O
título deste livro de Amadeu Lopes Sabino (n.1943) está num verso de Fernando
Pessoa («Mensagem») e o conteúdo (231
páginas) faz o inventário completo, qualificado e circunstanciado de cinco
décadas de relacionamento entre o autor e João Falcato. Este foi um homem de
sete ofícios e esteve ao longo do seu tempo (1915-2005) em várias situações:
marinheiro, náufrago, viajante, escritor, professor, jornalista e produtor de
vinhos. Na página final o autor despede-se dele: «eternamente jovem , escoltado
por Marta e por Maria, seguido por José, o neto e por outras e muitas gentes,
por quantos nele acreditaram e por outros que três vezes o negaram , por
discípulos e adversários, por associados e rivais, por meirinhos e juízes,
pelos náufragos do Mello e pelos
personagens de livros que escreveu, publicou, começou, idealizou e abandonou.
Era um vate, um adivinho, um construtor de universos. Um prestidigitador. O
todo e o seu nada. O meu mestre.»Embora referido como «romance» nas páginas de
abertura, o autor define este livro como «biografia» e afirma «uma falsa
biografia não é uma biografia falsa». Muito curiosa é a oposição entre dois escritores
franceses que integram a educação sentimental do autor e do protagonista.
Amadeu Lopes Sabino «mantinha desde os quinze anos uma relação íntima com Camus
que nada iria abalar.» João Falcato tinha muito a ver com Malraux, o homem dos
«percursos supostos e dos encontros fictícios.» Mas não trata apenas de
Literatura este livro; há nestas páginas muito de História como por exemplo os
navios interceptados ou abatidos no Atlântico durante a II Guerra Mundial: «Carvalho Araújo, João Belo, Cabo de São
Vicente, Maria da Glória, Delães, Santa Irene, Quanza» ou seja e em resumo
«Onze navios perdidos por acção dos beligerantes, uma centena de passageiros e
tripulantes mortos». Voltando às Artes e às Letras, o livro regista a
convivência do protagonista com poetas, ficcionistas, dramaturgos e pintores: Mário
Cesariny, Vergílio Ferreira, José Régio, Sebastião da Gama, Fernando Namora,
Júlio Resende – entre outros. Partindo da biografia de uma personalidade, o
livro acaba por ser uma viagem no tempo português de 1915 a 2005. Na página 66
João Falcato queixa-se ao comandante local da GNR sobre o abandono das mobílias
do seu domicílio conjugal. A resposta do graduado é: «Os ricos entendem-se
sempre. A Guarda é para os pobres.» Sobre o livro inicial de João Falcato («Fogo
no mar») vejamos a leitura de Jaime Brasil em O Primeiro de Janeiro de 14-3-1945: «Não há na literatura
portuguesa depois da História
trágico-marítima mais pungentes páginas a evocar a angústia dos
naufrágios.» Leitor de Português em Munique durante pouco tempo, recorda um
incidente no eléctrico a caminho da Universidade e no fim da viagem o jovem de
vinte anos fala do passageiro: «O homem era um judeu. Há ainda muitos nesta
terra. São inimigos da Alemanha. Se houvesse de novo ordem de matança eu matava
alguns com prazer.» Mas o humor também está presente por exemplo na página 97:
«Aos vê-los andar, tirar o chapéu, acender o cigarro, esperar que um carro
passe para atravessar a rua, deter-se de esguelha para responder guturalmente à
interpelação do estrangeiro, fico sempre a pensar onde estará o motor que
aciona este mecanismo.»
(Editora: Bizâncio, Capa: Armando Lopes,
Revisão: Sandra Pereira, Paginação: Ana Ribeiro)
[Um
livro por semana 605]
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