quarta-feira, 6 de março de 2019

Crónica ou quase-poema para o som de uma voz de mulher



A tua voz tem a extensão, o timbre e a altura da forte alegria teimosa contra a névoa da melancolia e da tristeza ao fim da tarde nas ruas da cidade de Lisboa. Quase ninguém repara mas, de súbito, na tua voz há pomares nos passeios, há moinhos nos jardins e fragatas azuis entre as duas margens do estuário do Tejo.
Diria então por outras palavras – há na tua voz o som da alegria que nasce da terra, seja nas mulheres que colhem no seu avental a fruta do tempo, seja nas outras que tiram dos alforges o grão que os rodízios de madeira do moinho vão transformar em farinha, promessa de pão no calor do forno ou seja ainda nas despedidas das mulheres aos homens das fragatas entre melões para os Mercados de Lisboa ou madeira e cortiça com destino às fabriquetas do Poço do Bispo.
Há sempre três mundos no pequeno mundo da tua voz (animal, vegetal e mineral), um mundo que junta as pedras, os arbustos e os cavalos incansáveis no seu trabalho de transportar homens e produtos que mais tarde serão mercadorias.
A tua voz, mesmo quando se torna adversativa (o mesmo é dizer mas, porém, todavia, contudo) tem sempre um pequeno sopro de ternura fazendo assim com que se torne tudo menos agressivo para quem ouve, aceita e toma a sério.
A tua voz tem o registo da mais alta Poesia, instável mas feliz ponto de encontro entre a saudade e o sonho, entre o passado e o futuro, entre a sombra e a luz. Porque, tal como numa liturgia urbana, há no ouro das alfaias da tua voz um tempo de celebrar, de convocar, juntar e harmonizar de novo tudo aquilo que, no nosso coração, a morte acabou por separar.

[Crónicas do Tejo 165]

Sem comentários:

Enviar um comentário