Fernando
Venâncio (n.1944) regressa nestes «contos breves» ao seu livro anterior «Beijo
técnico» - páginas abertas ao absurdo da vida. Um exemplo na página 49 deste
livro: Bons conselhos: «Ele dizia-me.
Toma tudo à letra. Mas não tomes tudo a sério.» Outro exemplo mas este da vida
enquanto realidade: O presidente dos EUA viu o seu partido perder a maioria do
Senado mas chamou no Twitter «dia glorioso» ao seu dia de derrota. É possível
que alguém acredite no absurdo e na mentira. Ora o absurdo está mais perto de
nós do que parece. Veja-se o texto da página 81: «Tinha o romance e só faltava
o título. O programa leu o romance em seis segundos, talvez menos, e cuspiu,
hierarquizados, oito títulos que garantiam fortunas. Escolheu o quinto. Gostou
dele. A última viúva de Josino Fontes.
Catita ao máximo. Um alexandrino perfeito. Na história não compareciam nem
Fontes nem um Josino, muito menos viúvas dele. Mas também a peça de Ionesco não
tinha cantora careca nenhuma e foi o êxito que se sabe.» Uma história talvez passada
no país que Stefan Zweig considerou «o país do futuro» está na página 80: «Seis
meses depois do golpe de estado, o ditador mudou de ideias. Arranjou um jornal,
uma rádio, uma televisão, um portal na Internet e lançou-se a pregar a justiça
social. Foi eleito presidente por tão extrema percentagem que a ditadura
voltou. Democraticamente. E foi democraticamente que de novo houve um ditador.
Sempre haviam dito que aquele era um país inviável.»
Num
tempo dominado pelas redes sociais («Pai, o que são redes sociais? – São redes,
filha, em que a gente cai. – Mas sociais porquê? – Porque caímos todos juntos
») há quem perante a exclusão não compreenda nem aceite: «Diz então o meu amigo
que se espanta de quem não tem conta no Twitter ou no Instagram. – Exacto,
Faz-me confusão. Dá-me pena.» O
esplendor do absurdo pode estar na
página 97: «Desmontaram a Ponte sobre o Tejo. A tal. Essa mesma. Parafuso a
parafuso, porca a porca, anilha a anilha, tudo foi habilmente retirado,
numerado, encaixotado, armazenado.» O humor anda paredes meias com o absurdo.
Vejamos o texto da página 30: «Quando lhe perguntavam o que fazia, informava
que era linguista. Pensavam imediatamente e às vezes diziam que certamente
falava um ror de línguas. Respondia que sim mas que o verdadeiro linguista não
precisava de conhecer mais do que uma.»
Na
página 30 um conto sobre a morte: «Quando o vi já sentado no metro, dei-me
conta de que reparara nele, moço novo, a entrar, naquela estação do hospital.
No rosto trazia toda a tristeza do Mundo. Foi nos anos oitenta, quando a sida
era a morte já rondando.» Na página 31 um conto sobre a vida: «Ele sorria.
Voltava a olhar o telemóvel e sorria. Estava-se no metro, cheio, mas só eu o
observava. Ele continuava a sorrir. Era quase ofensivo, aquele sorriso de
descarada felicidade.» Fernando Venâncio cita o título de Camilo Castelo Branco
(Onde está a felicidade?) porque toda a literatura é uma homenagem à literatura.
(Editora:
On y va, Foto do autor: J. Rentes de Carvalho, Ilustração: Rita Albuquerque,
Paginação: João Paulo Fidalgo)
[Um
livro por semana 603]
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