quarta-feira, 2 de janeiro de 2019

«O todo ou o seu nada» de Amadeu Lopes Sabino



O título deste livro de Amadeu Lopes Sabino (n.1943) está num verso de Fernando Pessoa («Mensagem»)  e o conteúdo (231 páginas) faz o inventário completo, qualificado e circunstanciado de cinco décadas de relacionamento entre o autor e João Falcato. Este foi um homem de sete ofícios e esteve ao longo do seu tempo (1915-2005) em várias situações: marinheiro, náufrago, viajante, escritor, professor, jornalista e produtor de vinhos. Na página final o autor despede-se dele: «eternamente jovem , escoltado por Marta e por Maria, seguido por José, o neto e por outras e muitas gentes, por quantos nele acreditaram e por outros que três vezes o negaram , por discípulos e adversários, por associados e rivais, por meirinhos e juízes, pelos náufragos do Mello e pelos personagens de livros que escreveu, publicou, começou, idealizou e abandonou. Era um vate, um adivinho, um construtor de universos. Um prestidigitador. O todo e o seu nada. O meu mestre.»Embora referido como «romance» nas páginas de abertura, o autor define este livro como «biografia» e afirma «uma falsa biografia não é uma biografia falsa». Muito curiosa é a oposição entre dois escritores franceses que integram a educação sentimental do autor e do protagonista. Amadeu Lopes Sabino «mantinha desde os quinze anos uma relação íntima com Camus que nada iria abalar.» João Falcato tinha muito a ver com Malraux, o homem dos «percursos supostos e dos encontros fictícios.» Mas não trata apenas de Literatura este livro; há nestas páginas muito de História como por exemplo os navios interceptados ou abatidos no Atlântico durante a II Guerra Mundial: «Carvalho Araújo, João Belo, Cabo de São Vicente, Maria da Glória, Delães, Santa Irene, Quanza» ou seja e em resumo «Onze navios perdidos por acção dos beligerantes, uma centena de passageiros e tripulantes mortos». Voltando às Artes e às Letras, o livro regista a convivência do protagonista com poetas, ficcionistas, dramaturgos e pintores: Mário Cesariny, Vergílio Ferreira, José Régio, Sebastião da Gama, Fernando Namora, Júlio Resende – entre outros. Partindo da biografia de uma personalidade, o livro acaba por ser uma viagem no tempo português de 1915 a 2005. Na página 66 João Falcato queixa-se ao comandante local da GNR sobre o abandono das mobílias do seu domicílio conjugal. A resposta do graduado é: «Os ricos entendem-se sempre. A Guarda é para os pobres.» Sobre o livro inicial de João Falcato («Fogo no mar») vejamos a leitura de Jaime Brasil em O Primeiro de Janeiro de 14-3-1945: «Não há na literatura portuguesa depois da História trágico-marítima mais pungentes páginas a evocar a angústia dos naufrágios.» Leitor de Português em Munique durante pouco tempo, recorda um incidente no eléctrico a caminho da Universidade e no fim da viagem o jovem de vinte anos fala do passageiro: «O homem era um judeu. Há ainda muitos nesta terra. São inimigos da Alemanha. Se houvesse de novo ordem de matança eu matava alguns com prazer.» Mas o humor também está presente por exemplo na página 97: «Aos vê-los andar, tirar o chapéu, acender o cigarro, esperar que um carro passe para atravessar a rua, deter-se de esguelha para responder guturalmente à interpelação do estrangeiro, fico sempre a pensar onde estará o motor que aciona este mecanismo.»
 
(Editora: Bizâncio, Capa: Armando Lopes, Revisão: Sandra Pereira, Paginação: Ana Ribeiro)

[Um livro por semana 605]

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