo tinha a sua própria legitimidade. Duzentos anos depois do primeiro livro (1817) que sistematiza em termos clínicos a Doença de Parkinson, ninguém quer sair da fotografia. O sorriso em duplicado povoa uma paisagem de onde sai uma ribeira a caminho do Ocresa. Nada mais é preciso para que o tempo seja inteiro, completo e feliz. A fotografia a tudo resiste – ao tempo, ao desgaste, à erosão dos dias. Até hoje há uma luz teimosa a dizer sempre que não. Ao esquecimento que organiza as suas emboscadas.

(Crónicas do Tejo 74 - fotografia de autor desconhecido)

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