Depois
dos poemas de «Dos livros levanta-se um pássaro» (2017), António Ferra (n.1947)
publica a narrativa poética «Já próximo dos anjos» que tem como ponto de
partida um interesse: «os habitantes daquele bairro num pequeno café / à noite
/ a beber cerveja logo a seguir ao jantar (…) Viam futebol num plasma enorme
para o tamanho do café / parte dos olhos do magote projectados na pantalha / a
outra parte dos olhos no Nada Absoluto.» O título do livro incorpora uma dupla
inscrição: pode ser lido como uma estação do Metro de Lisboa (Anjos) ou um ser
espiritual que se presume habitar no céu (anjos).
Na
página 44 o autor apresenta-se: «(aqui há uns cem anos eu era capaz de escrever
o mistério da lua em vez de o mistério da noite, já então expressão gasta. Mas
desde que o satélite passou a ser um lugar comum, devassado, pálido e sem interesse,
desromantizou-se o luar e os escritores tiveram de reinventar o céu.)» e conclui
na página 34: «A minha literatura é amar a liberdade / rir-me das frases
impotentes / é mijar quando me apetece sobre o poder intelectual do comércio.»
A
organização do livro é explicada na página 12: «Os nomes das pessoas, as
identidades, são fundamentais para se compreender o que se está a passar, como
é o caso dos relatos ficcionais.» Um exemplo: na página 7 «Um utópico pediu-me
que lhe pagasse um copo de branco» mas na página 13 já é «O gajo do copo com
quem bebi vinho branco perto do Chile – Daniel Moreira Nunes – olhava de
soslaio para Ermelinda Neves Afonso» e na página 15 surge de novo «aquele que
bebeu um copo de branco comigo numa pastelaria perto do Chile» para mais tarde
afirmar «As mãos são o grande enigma da Humanidade / são a parte visível da
alma, a fonte máxima da criatividade.»
Tudo
se resume afinal a um «diálogo surdo entre Eros e Tanatos» (o Amor e a Morte)
como no poema da página 42, diálogo esse que «dura enquanto respiramos /
perguntando sem dar por isso / porque se esconde Deus nos sacrários / onde se
faz a cremação dos dias.»
(Artes finais: Pedro Serpa, Capa,
fotografia e ilustração: António Ferra, Foto: Anjo-manequim, Florença 2006)
[Um
livro por semana 604]
Belíssima leitura, sem pressa de chegar a conclusões irredutíveis, porque tudo aqui está em movimento, como é próprio dos humanos. Ler como quem tem a vida toda à espreita.
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